Kria
Camila Nasser, CEO e cofundadora do Kria (Foto: Divulgação | Arte por Startups.com.br)

A história de Camila Nasser com o Kria acompanha a construção do mercado de crowdfunding no Brasil. Ela entrou quando a empresa ainda era um experimento ousado – a ideia de fazer “mini IPOs digitais” soava avançada demais para um ambiente sem regulação, sem histórico e sem educação financeira preparada para esse tipo de ativo. Mas era justamente a combinação de comunidade, tecnologia e acesso que fazia sentido para ela.

Ao longo dos últimos dez anos, Camila acompanhou cada etapa dessa jornada: da CVM 588 à Resolução 88, da limitação de faturamento das empresas ao novo arcabouço que deve ampliar o espaço para captações. Viu o mercado se multiplicar por dez, observou ciclos de equity esfriarem enquanto a renda fixa ganhava protagonismo e identificou como as PMEs ainda enfrentam gargalos importantes de acesso ao capital.

Nesse período, passou de estagiária a CEO, ocupando desde cedo espaços de decisão e desenvolvendo uma visão clara de produto e propósito para o Kria. Agora, à frente da plataforma, ela conduz um momento de virada: um portfólio mais diversificado de ativos, indo além do equity crowdfunding para incorporar os chamados real world assets.

Com foco em profundidade de produto e simplicidade para o usuário, Camila encerra 2025 com o que considera uma vitória relevante: a entrada no ecossistema de investimentos do Itaú, que coloca o crowdfunding no mainstream da carteira do investidor tradicional. A parceria permite que clientes do íon, plataforma de investimentos do banco, possam acessar ofertas de equity crowdfunding e de renda fixa em crowdfunding, incluindo CRIs e outros certificados de recebíveis, tudo dentro das regras da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Em um papo com o Startups, Camila falou sobre o novo momento do Kria, o papel da regulação e como enxerga o futuro dos investimentos alternativos. Veja a seguir os melhores momentos dessa conversa.

Como você começou no universo das startups e dos investimentos?

Camila Nasser: Foi uma combinação de preparação e acaso, como muitas coisas na vida. Estava no terceiro ano da faculdade de Comunicação e procurando meu primeiro estágio. Apliquei para várias áreas, tentando entender onde eu me encaixava. No mesmo dia, fiz duas entrevistas: uma em uma grande empresa tradicional e outra com o Fred (Frederico Rizzo), fundador do Kria, que na época tocava tudo sozinho.

Costumo brincar que, naquele momento, ele ainda era “um louco com uma ideia”. Só depois que dá certo o mundo passa a enxergar alguém como visionário. A proposta era democratizar o mercado de investimentos.

A conversa com ele me trouxe uma sensação muito forte de futuro, enquanto a entrevista na empresa tradicional me deu a impressão de passado. Mesmo sem ter muito a oferecer em remuneração, o Kria me entregava algo que eu valorizava naquele momento: aprendizado e crescimento. Tive o privilégio de poder escolher esse caminho.

Entrei como estagiária, a primeira pessoa do time. Curiosamente, eu já tinha feito alguns estudos na faculdade sobre poder de comunidade – muito mais focados em crowdsourcing do que no aspecto financeiro. E foi exatamente isso que me atraiu na tese do Kria. No fim das contas, quando falamos de venture capital, estamos falando de um universo que é, essencialmente, comunicação: você vende ideias e uma visão de execução. Isso casava muito com o meu perfil na época, voltado para comunicação, posicionamento e conteúdo.

Foi um match perfeito. Sentia que estava entrando em um lugar que absorvia mudanças sociais importantes, especialmente a transição do capitalismo dos shareholders para o capitalismo dos stakeholders, em que todos os elos da cadeia importam. Essa lógica do que chamo de community capitalism sempre fez muito sentido para mim. 

Foi isso que me fez perceber que o Kria era o lugar certo: tinha tudo a ver com o que eu acreditava. Corta para 2020: assumi como CEO.

Como foi fazer a transição de estagiária para, dez anos depois, CEO?

CN: Sempre senti segurança no domínio do mercado. Desde o início, trabalhando ao lado do Fred, tive muito espaço para me colocar. Não é que eu não aceite “não” como resposta, mas sempre fui muito participativa. Isso vem da minha criação: sempre gostei de desafiar, questionar e provocar a liderança.

Essa postura me ajudou a entender melhor o mercado, a tomar decisões difíceis e a ocupar, por muito tempo, o lugar onde as decisões são tomadas. Então, foi um percurso quase natural: eu estava cada vez mais me aprofundando e me apaixonando, de um lado, pelo mercado que a gente estava construindo e, de outro, pelo ato de tocar o negócio.

Mas tem um ponto importante: eu não tenho a “pira” de ser CEO. Não é sobre o cargo ou a liderança pelo status. O que me move é construir, desenvolver, fazer acontecer. É isso que me guia.

O Kria começou com equity crowdfunding e hoje oferece uma prateleira diversificada de ativos. Como você avalia essa evolução?

CN: É natural. O Kria nasceu há mais de dez anos com uma visão clara: democratizar o mercado de capitais. O crowdfunding foi, e ainda é, uma estratégia dentro dessa visão. A RCVM 88, que nos respalda até hoje, é parte desse caminho, mas sempre esteve a serviço de algo maior: ampliar o acesso ao mercado de capitais.

Quando olhamos para o cenário atual, vemos um gap enorme de crédito para pequenas e médias empresas (PMEs). Existe muito crédito disponível no mercado, mas ele é destinado, em grande parte, para empresas maiores, mais maduras e mais estabelecidas. As PMEs acabam ficando com poucas opções de acesso à capital, em diferentes formatos.

Nós começamos com um foco em equity crowdfunding, mas percebemos que também há uma demanda enorme – e pouco atendida – por crédito e renda fixa. Por isso, a diversificação surgiu como consequência natural da nossa missão.

No final do dia, pensamos nas necessidades da PME. Se a solução é crédito, vamos fazer crédito. Se é equity, vamos fazer equity. Essa é a lógica da democratização do mercado de capitais que guiou nossa evolução.

A ampliação do portfólio tem algo a ver com o momento atual do mercado, com redução dos investimentos de risco?

CN: Sim. A gente percebeu que estava muito focado em equity justamente num momento em que esse mercado esfriou. Para o investidor, não fazia sentido aportar em equity enquanto havia tantas oportunidades de renda fixa com retornos interessantes. Por isso também entramos mais forte em renda fixa.

Os mercados de renda fixa e equity são cíclicos; eles se equilibram. Este ano foi muito forte para renda fixa. Em 2021, o destaque foi o equity. E, olhando para frente, é natural que o equity volte a pesar na balança. No fim, é sobre equilíbrio e sobre acompanhar o que o próprio mercado econômico nos aponta.

Vocês acabam de anunciar uma parceria com o Itaú, que passa a oferecer aos clientes da plataforma de investimentos do banco acesso aos produtos de crowdfunding do Kria. O que isso representa para o momento atual de vocês e qual o impacto esperado?

CN: É animador listar o Kria no maior banco privado da Améria Latina. Sempre acreditamos que todo mundo deveria poder investir no que está acontecendo no mundo. Hoje, temos uma base de 60 mil investidores, mas a verdadeira escala virá agora com essa parceria, que marca também a nossa entrada no mercado tradicional.

Na prática, isso significa que os nossos ativos deixam de ser vistos como algo de nicho – algo para beta testers ou entusiastas de inovação, como foi por muitos anos. Agora, passam a integrar o mainstream da carteira do investidor comum, aquele que está no banco mais tradicional do Brasil e, mesmo assim, investe em um ativo que antes era totalmente não tradicional.

Tem um ponto fundamental: a chancela do Itaú. Não é fácil ser listado no banco, eles são extremamente diligentes. Então, isso também valida que o mercado já está caminhando para um futuro em que o investidor tem múltiplas oportunidades de aporte e em que as PMEs ganham mais protagonismo.

Para o Kria, é um marco que representa uma evolução importante da nossa história – a nossa chegada ao mercado tradicional – e, ao mesmo tempo, sinaliza que os grandes players estão se atentando para o potencial desse tipo de ativo.

O que você gostaria que o Kria representasse no mercado daqui a 5 anos?

CN: Agora que a parceria com o Itaú está rodando, nossas prioridades passam por ampliar a distribuição, garantir um fluxo constante de ativos novos e relevantes para a nossa base de investidores e aprofundar nosso ecossistema de parceiros, tanto de originação quanto de distribuição.

O ano de 2025 foi fundamental para estruturar os alicerces desse “novo Kria”: uma plataforma mais completa, focada em real world assets.

Também fizemos uma mudança profunda na experiência do investidor. Sempre repetimos que investir deveria ser mais fácil do que pedir comida no delivery, e esse tem sido um foco constante para a gente. Agora, com uma estrutura mais sólida, 2026 é o ano em que esperamos crescer com consistência: manter oportunidades sempre abertas, diversificar os tipos de ofertas e customizá-las a partir do que ouvimos da nossa própria comunidade de investidores. É isso que estamos mirando para o próximo ciclo.

A nossa vontade para o Kria é que ele represente o acesso no mercado de capitais, que simplifique estruturas complexas e torne muito mais fácil para as PMEs acessarem o capital que precisam para crescer. A gente sabe que o mercado de capitais é um dos principais motores de desenvolvimento da economia.

Então, quando eu penso nos próximos anos, o que eu quero ver é simples: empresas se beneficiando de verdade do acesso a capital via Kria, conseguindo se consolidar, escalar, gerar emprego e impacto. No fim das contas, é sobre gerar benefícios reais para a sociedade brasileira.

Quais os desafios atuais para o Kria avançar na democratização dos investimentos? 

CN: O mercado de investimentos coletivo demorou muito para “virar gente grande”. Quando começamos, lá em 2014, com a ideia de fazer mini-IPOs digitais, não havia qualquer regulação. A primeira norma só chegou em 2017 – a Instrução CVM 588, que depois virou a RCVM 88. Mesmo assim, entre 2017 e 2023, o volume somado por todas as plataformas de distribuição foi de apenas R$ 300 milhões. É muito pouco.

Era um mercado limitado por dois fatores principais: restrições regulatórias e mercadológicas e a falta de educação, tanto de investidores quanto de empreendedores. Esses sempre foram os grandes desafios.

Agora, estamos vendo um mercado totalmente novo se abrir. Ele cresceu dez vezes nos últimos dois anos, impulsionado por um ambiente regulatório mais favorável. E vem mais mudança por aí.

A CVM está em audiência pública discutindo atualizações na norma que rege o crowdfunding. A proposta já está colocada, o mercado está debatendo e a versão final deve sair no ano que vem. Algumas das mudanças são muito positivas: aumento do teto de captação e, principalmente, o fim do limite de faturamento para empresas que querem captar via plataformas. Hoje existe um teto de R$ 40 milhões (ou R$ 80 milhões para grupos econômicos) e isso deve cair, o que é excelente.

Há também propostas importantes, como a entrada de securitizadoras, mais flexibilidade para estruturação de ativos e, sobretudo, avanços na liquidez. A possibilidade de organizar um mercado secundário dentro das plataformas pode resolver um dos maiores gargalos do setor: permitir que investidores transacionem seus ativos. Liquidez é um desafio no venture capital como um todo, e a CVM está abrindo portas para endereçar isso.

Em resumo, os limites regulatórios ainda podem ser um desafio, assim como a falta de educação do mercado. Mas estamos entrando em uma nova fase.

Qual é um hábito que você não abre mão e te ajuda a administrar tantas tarefas e responsabilidades?

CN: Meu maior desafio hoje é priorizar e saber dizer “não”. Conseguir focar nas oportunidades certas. E como eu faço isso? Com caderninho e caneta. Todo dia acordo e anoto quais são os meus focos do dia. Claro que, muitas vezes, sou atropelada por coisas que acontecem no meio do caminho – e tudo bem. Mas ter clareza sobre o que realmente importa é essencial, assim como garantir que esse foco esteja alinhado com o time.

Nos últimos três meses do ano, por exemplo, definimos mini-metas semanais. Se estamos fazendo algo que não tem a ver com a mini-meta, precisamos nos perguntar: por que estamos fazendo isso?

Raio X – Camila Nasser

Um fim de semana ideal tem… abraços da minha filha

Um livro que você recomenda: “O Mundo de Ontem”, de Stefan Zweig; e “O sol ainda brilha: A história real do homem que passou 30 anos no corredor da morte por crimes que não cometeu”, de Anthony Ray Hinton 

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Uma mania: Anotar tudo

Sua melhor qualidade: Paciência