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Além do Pix: como o ecossistema gaúcho ajuda afetados pelas chuvas no RS

Veja como empresários, entidades e outros agentes estão se mobilizando para ajudar as vítimas das enchentes

Enchente RS
Enchente RS. Foto: Agência Brasil

Acho que todo mundo já está sabendo agora: vivemos dias bem díficeis aqui no Rio Grande do Sul, dadas as enchentes que afetaram mais de 300 municípios do estado, devastando diversos deles e impactando até a capital gaúcha, Porto Alegre, com o Lago Guaíba batendo uma alta sem precedentes de 5,3 metros no começo da semana.

Se vocês me permitem ser franco, são dias em que a vontade é de simplesmente colocar a cabeça em um travesseiro e gritar. Mas pensando melhor, é um momento em que é preciso colocar a nossa energia para coisas melhores, de agir e ajudar. Aliás, se você ainda não fez a sua parte, não é hora de ficar parado. Colabore.

É um cenário de desespero, de incerteza, mas também de muita solidariedade, com dezenas de milhares de pessoas se mobilizando para apoiar outras dezenas de milhares que foram afetados pelas enchentes. De voluntários na linha de frente a pessoas doando e ajudando de longe, a onda de solidariedade tem sido um alento em dias muito complicados para a comunidade gaúcha.

Do ponto de vista das grandes empresas, já deu pra ver muitas ações legais feitas por diversas delas – e a gente até falou de algumas – assim como apareceram algumas duvidosas (condicionar doações a compras? really?). Até mesmo no ecossistema empresarial gaúcho, diversas marcas locais deixaram a desejar na hora de apoiar seus conterrâneos.

Entretanto, olhando pelo lado positivo, diversos agentes do ecossistema de inovação gaúcho resolveram colocar a mão na massa, e foram muito além do apoio financeiro – ou além do Pix, como um deles quis dizer – para fazer a sua parte neste momento em que todos precisam se mobilizar. Aqui estão alguns relatos.

Saúde na linha de frente

Maikol Parnow pode ser mais conhecido por ser um dos fundadores da healthtech Hygia Saúde, mas nos últimos dias ele deixou seus afazeres de CEO em segundo plano para encarar a linha de frente nos resgates de pessoas ilhadas nas áreas alagadas em Porto Alegre. O que começou como uma decisão desesperada para retirar suas sobrinhas de uma área alagadas, virou um trabalho contínuo que nos últimos dias resgatou cerca de 10 mil pessoas.

“No primeiro dia estava contando, mas quando passou de 500 pessoas eu parei de contar. São vários pontos que estamos tirando. O que tem de condomínio, é muita gente”, disse ele, em uma entrevista à Band News.

Inclusive, Maikol era um dos integrantes do time que ajudou o “Seu Clóvis”, um morador do bairro Humaitá, uma área bastante afetada, a resgatar seus quatro cachorros (ou “filhos”, como ele dizia), em um vídeo que viralizou e emocionou pessoas em todo o país.

Enquanto seu CEO foi para a linha de frente, a Hygia também colocou a sua estrutura para apoiar a população gaúcha, suspendendo seus atendimentos não-emergenciais durante a semana e colocando a sua equipe para voluntariar nos mais de 100 espaços de apoio que foram criados em Porto Alegre. “Diante dessa situação desafiadora, estamos comprometidos em oferecer auxílio a todos que necessitam”, afirmou a empresa, em seu perfil oficial no Instagram.

Atendendo ao chamado

Quando a crise com as enchentes começaram no Rio Grande do Sul, o cofundador da martech BPool, Beto Sirotsky, estava em São Paulo. Entretanto, ao ver a crise se agravar, ele não ficou contente em ajudar à distância. Com o aeroporto de Porto Alegre fechado devido à inundação, ele pegou um avião até Santa Catarina e voltou de carro até a capital gaúcha, cidade onde nasceu e cresceu.

No momento em que a reportagem do Startups entrou em contato com Beto, ele estava trabalhando como voluntário em um abrigo, cumprindo um papel peculiar: estava montando guarda em frente ao banheiro feminino do local, um cargo que foi criado como resposta a relatos de possíveis abusos sexuais que aconteceram em abrigos no estado.

Para quem não conhece a fundo o sobrenome de Beto, vale explicar que ele é parte da família que comanda a RBS, o maior grupo de mídia do Rio Grande do Sul. Para este que vos escreve, ver este tipo de cena dá uma boa noção de como esta tragédia tem mobilizado pessoas de todas as origens e de todas as camadas sociais do estado.

“Cada um tem que ajudar do seu jeito. Uns vão pra frente, uns doam o que podem. Não tem uma regra. A minha vontade foi a de estar perto dos meus conterrâneos e fazer o certo de acordo com o que eu sentia”, afirmou Beto.

Quanto à BPool, Beto diz que o negócio pode esperar uns dias, e o que for urgente, a empresa continua rodando com seus profissionais em outros estados. “Tenho bons sócios, uma equipe impecável, e isso me permite focar no que importa pra mim nesse momento. Foi a mensagem que passamos nesse momento, de tocar o negócio no que for necessário, mas também de priorizar a ajuda ao Rio Grande do Sul”, diz Beto, completando que a equipe que a empresa tem no RS também foi liberada para voluntariar em ações de apoio aos necessitados.

Salvar vidas primeiro, depois recuperar o Caldeira

Um dos símbolos da ressurgência do ecossistema gaúcho de inovação, o Instituto Caldeira foi totalmente afetado pelas enchentes, pois fica no Quarto Distrito, uma das áreas próximas ao Guaíba e que foi massivamente afetada pela cheia das águas. Segundo o diretor executivo do local, Pedro Valério, em algumas áreas do instituto, a água bateu nos dois metros de altura.

Como alguém que frequentava o local, uma área de 22 mil metros quadrados que recebia mais de 1,6 mil pessoas diariamente, ver as fotos do Caldeira debaixo d’água chega a ser um choque. Mais de mil startups são ligadas ao hub, sendo que praticamente metade delas são de Porto Alegre e usavam ativamente o espaço.

Post de Pedro Valério em seu Instagram (Foto: reprodução)
Post de Pedro Valério em seu Instagram, mostrando o alagamento do Instituto Caldeira. (Foto: reprodução)

Entretanto, durante a semana, o foco do time do Instituto Caldeira não foi tanto em pensar na recuperação futura do espaço, mas sim destinar todos os esforços à arrecadação de dinheiro e itens emergenciais para apoiar os abrigos no estado. O Caldeira chegou inclusive a lançar uma campanha própria (pelo pix [email protected]) para apoiar instituições atuando na linha de frente.

Aliás, por falar em linha de frente, diversos integrantes do hub, incluindo o próprio Pedro Valério, deixaram um pouco de lado os seus cargos oficiais e dedicaram seu tempo ao resgate e socorro da população. Entretanto, agora que a maioria dos resgates humanos já foram feitos, o plano é aproveitar esse aparente alívio para pensar como recuperar o local daqui pra frente. “Eu tô na luta e compromisso de reconstruirmos o Caldeira. Dureza grande”, disse Pedro ao Startups, cansado, mas não desanimado.

Refúgio e colaboração

Para diversas startups e para os colaboradores que foram atingidos pelas quedas de luz e internet acarretadas pela tragédia, o Parque Tecnológico da PUCRS – o Tecnopuc – se tornou um refúgio. Localizado em uma área não afetada pelas águas, o local colocou sua estrutura de energia e wi-fi a disposição de profissionais e empresas do ecossistema.

Em meio a tudo isso, o parque se tornou o ponto de encontro para a criação de iniciativas de apoio em meio à crise. Um grupo de trabalho formado no Tecnopuc – e com integrantes de diversas esferas do setor de TI do estado – liderou o desenvolvimento do Ajuda RS, um sistema que conecta as necessidades dos abrigos com as doações disponíveis em tempo real.

Rapidamente a iniciativa se expandiu em outras aplicações de apoio à rede que foi se formando para socorrer e abrigar as pessoas afetadas pelas enchentes. Outro coletivo está desenvolvendo o Abrigos RS e o Apoio Enchentes RS. O primeiro é de uso exclusivo de órgãos públicos e vai integrar as informações a respeito dos abrigos para que as instituições tenham acesso aos dados em tempo real sobre os desabrigados.

A partir dessa fonte, foi gerado o aplicativo Apoio Enchentes RS, que vai conectar abrigos à população, profissionais liberais e empresas. “A proposta é que seja equivalente à lógica do Tinder, mas conectando abrigos com a população, que terá acesso de forma atualizada sobre as necessidades de cada lugar. Por outro lado, as pessoas e profissionais liberais, poderão cadastrar como querem ajudar”, explica Melissa Trevisan, uma das lideranças do projeto. O aplicativo está em processo de aprovação nas apps stores e em breve estará disponível para o público.

“De um desafio nasceu uma rede de apoio de dezenas de profissionais em diferentes lugares, e estamos desenvolvendo uma solução para conectar diferentes iniciativas que surgem de forma orgânica”, disse em nota Filipe Toledo, que atua como um dos coordenadores dos voluntários da área de TI reunidos no espaço Talento Empreendedor do Tecnopuc.

Estimulando o voluntariado

A Deskfy, startup de soluções de workflow para profissionais de marketing tem sua sede em um dos municípios da grande Porto Alegre mais afetadas pelas enchentes: em São Leopoldo, a 40 km da capital, está com 82% da sua população desalojada devido à cheia do Rio dos Sinos, que faz parte da bacia do Lago Guaíba.

Apesar de ser uma empresa que opera 100% no modelo remoto, ela não chegou a sentir imediatamente os impactos no negócio, mas a dor veio por outros motivos. “Nós, enquanto empresa remota com raízes gaúchas, sentimos profundamente por nossos familiares e colegas”, disse Victor Dellorto, CEO da martech, ao Startups.

Entretanto, para transformar essa dor em energia para algo melhor, Victor resolveu agir. “Além da ajuda financeira destinada aos colaboradores fortemente impactados, contribuindo com a reposição de todos os eletrodomésticos, assumimos o compromisso de transformar nossa iniciativa em um movimento contínuo por meio do Voluntário Remunerado”, explica.

Me dói ver São Leopoldo, cidade onde me formei jornalista, sofrendo assim (Foto: Prefeitura de São Leopoldo/divulgação)
Me dói ver São Leopoldo, cidade onde me formei jornalista, sofrendo assim (Foto: Prefeitura de São Leopoldo/divulgação)

Com a iniciativa, a empresa permitirá, por tempo indeterminado, que os colaboradores da Deskfy dediquem meio expediente, todos os dias, para ações de voluntariado. “O momento atual requer respeito, cuidado e colaboração. Não é possível sair de um episódio como esse sem questionar a importância de nossos valores enquanto empresa e cidadão. Não posso dizer que a prioridade mudou; pelo contrário, ela se fortaleceu diante desse cenário”, finalizou Victor.

Acionando a rede

Antes das enchentes atingirem Porto Alegre e realmente ganharem uma visibilidade maior no cenário nacional e internacional, as chuvas já tinham afetado diversas regiões do interior do Rio Grande do Sul, e um dos primeiros agentes do ecossistema local a se posicionar quanto a isso foi a Gramado Summit.

Antes mesmo das águas chegarem à capital gaúcha, a organização do evento abriu suas redes sociais para divulgar diversas iniciativas de apoio aos municípios do Vale do Taquari e Serra, que já estavam sentindo os impactos das chuvas desde o começo da semana passada.

“Aqui em Gramado sofremos os impactos das chuvas, com deslizamentos e vítimas, mas não chegou ao grau de destruição que vimos em outras cidades. Mesmo assim, vendo o restante do estado sentimos a necessidade de fazer o certo. Foi algo que partiu de cada um de nossa equipe, e todos se comprometeram a ajudar, à sua maneira”, destacou o CEO da Gramado Summit, Marcus Rossi, em conversa com o Startups.

Entretanto, para Marcus, fazer as conexões de sua rede com os órgãos de apoio não foi o suficiente. Esta semana, a Gramado Summit anunciou que toda a arrecadação dos ingressos para a edição Punta Del Este do evento, que ocorre em setembro, será destinada a ações de reconstrução das cidades após as enchentes. Cerca de 2 mil pessoas são esperadas para esta edição.

Segundo Marcus, a ação da Gramado Summit é apenas uma de diversas mobilizações do ecossistema para ajudar a população gaúcha. “Tem uma galera gigante que tá ajudando como o pessoal da foodtech Feed.me ou da Dobra, em Montenegro (um dos municípios mais afetados no interior do estado), que tá fazendo grandes coisas neste momento”, afirma.

Aliás, por falar em grandes coisas, a Feed.me está a frente de um trabalho na parte na alimentação que já movimenta mais de 12 cozinhas solidárias, entregando cerca de 30 mil marmitas e milhares de litros de água em municípios bastante atingidos na Grande Porto Alegre, como Guaíba e Eldorado do Sul. Chegaram até a fechar uma rodovia estadual para receber uma carga de mantimentos por avião. Nada mal.

Pix não é o suficiente

Tásia Skolaude estava de viagem marcada para o Rio Grande do Sul para o aniversário de sua mãe, entretanto os planos foram drasticamente mudados em função do cenário atual. Entretanto, ela não se contentou em ajudar com doações à distância. Profissional com 18 anos no mercado de marketing e passagens em empresas como RBS e a gaúcha Meta (onde foi CMO), ela resolveu colocar a sua rede de contatos para funcionar e fazer mais pelo estado, mesmo ficando em São Paulo.

“Vendo tudo pela televisão, me deu uma inquietude para mobilizar essa rede para gerar mais impacto positivo, conectando pessoas relevantes para fazer coisas relevantes”, destacou Tássia ao Startups. A partir disso nasceu um grupo de trabalho, apelidado de “além do Pix”, mobilizando profissionais, executivos e agentes públicos gaúchos para ajudar em diferentes frentes.

A partir desse esforço organizado, o grupo conseguiu conectar demandas de áreas emergenciais do estado a representantes da iniciativa privada (com nomes como Assaí, Mercado Bitcoin, GSK, entre outras), o que resultou no envio de mais de dez barcos para ajudar nos resgates, doação de 75 satélites Starlink para ajudar na conectividade das equipes de busca e resgate. Além disso, esses contatos renderam doações de outros itens como cadeiras de roda e carretas de água potável para ajudar os gaúchos.

“Acionando e mobilizando essa rede, conseguíamos saber em tempo real quais eram as demandas urgente, conectar com as pessoas certas e viabilizar o atendimento dessas necessidades com o apoio das empresas engajadas. A gente fala muito de networking para os nossos negócios, mas é emocionante ver como isso tem o poder de impactar de fato a vida das pessoas”, explica Tássia.

Quem também fez parte dessa rede foi o também gaúcho Eduardo Lorea, cofundador e CEO da Numerik (e só por fofoca, parceiro de Tássia). Além de seu papel como empresário, Eduardo usou o seu papel como diretor regional do South Summit para levar as demandas gaúchas a Madri, onde acontece o evento-mãe do South Summit Brazil – que acontece no Cais Mauá, uma das áreas mais atingidas pela enchente em Porto Alegre.

Em suas redes sociais, a CEO global do South Summit, Maria Benjumea, se pronunciou em apoio ao Rio Grande do Sul. “Agora é o momento de ser solidário. O Rio Grande do Sul, terra que me adotou no Brasil, e que me fez uma “gaúcha espanhola”, está sofrendo uma das maiores inundações de sua história”, afirmou.

Entretanto, segundo Eduardo, os esforços não pararam por aí. “Ela (Maria) está ativamente contatando o empresariado e o governo espanhóis para ajudar. Inclusive, foi a partir disso que disponibilizamos junto ao governo gaúcho um canal internacional de doações, que hoje está recebendo doações do mundo inteiro”, afirma.

Faça a sua Parte

Conversando com diversos outros empresários durante a semana, uma mensagem foi constante. Em um momento de grande crise, quem não foi afetado tem o dever de ajudar quem não teve a mesma sorte.

Então, caso você não tenha feito ainda, não deixe de fazer a sua parte para ajudar o Rio Grande do Sul.

Quer ajudar? Aqui nós mostramos como você pode fazer isso.