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A modernização dos benefícios precisa de direção, não de ruptura 

É possível inovar sem comprometer a lógica de proteção social que orienta o PAT, diz Suellen Cavalcante, Head de Compliance e Riscos da Biz 

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Setor de benefícios vem passando por uma transformação acelerada | Imagem: Divulgação
Setor de benefícios vem passando por uma transformação acelerada | Imagem: Divulgação

*Por Suellen Cavalcante, Head de Compliance e Riscos da Biz 

A decisão do governo federal de recuar da proposta que permitiria o pagamento de vale-refeição e vale-alimentação (VR e VA) via Pix interrompe, ao menos por ora, um movimento que parecia promissor à primeira vista, mas que trazia riscos reais ao ecossistema de benefícios no Brasil. A digitalização dos meios de pagamento é necessária e deve ser conduzida com responsabilidade, visão sistêmica e respeito ao propósito social desses instrumentos. 

A discussão em torno do uso do Pix nesse contexto não é apenas técnica ou operacional: ela tem impacto direto sobre o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) — uma política pública federal em vigor desde 1976. Criado para incentivar as empresas a oferecerem alimentação aos seus empregados. O PAT concede benefícios fiscais a quem cumpre regras claras de destinação e controle dos valores investidos. Os VRs e VAs, quando vinculados ao programa, devem ser utilizados exclusivamente para alimentação, dentro de redes conveniadas e sob fiscalização do Ministério do Trabalho. 

O mercado precisa de equilíbrio entre regulação e concorrência. Avançar em eficiência e transparência é fundamental, mas isso não pode ser feito com medidas extremas que ameacem a competitividade e a inovação do setor. Permitir que esses recursos sejam utilizados livremente via Pix — como propunha a iniciativa apoiada por entidades do varejo — colocaria esse modelo em xeque. Sem mecanismos adequados de rastreabilidade, os valores poderiam ser usados para outras finalidades, descaracterizando o benefício e ferindo diretamente os princípios do PAT. Na prática, isso iria abrir margem para que o vale-refeição se tornasse um crédito bancário comum, sem amparo regulatório ou controle social. 

Além disso, essa mudança comprometeria a sustentabilidade da rede de estabelecimentos credenciados, construída ao longo de décadas e responsável por garantir acesso a alimentação de qualidade em todo o país. A substituição desse modelo por um sistema de pagamentos irrestrito retiraria o foco do benefício social e enfraqueceria a estrutura de governança que sustenta o programa. 

Outro ponto crítico seria a perda da inteligência gerada pelo sistema atual. Os dados de uso dos benefícios são fundamentais para auditorias, melhoria de políticas públicas e para a tomada de decisões por parte das empresas. O Pix, como solução avulsa, não foi desenhado para esse nível de controle ou segmentação — e sua aplicação direta em benefícios sociais, sem adaptações, pode significar um retrocesso no que se conquistou em termos de rastreabilidade e transparência. 

É evidente que o setor precisa avançar em inovação. A adoção de novos meios de pagamento pode e deve ser considerada, desde que inserida em um ambiente regulatório coerente e que preserve os objetivos originais do sistema. O uso do Pix, por exemplo, pode ser viável se ocorrer dentro de plataformas que mantenham o vínculo com a função social do benefício, garantindo o controle de uso e a rastreabilidade das transações. 

A interoperabilidade entre bandeiras de vale-refeição – já em curso – é um bom exemplo de como é possível ampliar a concorrência e a liberdade de escolha do trabalhador sem renunciar à segurança. Também é importante destacar que o avanço da flexibilidade nos benefícios é uma tendência global e deve ser preservada. O trabalhador precisa ter mais liberdade para usar seu saldo de forma conveniente, de acordo com suas necessidades, sem amarras que reduzam sua autonomia. Qualquer mudança regulatória deve, portanto, priorizar a experiência e o bem-estar do usuário final. 

Nesse contexto, o setor de benefícios vem passando por uma transformação acelerada, com o surgimento de soluções mais flexíveis, personalizadas e alinhadas às novas demandas sociais e ao respeitar o perfil de cada trabalhador. As empresas que apostam nessa personalização e na liberdade de escolha contribuem diretamente para a melhoria da qualidade de vida desses indivíduos, garantindo não só o acesso à alimentação, mas também a outros serviços essenciais como um crédito para estudo ou compra de medicamentos, por exemplo.  

É possível inovar sem comprometer a lógica de proteção social que orienta o PAT. qualquer mudança regulatória precisa considerar o impacto em todos os elos da cadeia: trabalhadores, empresas que oferecem os benefícios, operadores, estabelecimentos e o próprio governo. Uma fiscalização mais rigorosa também é bem-vinda, desde que traga mais transparência ao setor e evite distorções — sem sufocar a dinâmica de funcionamento do mercado ou desincentivar a competitividade. 

A transformação do setor exige equilíbrio entre eficiência, inovação e responsabilidade social e não deve ser conduzida por pressões isoladas. É necessário um esforço conjunto, técnico e transparente para construir um modelo que funcione melhor para todos — com mais liberdade, mas também com mais proteção ao propósito original. A regulação inteligente, inclusiva e orientada à experiência do usuário é o caminho — e não a ruptura repentina de estruturas que ainda cumprem um papel social importante.