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Com tecnologia e definições regulatórias, Brasil pode se destacar na produção de carnes alternativas

Com tecnologia e definições regulatórias, Brasil pode se destacar na produção de carnes alternativas

*Gabriela Arbex, especial para o Startups

 

O Brasil tem grande potencial para se tornar um líder global na indústria de proteínas alternativas. A opinião é de Gustavo Guadagnini, diretor executivo da GFI Brasil – The Good Food Institute, entidade que trabalha pela inovação no setor alimentício, com foco em carne limpa e opções vegetais aos produtos de origem animal. O especialista lembra que, embora o país tenha entrado atrasado neste setor – em 2019, 11 anos após os Estados Unidos e a Europa –, apenas 2 anos mais tarde as instaladas por aqui já exportam para mais de 25 países.

“As perspectivas não são somente de comercialização no mercado interno, mas também o abastecimento do mundo com tecnologia produzida no Brasil, com produtos que foram feitos e plantados em solo nacional”, disse Gustavo, durante a 1ª edição do Fórum Internacional de Carnes Cultivadas e Proteínas Alternativas, realizado nesta semana.

Existe uma série de fatores que podem contribuir para essa nova realidade. Para Roberta Viana, cientista sênior da brasileira JBS, uma das maiores produtoras e exportadoras de carne do mundo, há uma mudança em curso. “Antes, as pessoas não sabiam que a carne cultivada era uma possibilidade. Hoje, isso já é uma realidade. A questão é: quanto dela conseguimos produzir?”, pondera. A estimativa é que a carne celular representará pouco mais de um terço (35%) do mercado mundial de carne em 2040, projetado para chegar a US$ 1,8 trilhão. Um percentual próximo aos 40% da carne convencional. A opção vegetal responderá pelos 25% restantes.

Como se faz?

A carne vegetal e a carne cultivada são os dois tipos de proteínas alternativas à carne convencional, obtidas por processos de produção mais sustentáveis e baseados em biotecnologia. A carne cultivada, por definição, é um produto idêntico em nível celular à carne convencional, produzida a partir da célula de animais em um espaço limpo e controlado, similar a um laboratório, em um processo que não envolve a criação e o abate. O animal é usado apenas como um doador de células.

“O processo de obtenção da carne começa com a retirada das células do músculo esquelético do animal. A mais importante é a célula-tronco, porque permite a regeneração quando o músculo é ‘lesionado’. Elas são interessantes porque têm uma grande capacidade de multiplicação e construção de fibras”, explica Roberta.

Para a Carla Molento, professora associada da Universidade Federal do Paraná, a maior aceitação das alternativas à carne convencional pelos consumidores pode ser compreendida a partir da fase que vivenciamos – o confronto. Segundo ela, ao tomar conhecimento de como são os processos de produção de alimentos, a sociedade vem demonstrando, cada vez mais, um profundo desgosto, que tem levado à não aceitação da forma como os animais são tratados. “É a partir daí que as pessoas buscam novas possibilidades alimentares, movimento que culmina no crescimento e popularização do vegetarianismo e veganismo, ainda que a sociedade, em sua maioria, permaneça carnívora. Os motivos para o desenvolvimento dessa nova indústria abrangem a justiça com os animais, sustentabilidade, segurança alimentar e saúde pública”, diz.

Sustentabilidade e desafios

A sustentabilidade também é parte fundamental da equação. A criação de animais da forma que vemos hoje implica em um maior consumo de energia para funções vitais, como temperatura, processos metabólicos, locomoção e crescimento; envolve produtos e dejetos decorrentes desses processos metabólicos; está vulnerável a infecções por patógenos, inerentes da vida animal; e envolve seres com percepção sensorial, como cognição e emoções.

Além disso, os impactos ambientais derivados do desperdício energético culminam também no desperdício de recursos naturais. A pecuária utiliza 80% das terras cultiváveis do planeta, embora ofereça apenas 18% das calorias consumidas, alerta Cynthia Schuck, doutora em Zoologia, epidemióloga e membro da IVU – International Vegetarian Union. Para se ter uma ideia, a agricultura celular é capaz de reduzir de 2 anos para 5 semanas o tempo para fazer o mesmo quilo de carne.

Embora muito mais sustentável, a adoção em larga escala da carne cultivada ainda nos impõe muitos desafios. Segundo Fernanda Vieira Berti, consultora científica de foodtechs, healthtechs e agtechs, Mark Post foi o primeiro pesquisador desse ecossistema, tendo lançado o primeiro hambúrguer produzido em laboratório em 2013. Ele também foi responsável pela redução dos custos do processo: de 250 mil euros para 10 euros.

Depois de Post, diversos pesquisadores e cientistas se voltaram a esse mercado. Recentemente, a Shulamit Levenberg, sócia da Aleph Farms e engenheira biomédica com enfoque no desenvolvimento de biomateriais e de tecidos vascularizados, recebeu um aporte de US$ 2,5 bilhões da brasileira BRF, que está apostando no desenvolvimento da primeira tecnologia da empresa. A expectativa é trazer a carne cultivada pela empresa para o Brasil até 2024.

Para Fernanda, o Brasil tem uma riqueza inestimável e, no que diz respeito aos gargalos tecnológicos que existem nesta nova cadeia de alimentos, em termos de célula, contamos com pesquisadores que são referência, principalmente em genética e matrizes animais. “A agropecuária é um grande aliado de linhagens e similares e tem potencial para se tornar parte deste novo produto. A biodiversidade brasileira é um outro segmento que precisa ser encarado com um olhar diferente, para que tenhamos a condição de usar os ingredientes brasileiros no desenvolvimento de novas formulações. Os subprodutos da agroindústria seriam fortes aliados para que possamos explorar essa riqueza que temos a nosso favor.”

O processo regulatório ainda é um dos empecilhos no ambiente doméstico. Julia Coutinho, diretora-executiva da Regularium Consultoria, salienta que as empresas hoje se encontram num cenário de incerteza jurídica. Existem normas que tratam de produtos de origem vegetal, principalmente de matérias-primas, mas não existe assertivamente um cenário definido pela Anvisa ou pelo Ministério da Agricultura para as startups que estão inovando no mercado de carne cultivada. “Existe uma sobreposição de normas. Não se sabe se o marco regulatório ficará com a Anvisa ou com o Ministério. Isso está levando a um risco no mercado e nos produtos que já estão disponíveis para compra de falha regulatória. Ou seja, quando o setor regulado – a indústria – não sabe que norma seguir e que diretrizes acompanhar, a situação de vulnerabilidade se acentua, principalmente de notificações e infrações sanitárias, dependendo do entendimento do fiscal”, explica.

O que já é realidade

O Brasil e o mundo já têm exemplos importantes de que caminho seguir. Tiago Teles, da foodtech brasileira The New (ex-The New Butcher), é um deles. Ele segue três pilares fundamentais em seu negócio: saúde, sustentabilidade e sabor. Com a tecnologia certa e propósito, a empresa consegue oferecer novas experiências ao consumidor com uma proteína exclusiva à base de lentilha, ervilha e arroz.

Já a Kerry, companhia global de sabor e nutrição, apoia-se num conceito inspirado na definição literal da palavra “radícula”, que significa a parte do embrião da planta que desenvolve a raiz primária. No portfólio da empresa estão proteínas vegetais sustentáveis à base de soja e ervilha, prebióticos, probióticos e fibras de alta solubilidade. Enquanto isso, a Ambi Realfood, fundada por Bibiana Franzen Matte, produz carnes cultivadas a partir de células bovinas isoladas com tecnologia de biologia celular e engenharia de tecidos. Primeira startup brasileira do setor, é uma ramificação da Núcleo In Vitro, empresa de biotecnologia fundada em 2019 e que trabalha em mais de 90 empresas em 10 países diferentes.

Outra referência é a NotCo, empresa chilena de tecnologia de alimentos que produz alternativas à base de plantas para produtos alimentícios de origem animal com a adoção da inteligência artificial. Segundo Flávia Buchmann, CMO da empresa, a IA tem a capacidade de analisar e entender milhões de receitas e preparações e ajuda a encontrar as melhores combinações para replicar sabor, funcionalidade e perfil nutricional das referências que usam ingrediente de origem animal.