Artigo

2024 > 1984

Como 2024 amplificará o mundo distópico do livro 1984 de George Orwell, alavancado pela tecnologia e inteligência artificial.

Foto: Midjourney
Foto: Midjourney

*Por Fernando Taliberti, empreendedor serial, CEO e co-fundador da startup Pannacotta

À medida que entramos pelos portões de 2024, nosso mundo replica os cenários distópicos de ‘1984‘ de George Orwell. Nossas interações diárias com a IA carregam os perigos de viver em um regime totalitário, embora não um controlado pelo governo. Nossa privacidade é detida por corporações e seus algoritmos, manipulando nossas escolhas e moldando nossos pensamentos.

A profecia de Orwell sobre vigilância e controle do pensamento, originalmente uma ficção distante de décadas à frente, é agora uma imagem atualizada da nossa era digital, onde cada clique e conversa alimenta uma enorme e invisível rede de neurônios digitais. Essa rede, movida pela lógica fria da IA, sutilmente direciona nossas decisões, nos conduzindo por caminhos que acreditamos ter escolhido.

Nessa nova realidade, o outrora hipotético ‘Grande Irmão’ (Big Brother) de Orwell não precisa mais nos observar através de telas em nossas paredes; em vez disso, carregamos voluntariamente os dispositivos de monitoramento nos bolsos, compartilhamos nossos pensamentos em plataformas digitais e vivemos sob o olhar invisível, porém sempre presente, de algorítmos de supervisão. Ao entregarmos nossos dados e livre arbítiro, é imperativo examinar até que ponto estamos conscientes de como eles são usados para nos manipular. Vamos recuperar a narrativa de nossas vidas, ou nos tornaremos meros fantoches dançando ao som da mão invisível que nos manipula?

Explorando os Pilares de ‘1984’ em 2024


Para mergulhar nas versões modernas do mundo de Orwell, é crucial entender as entidades abrangentes nesta paisagem distópica.

O Partido e o “Grande Irmão”

Em ‘1984’, O Partido era a oligarquia dominante, uma autoridade incontestada exercendo controle total, e o Grande Irmão era sua personificação, uma figura onipresente monitorando e ditando cada aspecto da vida.

Em 2024, essas figuras não representam partidos políticos reais ou um famoso reality show. Ao invés disso, representam um sistema intrincado de dinâmicas econômicas e de poder impulsionados pela tecnologia. Nesta complexa rede, os papéis não são facilmente atribuíveis a uma figura específica, nem governamental ou corporativa.

Descobrir quem é o Grande Irmão em 2024 é tão difícil quanto entender se ele realmente existe em 1984. De fato, enquanto os atores neste sistema estão em constante movimento, competição e conflito, o sistema em si permanece estável. Sua constante fome por poder, lucro e crescimento define os protagonistas a cada cena, enquanto o roteiro permanece sob controle.

Ainda assim, os braços do Partido, os quatro ministérios, são interessantemente traduzidos quarenta anos à frente deste futuro imaginário.

O Novo Ministério do Amor

No ‘1984’ de Orwell, o Ministério do Amor incutia medo e obediência a um líder tirânico através da brutalidade. Avançando para 2024, os métodos evoluíram, mas a essência permanece. O ‘Ministério do Amor’ de hoje não opera através da violência; é muito mais sutil. Este ministério é uma fusão de algoritmos, habilmente projetados para semear não o medo, mas um amor profundo e inquestionável pelo que vende mais.

É um sistema que não impõe lealdade a um ditador, mas às marcas e ideologias que geram o maior lucro. Esses algoritmos ajustam sutilmente nossas preferências, direcionando nossos afetos para aqueles que mais investem para capturar nossa atenção. Eles não influenciam apenas o que compramos, mas também como pensamos, quem admiramos e até nossa percepção da realidade. Nesta nova era, o ‘líder oculto’ não é uma pessoa, mas a ‘mão invisível’ das forças do mercado, e nossas emoções e pensamentos são as mercadorias sendo negociadas.

O amor pelas coisas promovidos pelos vieses dos algoritmos de redes sociais, pelos inventivos comerciais dos motores de busca, pelas recomendações de produtos das plataformas de comércio eletrônico e as de conteúdo dos aplicativos de streaming são só o começo. A IA foi além de assumir personalidade para nos entreter e ajudar com o dia a dia da casa. Em 2024 ela pode se tornar sua(o) namorada(o) virtual, ou melhor, a arma definitiva do Ministério, semeando o amor ao algoritmo em si!

Enquanto em 1984, impor o “amor” era o papel da Polícia do Pensamento, que precisava de meios para monitorar tudo o que falávamos e para onde íamos, seu equivalente em 2024 é muito mais sofisticado. Os dispositivos de vigilância não estão apenas presentes em nossas casas, mas sim sempre conosco. Eles rastreiam nossa localização e ouvem nossas conversas.

Os sonhos do Grande Irmão se tornaram realidade. Mas a violência não é mais necessária para moldar o que amamos e odiamos. A mesma Polícia do Pensamento que monitora, usa simultaneamente as informações coletadas para nos direcionar onde necessário. Tudo funciona perfeitamente em harmonia com os demais Ministérios, especialmente o Novo Ministério da Verdade.

O Novo Ministério da Verdade

Em ‘1984’ o trabalho do protagonista no Ministério da Verdade envolvia reescrever manualmente a história para adequá-la às narrativas do governo, em constante mudança. Avançando para 2024, essa reescrita da realidade tornou-se um processo muito mais sofisticado e automatizado.
Nas redes sociais e em outras plataformas digitais, algoritmos ditam o que vemos e lemos.

Eles determinam as postagens que aparecem em nossos feeds, os vídeos que são reproduzidos automaticamente e as opiniões inseridas em nossa consciência digital. Aqui, a verdade não emerge de um consenso democrático ou de decretos totalitários, ao invés disso, ela é fabricada e distribuída de maneira impessoal e despreocupada por corporações focadas unicamente no lucro. Mas esse problema é tão 2022…

Em 2024, Modelos de Linguagem de Grande Escala (LLMs) se tornam integrantes de nossas interações digitais diárias. Eles não oferecem apenas uma lista de links para explorar; em vez disso, fornecem respostas únicas e coesas, tecidas a partir de uma vasta tapeçaria de dados. A verdade apresentada a nós é uma narrativa cuidadosamente construída por algoritmos complexos. E isso é apenas a ponta do iceberg.

Verdade manipulada pela inteligência artificial (Foto: Midjourney)
Verdade manipulada pela inteligência artificial (Foto: Midjourney)

A IA evoluiu para ser capaz de criar avatares digitais perfeitamente convincentes de qualquer pessoa. Nossas imagens e vozes podem ser facilmente clonadas, “nos” fazendo dizer ou fazer coisas que nunca pretendemos, desde postar nudes falsos até nos render ao regime totalitário mais próximo.
Enquanto em 1984, um espaço físico chamado Sala 101, era usado para torturar pessoas até que pudessem acreditar em qualquer coisa, em 2024, nosso credo é alterado digitalmente, onde quer que estejamos e, na maioria das vezes, sem dor.

Para tornar as massas mais fáceis de manipular e controlar, diminuindo a consciência e evitando uma revolução, o Partido em 1984 implantou uma nova língua: Novilíngua. Sua estrutura e palavras tornavam-se mais simples a cada ano para criar conformidade de pensamento em toda a população. Em 2024 não é a simplicidade, nem a uniformidade que está tornando as pessoas menos inteligentes. Isso é alcançado por artifícios tecnológicos que tornam cada vez mais fácil consumir conteúdo e bens físicos, ambos servidos a nós por algoritmos que aprenderam a influenciar nossos comportamentos. Nos encontramos constantemente gastando tempo rolando sem pensar pelos feeds de conteúdo que não deveriam nos interessar, comprando de tantas coisas de que não precisamos. A nova linguagem de 2024 é o consumo desenfreado.

Nossas crenças e desejos são moldados por esse dilúvio de informações falsificadas: falsos influenciadores, celebridades, escritores e até criminosos povoam nossos feeds. E nem precisamos de “óculos de esqui” de alta tecnologia para submergir neste universo paralelo. É fácil entrar, o verdadeiro desafio está em escapar dele. O Novo Ministério da Verdade não usa máquinas de escrever, mas fazendas de GPUs, gerando novas realidades em forma de imagens, vídeos e áudios, instantaneamente personalizados para cada indivíduo.

Essa complexa maquinaria forja nossa realidade não para mudar o passado, mas para definir o futuro: quem é eleito, quem vence guerras, quem lucra e quem passa fome.

O Novo Ministério da Paz

No ‘1984’ de Orwell, o Ministério da Paz orquestra, ironicamente, um estado perpétuo de guerra, de conflito. Em 2024, nosso moderno Ministério da Paz, embora não seja uma entidade formal, é uma intrincada rede de influências econômicas e digitais. Esta rede não apenas espelha o paradoxo do antigo ministério; ela o amplifica, entrelaçando guerras reais com uma guerra digital e psicológica incessante, alimentada por interesses econômicos. Estas batalhas, embora aparentemente separadas, estão profundamente entrelaçadas, com a frente digital, que muitas vezes prepara o palco para o conflito físico.

Enquanto Orwell fabrica uma narrativa de guerras fictícias entre tiranos totalitários, os equivalentes contemporâneos desses ditadores jogam verdadeiros jogos de guerra, frequentemente sem controle pelo mundo democrático. As intrincadas interdependências econômicas entre países com diferentes orientações políticas agem mais no interesse da estabilidade financeira do que no da liberdade.

As guerras que ameaçam populações privilegiadas capturam a maior parte da atenção do mundo, mas este “ministério atualizado” também alimenta os motores econômicos às custas de liberdades pessoais. Povos desprivilegiados permanecem invisíveis, até porque seus conflitos frequentemente servem como engrenagens nesta mesma máquina. Nestas terras esquecidas, sangue e liberdade são os sacrifícios escondidos que mantêm as rodas do consumo girando em nações mais desenvolvidas.

Além disso, o arsenal deste Ministério se estende ao domínio digital, onde a opinião pública não é apenas influenciada, mas sim polarizada e manipulada para os extremos, chegando ao irracional apoio da massa a atos terroristas. Um cenário distópico, antes confinado às páginas da ficção, está assustadoramente se desenrolando em nossa realidade.

O Novo Ministério da Abundância

Em “1984”, o Ministério da Abundância era um nome irônico para uma organização responsável pelo estado perpétuo de escassez e fome. Em nossa versão de 2024, o moderno “Ministério da Abundância” opera sob um disfarce diferente, mas seu impacto é igualmente distópico. Este ministério não cria escassez através de racionamento; em vez disso, fomenta um mundo onde o consumo é rei, mas acessível aos privilegiados.

O novo Ministério da Abundância opera conectando mercados globalmente, mantendo e expandindo oligopólios que priorizam o lucro em detrimento da distribuição equitativa de recursos. Ele promove uma cultura de consumo implacável, impulsionando as massas a desejar e adquirir mais e mais, enquanto esgota os recursos naturais do mundo a uma taxa insustentável.

Como resultado, não estamos apenas acabando com as riquezas do nosso planeta, mas também estamos alimentando as mudanças climáticas em um ritmo alarmante. Este consumo desenfreado, impulsionado por algoritmos de IA que movimentam as máquina da publicidade e manipulação de mercado, acelera a degradação ambiental, preparando o terreno para um futuro onde apenas os ricos podem se dar ao luxo de escapar dos piores efeitos de um planeta devastado.

À medida que os recursos diminuem e o planeta esquenta, os excluídos enfrentam a dura realidade de um mundo onde a sobrevivência se torna cada vez mais difícil. Este Novo Ministério da Abundância, em sua busca por crescimento e lucro incessantes, inadvertidamente (ou talvez deliberadamente) cria um futuro onde os ricos prosperam em ambientes artificialmente mantidos enquanto os pobres são deixados para perecer em um mundo que já não é capaz de sustentá-los.

Um bom ano novo?

Sob o véu da ignorância, reside nossa felicidade momentânea. Ao ignorarmos como nosso presente reflete uma versão distorcida do mundo distópico de Orwell, anestesiamos nossas preocupações. Continuamos, então, a navegar por nossas vidas, seduzidos pelo consumo, trocando sem perceber nossa privacidade por doses efêmeras de dopamina.

Cena de uma noite de reveillon no Times Square como cenário distópico de 2024 (Foto: Midjourney)

Os algoritmos permeiam tudo, facilitando, simplificando e tornando agradável nossa existência sob a vigilância do “Grande Irmão”. Eles agora falam nossa língua, camuflando a invasão, travestindo a manipulação de um conforto enganoso. A felicidade, agora, é um produto programado, uma satisfação pré-fabricada.

À medida que o relógio avança para 2024, não somos mais donos de nossos pensamentos, nossos desejos, nossa realidade. Nosso último brinde nos mergulha cegamente em um abismo de complacência digital e servidão voluntária, enquanto saudamos: “Feliz 2024!”