Desde a infância, a cientista de dados e pesquisadora em inteligência artificial (IA) Kizzy Terra entendeu que a educação seria um grande diferencial na vida. A gaúcha radicada no Rio de Janeiro, que amealhou centenas de milhares de seguidores nas mídias sociais com seu conteúdo educacional sobre tecnologia, agora avança seu novo projeto, a Alforriah, startup com foco na capacitação de futuros líderes nas áreas de ciência de dados e IA humanizada.
A Alforriah é fruto do Programação Dinâmica (PG), canal inicialmente criado como um hobby pelo pesquisador em computação visual e marido de Kizzy, Hallison Paz, em 2017. Kizzy logo se juntou ao projeto, atuando na produção de vídeos sobre temas desde programação e redes neurais até transição de carreira, saúde mental e como trabalhar em tecnologia no exterior. O casal conciliou o canal com outros trabalhos até virar a chave em 2019 para se dedicar inteiramente ao projeto e atividades relacionadas, como palestras e aulas.
“Percebemos que a tecnologia era uma forma de gerar oportunidades, uma ferramenta de mobilidade social. Se você é uma pessoa de baixa renda e periférica, acessar conhecimento que permita adentrar este mercado, apesar de todo aquele ambiente contra você, é algo transformador. Isso é o que nos faz vibrar em nosso trabalho”, diz Kizzy, em entrevista ao Startups.
O aumento na popularidade do canal também trouxe uma crescente procura por acompanhamento e discussões mais aprofundadas por parte da audiência, em particular no que diz respeito aos efeitos da IA na sociedade. No final de 2021, nasceu a Alforriah, que oferta um programa de mentoria e capacitação, com duração de 12 meses. A turma inicial teve início em outubro, e conta com um grupo diverso de participantes – mais da metade dos 28 alunos são mulheres e homens negros. Novas turmas devem iniciar a partir do segundo trimestre e o objetivo é chegar a 100 alunos até o fim do ano.
“A Alforriah foi um amadurecimento do nosso trabalho, mais um passo na direção de juntar pessoas de acordo com o que acreditamos, e também é [uma resposta à] demanda de quem nos acompanha. O objetivo é ensinar ciência de dados e inteligência articula de forma humanizada, estimulando o pensamento crítico e valores humanos, para que as pessoas não ignorem os vieses e consequências do que estão criando”, explica a fundadora, acrescentando que a proposta vai na contramão de cursos intensivos sobre o tema.
“Os programas que vemos hoje em dia são bem mais curtos – e as empresas até querem que seja assim. Só que não acreditamos que seja possível fazer essa transformação de forma expressa. É preciso preencher as lacunas, ter um tempo para que as pessoas possam se transformar e se desenvolver”, pontua a cientista.
Gerando oportunidades
Para além da capacitação, a Alforriah se posiciona como uma plataforma de apoio para pessoas que querem entrar no mercado de tecnologia para atuar na área de IA e dados, mas não tem acesso a oportunidades. Como parte de seus objetivos de impacto social, a startup também prevê bolsas de estudo para pessoas pretas. O formato envolve um estágio inicial, com sessões individuais e um diagnóstico das habilidades do aluno e seus interesses, com etapas posteriores envolvendo mentoras em pequenos grupos e aulas coletivas, com interação entre as turmas.
O valor cobrado pela mentoria, de R$2.400 por ano, ainda não garante um break-even, segundo Kizzy. Porém, o preço inicial considera a validação e ajuste da metodologia junto aos alunos, e a importância do acesso à educação para os fundadores: “A tendência é aumentar um pouco o valor para que o negócio se torne sustentável. Mas ao mesmo tempo, temos que considerar a capacidade das pessoas [de pagar] – não queremos restringir a entrada a quem já tem acesso [à educação]”, aponta.
Em seu roadmap futuro, a Alforriah também prevê projetos de consultoria para empresas em dados e IA humanizada. Segundo Kizzy, a ideia é combinar essa frente com educação, para oferecer uma formação prática aos formandos da mentoria. “Queremos que os mentorados tenham essa experiência de trabalho ao longo do programa – que já se baseia no aprendizado orientado a projetos – trabalhem nas demandas das empresas e sejam remunerados por isso”, acrescenta a fundadora.
A interação com empresas é também uma forma de viabilizar o viés social do negócio, diz Kizzy, mas o intuito não é customizar a mentoria para atender à agendas corporativas. “Ao invés de irmos para dentro da empresa, o ideal seria ter um ecossistema em que [profissionais] possam entrar, dar uma refrigerada e voltar para o ambiente onde eles estavam. O foco é nas pessoas, nos valores”, ressalta.
Agente de mudança
Filha de uma pedagoga e um economista com formação no colégio militar de Porto Alegre e no Instituto Militar de Engenharia, onde cursou engenharia da computação, Kizzy Terra deixou a carreira no exército em 2014 para abraçar um mestrado na área de modelagem de dados na Fundação Getúlio Vargas. A vontade de “colocar a mão na massa” em projetos de tecnologia e se posicionar como agente de mudança começou a crescer após a volta de um intercâmbio na Academia Militar dos Estados Unidos.
“Voltei com a cabeça totalmente mudada no aspecto pessoal e até coletivo: enquanto os americanos se veem no topo do mundo mesmo que o que estejam fazendo seja mediano, percebi que no Brasil conhecia pessoas incríveis que não tinham a mesma autoestima”, diz a pesquisadora. “Isso mudou minha forma de ver a contribuição que eu poderia fazer no Brasil: passei a olhar meu curso de outra maneira, e as possibilidades na tecnologia para mudar realidades.”
Ao longo do mestrado, Kizzy aproveitou para “viver o potencial da computação” e, junto com Hallison, começou a desenvolver aplicativos de celular e se envolver em diversas iniciativas, incluindo projetos na intersecção da tecnologia e identidade racial antes de começar o Programação Dinâmica. “Foi uma oportunidade de interagir com temas que estavam até então adormecidos, já que a vivência de temas sociais e discussões importantes sobre racismo e gênero sempre aconteciam em casa. Isso me empoderou muito para passar por ambientes em que eu era a única”, diz Kizzy.
Em paralelo à Alforriah, o casal pretende continuar trabalhando em seu canal no YouTube, que em 2020 ganhou o troféu do Creators Pitch, programa de aceleração voltado para criadores de conteúdo digital e desenvolvido pela Youpix e foi contemplado pelo Fundo Vozes Negras do YouTube para receber recursos para a produção de conteúdo este ano.
“Nossa missão é levar o conteúdo de tecnologia ao alcance de uma parcela plural da população, estimular o pensamento crítico e acessar mais oportunidades. No Programação Dinâmica, este ano queremos tocar em eleições, fake news: sabemos que vai ser uma fogueira, mas entrar nessa discussão e chegar em mais pessoas é necessário e parte do nosso trabalho”, aponta Kizzy.
O maior desafio na missão do casal, no entanto, é justamente a defasagem educacional no Brasil. “Além disso, estamos em um momento que é legal você ser ignorante sobre alguns temas, e isso gera muito desconforto para nós. Nos perguntamos quando foi que perdemos a vontade de querer aprender, se desenvolver querer transformar nossa realidade”, diz a fundadora, que também enfrenta outras camadas de desafios, como a atual lógica dos algoritmos e a entrega de conteúdos nas redes sociais, além do consumo da informação rápida e imediata, com cada vez menos tempo para reter a atenção da audiência.
No entanto, estes entraves não são impeditivos para os pesquisadores. “Sabemos que é um trabalho desafiador, mas percebemos que nossa presença virtual impacta as pessoas, elas se identificam e acreditam que [carreiras em tecnologia] são possíveis para elas. Acho que a maior influência que podemos ter é possibilitar que pessoas acreditem e sonhem, dado o momento tão difícil que vivemos no sentido de ter esperança”, pontua Kizzy.
“Nunca deixamos de reforçar as dificuldades e obstáculos, como o racismo e tudo o que a sociedade nos impõe. Eu consegui passar por isso apesar dos desafios por conta da educação, que foi o que me salvou em vários aspectos. Foi através dela que me constituí como pessoa, como mulher negra. As pessoas podem acreditar nestas possibilidades, para ter esperança e trazer prosperidade para suas famílias e para elas mesmas,” conclui.