* Guilherme Cervieri é vice-presidente de estratégia e M&A da unico
A Estônia é um país europeu com cerca de 1,3 milhão de habitantes e cujo território ocupa uma área pouco maior que o estado do Rio de Janeiro. Essa pequena nação, modesta à primeira vista, vem se tornando gigante em termos de empreendedorismo digital, firmando-se como referência no mercado de startups e identidade digital. O país que deu origem a unicórnios como Skype, Pipedrive e Transferwise, tem um número per capita de startups 4,6 maior que a média europeia (são 7 no total), segundo estimativas oficiais. O que explica tamanho sucesso?
Estive no país a menos de um mês e pude conhecer um pouco do seu ambiente de negócios. A primeira lição que fica é o trabalho de longo prazo. O sucesso da Estônia não veio da noite para o dia, mas é fruto de anos de investimento na construção de uma cultura digitalizada e favorável ao empreendedorismo.
A conveniência (não precisar se deslocar para fazer as coisas) e a soberania dos dados são fatores fundamentais para tamanha aceitação da sociedade estoniana à vida digital. Quase 99% dos cidadãos possuem um RG digital, que garante acesso a inúmeros serviços, incluindo o transporte público e o sistema de saúde. A Estônia tem na prática a ideia de colocar as necessidades do usuário no centro das atenções. A internet é vista como um direito básico e um pacote de dados com acesso ilimitado à rede é amplamente acessível para a população, saindo pelo equivalente a menos de 2% do salário mínimo.
Apenas três serviços públicos requerem a presença física do cidadão estoniano: casamentos, divórcios e transferências de titularidade de imóveis. Quaisquer outros procedimentos podem ser feitos pela internet. Até as eleições do país funcionam em modelo híbrido (presencial e online), sendo que 40% dos votos da última eleição estoniana foram registrados no formato digital.
Isso dinamiza a economia do país. Lá é possível abrir uma empresa em menos de 15 minutos e sem sair de casa – a título de comparação, o mesmo processo demora pelo menos três dias no Brasil. O sistema tributário estoniano também é muito mais simplificado, com o cidadão já recebendo seu imposto de renda preenchido para fazer apenas a conferência e validação, por exemplo.
Estímulo ao empreendedorismo
Vantagens como essas têm atraído empreendedores de todo o mundo – e a prática é estimulada pelas autoridades locais. Desde 2014, a Estônia mantém o programa e-Residency, permitindo que empreendedores não-estonianos abram empresas e até microempresas no país, em um típico caso de relação ganha-ganha: a Estônia atrai talentos e recursos do mundo todo, além de centralizar um enorme volume de dados; já os empreendedores desfrutam do ambiente econômico favorável do país e ganham acesso ao mercado da União Europeia.
Como resultado do e-Residency, mais de 6 mil negócios foram abertos na Estônia. Os chamados “e-residentes” – donos dessa “cidadania digital”, mas que não residem fisicamente no país – já formam uma comunidade com mais de 60 mil pessoas.
O sucesso econômico da Estônia mostra também a importância da sinergia entre vários atores sociais. O “boom” de empreendedorismo visto no país é a resultante de um projeto político de longo prazo, de um amplo trabalho jurídico – com a readequação da legislação do país para incorporar a tecnologia ao dia-a-dia das pessoas e à burocracia do Estado – e de investimentos pesados das empresas e do setor financeiro.
É fruto também de um projeto inovador de educação, que introduz a tecnologia no cotidiano escolar desde os primeiros anos e conta com um programa que conecta todas as escolas do país. Não por acaso, a educação pública da Estônia ocupa hoje o quarto lugar no ranking do Pisa, um dos principais medidores mundiais de qualidade de educação.
Por fim, o país se tornou referência na área de segurança digital. Um bom exemplo disso é o sistema X-Road, que permite o compartilhamento seguro de dados entre diversas organizações e departamentos do Estado, garantindo a integridade das informações sensíveis armazenadas sobre cada cidadão.
Assim, com investimentos sérios em infraestrutura, educação e segurança, a identidade digital aumentou a confiança e a credibilidade das relações entre pessoas e empresas na Estônia, favorecendo o desenvolvimento dos negócios. Hoje é mais rápido e barato empreender no pequeno país europeu, dada a redução da burocracia e do risco de fraude. O cidadão não precisa provar o tempo todo que é, de fato, ele mesmo – algo diferente do que vemos no Brasil, onde, infelizmente, ainda lidamos com um ambiente de descrédito, alto índice de fraudes e, consequentemente, elevada burocracia.
O sucesso da Estônia, nova capital europeia das startups, dá pistas de como fomentar uma nova onda de empreendedorismo também em nosso país. A tarefa não é fácil e requer união em torno de um projeto de longo prazo. Apostando na desburocratização, na educação digital e na valorização da tecnologia, o Brasil tem potencial para também ser referência de empreendedorismo digital.