*Por Guilherme Murtinho, VP Europa e Ásia da Transfero
Referência global em inovação no mercado financeiro, o Brasil tem corrido o risco de ficar para trás em relação ao estabelecimento de regras voltadas às stablecoins, que são criptomoedas mais estáveis por estarem atreladas a um ativo real. Estão em andamento três Consultas Públicas realizadas pelo Banco Central para obter subsídios para dar base à regulamentação do segmento. Entretanto, uma definição sobre o papel dessas moedas digitais no mercado brasileiro ainda não tem data para ocorrer.
O volume de operações em stablecoins dão uma ideia do seu potencial no mercado atualmente. Segundo relatório publicado em julho pela empresa especializada em dados do mercado financeiro FXC Intelligence, em 2024, o volume total de transações com stablecoins em todas as blockchains foi de US$ 5,7 trilhões em 1,3 bilhão de operações financeiras. Só no primeiro semestre deste ano, o montante registrado foi de US$ 4,6 trilhões em mais de 1 bilhão de transações.
Dada a importância que essas criptomoedas têm tido para o mercado, as principais economias do mundo fizeram importantes movimentos nos últimos meses para implementar regras envolvendo operações financeiras baseadas em moedas digitais. E o Brasil pode aproveitar esses exemplos como base para a regulamentação em debate visando segurança para os players envolvidos e sem travar as inovações que têm ocorrido no segmento.
Em julho deste ano, os Estados Unidos sancionaram o Genius Act, primeira legislação federal abrangendo o mercado cripto e com foco na regulação das stablecoins. A medida visa impor lastro pleno, auditorias rígidas e prioridade para detentores em casos de falência.
O efeito no mercado foi rápido: bancos e grandes instituições financeiras passaram a se movimentar para lançar stablecoins pois sabem que um ambiente regulado atrai capital e legitima o segmento. Além disso, uma lição clara que fica é a importância de proteger o mercado com pragmatismo para não prejudicar a viabilidade operacional dos emissores, assim como acontece ao impedir o uso de reservas para reestruturações.
Já na União Europeia, as regras para o segmento vigoram desde junho do ano passado a partir do MiCA (Market in Crypto Assets), que definiu um padrão robusto para as operações com stablecoins. A medida teve impactos positivos ao mercado da região gerando maior confiança aos players e estabilidade aos investidores de cripto, que sabem exatamente o que esperar das transações.
Por sua vez, a Ásia teve diferentes movimentos em relação às stablecoins. O Japão, por exemplo, optou por um caminho mais pragmático, com as stablecoins privadas coexistindo com CBDCs (Central Bank Digital Currency) e aprovação ao USDC para ser negociado sob regulamentação local. Já na Coreia do Sul, avança no parlamento um projeto para regulamentar o segmento. Entretanto, o Banco Central local tem alertado para riscos macro e de soberania, impondo assim dúvidas sobre o desfecho das normas. Ainda assim bancos coreanos já se organizam para lançar stablecoins até 2026.
Como se vê, houve uma aceleração sem precedentes na definição de regras para stablecoins entre as principais economias do mundo. Isso só reforça o quanto o Brasil precisa agir com urgência podendo se aproveitar dos acertos e equívocos que ocorreram lá fora e estão à nossa frente para avançar nessa área.
Os principais pontos positivos que as normas que já estão em vigor trazem para o segmento são a confiança que a clareza regulatória dá ao mercado, incentivando assim mais instituições a participar; abertura para inovações mais conscientes, que permitem experimentações com segurança, como é o caso do Japão com o modelo híbrido envolvendo “privados + CBDCs”; e maior inclusão e eficiência do sistema, com as CBDCs expandindo aqui a digitalização do Real a partir do Drex.
Há também pontos negativos que precisamos ter atenção para não prejudicar o ecossistema. Entre eles estão a rigidez de estrutura como o Genius Act, que pode proteger o segmento, mas, ao memo tempo, dificultar respostas em crises; os riscos de desintermediação, com CBDCs mal desenhadas podendo enfraquecer bancos e instituições financeiras; e falsa percepção tecnológica a partir das CBDCs, sendo que muitas são centralizadas e focadas em controle, e não em descentralização.
De maneira geral, países que regulam não apenas protegem seus cidadãos, mas atraem investimentos, fomentam inovação e ampliam a soberania monetária. A ausência de regras, por outro lado, não protege ninguém — apenas abre espaço para que soluções estrangeiras dominem.
O Brasil tem o potencial e a oportunidade de se tornar protagonista na nova era dos meios de pagamento digitais. Mas para isso, precisamos ter regras claras e equilibradas que incentivem o uso de stablecoins, regulem emissores com rigor e flexibilidade, e permitam coexistir com alternativas, como o Drex. Uma regulação bem desenhada não é barreira, mas sim incentivo. Ou assumimos a dianteira agora, ou ficamos atrás do que outros mercados já definiram.