*Por Geraldo Melzer e Franco Zanette, da ABSeed
Todos os investidores focados em software estão, neste momento, mergulhados em discussões sérias sobre como navegar o novo ciclo de transformações profundas na sociedade impulsionados pela inteligência artificial.
Soluções de software que até recentemente eram vistas como robustas e defensáveis passam a enfrentar o risco real de perda de relevância. Funcionalidades antes consideradas diferenciais estão sendo incorporadas por plataformas generalistas como GPT-4o, Claude e Gemini, pressionando empresas a se reinventarem rapidamente ou aceitarem a obsolescência.
Esse novo ciclo impõe um desafio claro na ótica do investidor: revisar de forma importante os frameworks de avaliação de startups e recalibrar a leitura de risco no estágio inicial.
Em IA, a vantagem, aparentemente, não está em chegar primeiro, mas em conseguir permanecer relevante por mais tempo. A era do SaaS nice to have acabou e os playbooks estão mudando rapidamente. Como Harry Stebbins trouxe, uma das métricas mais importantes para se olhar num software hoje em dia é o “time to clone”, ou o tempo estimado para se construir uma réplica do produto. Segundo Micha Kaufman, CEO da Fiverr, o “time to clone” deles, que era de aproximadamente 1,5 anos – no ano de 2024 – hoje estaria próximo de 3 meses.
Ferramentas como Windsurf AI e Replit, são bons exemplos de onde vem essa magnitude de transformação. A proposta de valor dessas aplicações é muito poderosa: transformar uma pessoa normal em um engenheiro e ampliar a capacidade produtiva de um engenheiro em 10X. As barreiras de entrada seguem caindo e nunca vivemos um momento tão fácil para se criar um produto na história da tecnologia.
Apesar do ambiente desafiador, estamos convencidos de que vivemos uma das melhores janelas de investimento em tecnologia das últimas décadas. A convergência entre um mercado mais racional, uma nova infraestrutura robusta e um novo ciclo tecnológico (IA) cria oportunidades relevantes para quem souber analisar risco com critério e visão de longo prazo.
Casos recentes de perda de relevância
A dinâmica de disrupção já está em curso.
A Jasper, depois de ter captado mais de $100M, perdeu espaço porque seu principal diferencial, geração de conteúdo com IA, foi rapidamente absorvido pelos próprios LLMs que usava como base. Sem dados proprietários ou integração real com o workflow dos clientes, tornou-se facilmente substituível por soluções generalistas mais baratas e flexíveis.
Perplexity, plataforma de busca com IA, começa a enfrentar pressão conforme OpenAI, Claude e Google integram funcionalidades similares nativamente, transformando a busca em uma feature, não um produto.
A Salesforce investiu cerca de US$8 bilhões na aquisição da Informatica, em um movimento visto como tentativa de manter relevância frente ao avanço das plataformas nativamente baseadas em IA.
Um exemplo mais próximo do nosso dia-a-dia é o Google Suite, que segue absorvendo as principais aplicações para o ambiente de trabalho, se apropriando da relevância da proposta de valor de aplicações que antes prosperaram integradas ao seu ecossistema, como a transcrição e análise de vídeo chamadas e muitos outros.
Esses exemplos mostram como, sem dados próprios, contexto ou profundidade tecnológica na proposta de valor, o risco de obsolescência cresce… e rápido.
MCP – Mais um elemento dando uma sacudida importante
Um fato recente mas importante no que diz respeito a defensibilidade das novas aplicações é a chegada do Model Context Protocol (MCP), lançado pela Anthropic. O MCP representa um avanço significativo na forma como os modelos fundacionais interagem com o mundo externo. Ele cria uma camada padronizada que permite aos agentes se conectarem de maneira direta e simplificada aos dados, ferramentas, APIs e sistemas diversos.
Na prática, isso significa que a habilidade de integrar um modelo a sistemas externos, algo que por muito tempo foi um diferencial técnico de muitas aplicações, passa a ser uma funcionalidade básica, disponível a qualquer modelo via uma espécie de “plugin universal”.
Ou seja, logo todas as soluções estarão integradas e o moat baseado em integrações perderá valor. O que antes era considerado uma via de lock-in, agora pode se tornar uma “commodity”
Nesse novo contexto, a real diferenciação não está mais na ponte entre modelo e sistema, mas no que acontece depois dessa conexão. A vantagem competitiva migra para o chamado “Last mile” — o ponto em que a IA precisa entregar valor concreto dentro de realidades específicas, exigentes e complexas.
Em artigo recente escrito por Jason Lemkin ele conta o caso da MangoMint, uma plataforma SaaS voltada para agendamentos em spas e clínicas. Ele percebeu que, com o avanço de ferramentas como ChatGPT ou Claude integradas ao MCP, os clientes finais podem interagir com o negócio (agendar consultas, por exemplo) diretamente via assistente de IA, sem saber qual sistema está por trás. Ou seja, a MangoMint corre o risco de se tornar apenas uma infraestrutura irrelevante, um “cano” por onde os dados passam, sem controle sobre a experiência do usuário ou valor percebido da marca.
Esses movimentos refletem a velocidade totalmente atípica com que o mercado está se reconfigurando diante da evolução dos LLMs e reforçam a necessidade de buscar um olhar mais atento, novos frameworks para se acessar risco ao se investir e empreender em software.
O framework 2×2 da Leonis Capital
A Leonis Capital, uma renomada gestora de venture capital baseada em San Francisco, focada exclusivamente em startups de inteligência artificial em estágio inicial, estruturou um bom ponto de partida para pensar esse cenário. Um framework simples e didático, que cruza dois eixos:
(1) o grau de verticalização da aplicação e
(2) a complexidade técnica da solução
O framework da Leonis classifica aplicações de IA generativa em quatro zonas de risco, combinando verticalização e complexidade técnica.
Na Zona 1 de alto risco estão soluções horizontais e simples como Jasper, ferramentas de prompt wrappers, resumos de documentos e bots genéricos de atendimento, que têm ciclo de obsolescência curto por serem facilmente replicadas por LLMs.
A Zona 2 apresenta risco moderado-alto e inclui aplicações simples voltadas a nichos como chatbots jurídicos básicos, buscas internas por setor e extrações simples de dados, que ganham tração rapidamente, mas são vulneráveis quando o setor passa a atrair grandes modelos.
A Zona 3 envolve risco moderado e abrange soluções horizontais mais complexas como Cursor para coding, Perplexity com busca e LLM e copilots técnicos, que são protegidas temporariamente por sua profundidade técnica.
Já a Zona 4 representa o cenário de menor risco, com aplicações verticalizadas e sofisticadas como Harvey no setor jurídico e Hippocratic AI na saúde, que exigem domínio de contexto, integração com workflows críticos, dados próprios e compliance, sendo pouco replicáveis por modelos generalistas.
O time do Leonis enfatiza que esse framework é dinâmico. A velocidade de evolução dos LLMs pode reposicionar uma aplicação em questão de meses. O que é sofisticado hoje pode se tornar trivial amanhã.
Novo brilho para Vertical SaaS
Sempre tivemos um olhar especial para SaaS vertical na ABSeed e nesse contexto os holofotes se viram ainda mais para esses mercados até então olhados por muitos investidores com um ar de certo desinteresse, pela restrição de tamanho de mercado.
No modelo tradicional de SaaS, mercado / TAM grande é “somente” o que buscava-se. Agora, isso tende a mudar um pouco. Quanto maior o mercado endereçável,maior a probabilidade de um modelo generalista entrar e absorver a proposta de valor, principalmente se não existir uma camada de complexidade / profundidade na aplicação.
Ao longo da nossa trajetória, tivemos casos emblemáticos como Aegro e Asksuite, soluções verticalizadas que se destacam nos setores de Agronegócio e Hospitalidade, respectivamente. Em ambos os casos, o desenvolvimento de funcionalidades profundamente alinhadas à realidade operacional desses mercados criou um nível de lock in com o cliente final muito superior ao das soluções horizontais. Além disso, tanto Aegro quanto Asksuite operam com dados críticos gerados a partir da interação entre os clientes de seus clientes e suas plataformas, o que amplia ainda mais a defesabilidade e o valor estratégico de suas soluções.
Não existe fórmula mágica, porém o caminho mais resiliente tem sido começar focado, com profundidade vertical e complexidade técnica. Esses fatores tendem a criar barreiras reais e aumentam a chance de construir algo mais defensável e duradouro.
GTM como Moat em Tempos de Transição de Plataforma
A linha que separava produto e distribuição está cada vez mais tênue. Em ciclos de mudança de plataforma, como o que vivemos agora com a ascensão dos LLMs, não é apenas o que se pode construir que muda, mas também como se chega até o cliente. A consequência natural: muitos dos playbooks clássicos de go-to-market estão perdendo tração, enquanto os novos ainda estão sendo escritos.
Se os LLMs forem, de fato, substituir o Google como principal interface de busca, o que substituirá o SEO e o tráfego orgânico como mecanismos defensivos? Essa é uma pergunta estratégica urgente.
Estamos diante de uma nova ordem: após um período de intensa competição entre modelos horizontais, haverá uma plataforma dominante. Ela definirá os padrões de distribuição de demanda e abrirá espaço para estratégias de aquisição e retenção radicalmente mais eficientes e sofisticadas.
Nesse novo ciclo, a capacidade de testar, adaptar e escalar novos canais será crítica. Grandes empresas terão o privilégio de distribuir apostas em múltiplas frentes, mas o empreendedor em estágio inicial precisará fazer escolhas cirúrgicas e apostar bem. Caberá ao investidor entender, caso a caso, o peso dos canais já existentes versus o potencial real de construir novas avenidas de crescimento.
Estamos em um momento onde os mecanismos tradicionais de defesa de mercado estão mais frágeis no início da jornada. E quando o “time to clone” cai rapidamente, a habilidade de encontrar caminhos eficientes de distribuição, que permitam capturar mercado com velocidade e qualidade, se torna não apenas desejável, mas fundamental. Talvez mais do que nunca.
ABSeed Wrap-up
O momento atual exige uma nova forma de olhar para risco em software. Aplicações horizontais e tecnicamente simples estão significativamente mais expostas à absorção por modelos fundacionais. Já soluções verticalizadas e/ou com alta complexidade técnica, integração real com o workflow do cliente, uso de dados proprietários ou atuação em ambientes regulados têm maiores chances de sustentar vantagem competitiva frente ao avanço dos LLMs e agentes.
Nesse cenário, o “last mile” tende a se consolidar como o novo campo de disputa. É nesse trecho onde não basta parecer inteligente, mas sim entregar valor prático e mensurável que define quem sobrevive. Vale mencionar uma fala provocadora de Varun Mohan, CEO da Windsurf (em processo de venda para a OpenAI por cerca de US$ 3 bilhões, segundo a Reuters):
“The idea of a startup having a moat is silly. The only real moat is speed. This is how startups beat incumbents.”
Essa visão reforça que, especialmente no estágio inicial, a obsessão por Moats excessivamente defensáveis pode também ser superestimada. Execução rápida, ciclos curtos de interação e eficiência em distribuição são, muitas vezes, os fatores que definem quem avança. O “Time to clone” nunca foi tão baixo e isso pode comprimir a janela de construção de valor das empresas. Ter um time com capacidade de execução excepcional nunca foi tão importante.
Se você está empreendendo em AI, nosso time está mergulhado no assunto e adoraríamos entender mais do seu momento.