*Yasodara Cordova é pesquisadora-chefe em privacidade na Unico
Em algum momento você já deve ter visto o cartoon em preto e branco de dois cachorros conversando em frente a um computador em algum jornal ou nas redes. O desenho “On the Internet, nobody knows you’re a dog” criado por Peter Steiner foi um dos mais reproduzidos na revista norte-americana The New Yorker nos anos 2000. Steiner ganhou mais de US$ 50 mil com sua reimpressão.
Hoje em dia, sua criação facilmente seria um meme em alta nas redes sociais. Apesar de já antigo, retrata a nossa atualidade. Em tempos de ChatGPT e do avanço de novas tecnologias baseadas em IA, como provar no ambiente da internet que você é você mesmo e não um robô?
A privacidade é um tema que às vezes vai de encontro com o tema da identidade entre especialistas e estudiosos da tecnologia. A ironia do cartoon de Steiner torna a reflexão ainda mais atual. A todo momento, criamos, reproduzimos e compartilhamos informações, características pessoais, fatos da nossa vida que, juntos, contextualizam quem nós somos para o mundo. Isso constrói e inspira a confiança de quem somos e com quem nos relacionamos para então realizar transações, matricular um filho na escola, ser atendido por um médico, conseguir um emprego e exercer diversas atividades no nosso dia a dia.
Na internet, computadores transformam essas informações em dados e esses dados constroem o que definimos como identidade digital. Quando realizamos transações online o anonimato perde sua finalidade, porque a identidade é a base da confiança.
Mas, para o que serve uma identidade digital? Ela simplifica e dá acesso às pessoas a uma infinidade de serviços e atividades para se realizar em um ambiente online de forma simples e segura. Existem inúmeras possibilidades que se abrem quando você tem uma identidade digital. É possível realizar transações e interagir com pessoas do mundo inteiro, mostrando quem você é e inspirando essa confiança por meio da confirmação dos fatos que te envolvem.
Porém, no Brasil, qual é o custo dessa identificação? O estudo “Custo Brasil da Identificação”, encomendada pela Unico à FGV, traz em números o que antes era uma percepção: os brasileiros desperdiçam R$ 174,2 bilhões por ano pela falta de métodos digitais de identificação. Isto equivale a cerca de 2% do nosso PIB ou um gasto anual por pessoa entre R$ 497,00 e R$ 830,00 para se identificar, ser contratado em uma empresa, ter acesso a produtos e serviços ou até mesmo exercer a própria cidadania.
Se pararmos para pensar, as atividades que envolvem provar que você é você mesmo são atribuições que vão te colocar em filas de espera, em duas horas de trânsito ou até te fazer faltar em um dia de trabalho para que você possa tirar uma identificação e certificar alguma coisa que precisa de uma confirmação em pessoa.
Essa ineficiência gera uma fatura alta, e ao mesmo tempo significa uma oportunidade para revolucionar a vida das pessoas por meio de novos processos e soluções como a identidade digital, onde não é preciso mais se deslocar para poder provar que você é, na verdade, quem você está dizendo que é. Processos digitais para comprovação de identidade tornam tudo mais simples e fácil, mas impactam no aumento do volume de dados existentes no ecossistema – o que representa também mais oportunidades para fraudadores e criminosos. Por isso, é tão necessário buscarmos um serviço de identidade digital sólido que garanta a privacidade e a segurança dos dados.
Globalmente, o cenário é tão peculiar quanto promissor. Já somos 7,6 bilhões de pessoas no mundo (dados do World Economic Forum, 2022) e dentre essas pessoas cerca de 1 bilhão deseja uma forma legal de identidade digital. Em muitos países onde não existe infraestrutura pública de identidade digital, as pessoas consideram até o perfil em uma rede social ou um número de telefone, por exemplo, como uma identidade que possibilite fazer transações e inspirar confiança em outros participantes do ecossistema.
Garantir que todos tenham uma identidade legal, incluindo registro de nascimento, até 2030 é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. Isso levou o próprio Banco Mundial a lançar sua iniciativa de Identificação para o Desenvolvimento (ID4D) em 2014. Na Unico, lideramos diversos estudos e pesquisas sobre privacidade, além de ser um valor inegociável da companhia e principal fator de diferenciação das nossas atividades.
Uma dessas pesquisas foi feita em parceria com o Instituto Locomotiva, a qual revelou que 71% das pessoas são a favor de um mecanismo para escolher quais dados querem compartilhar com cada instituição, seja ela pública ou privada. Já 66% das pessoas são a favor de usar soluções de identificação digital como a biometria facial para substituir logins, senhas e documentos físicos. Enquanto 85% delas adorariam viver em um mundo em que não fosse preciso decorar senhas, utilizando tecnologias de identificação mais seguras.
Cenário paradoxal
O cenário brasileiro da digitalização é paradoxal: o país avançou seis posições no ranking GovTech Maturity Index (GMTI), do Banco Mundial (2022), que analisa a maturidade digital de 198 economias e o estado atual da transformação digital do serviço público nestes países. Para se ter uma ideia, chegamos em segundo lugar na seleção, próximos da Coreia do Sul e da Arábia Saudita.
Entretanto, somos um país com alto índice de fraudes, mostrando que digitalização avançada não é sinônimo de alta segurança. Muitas vezes, quanto mais digitalizado um ambiente, menos privacidade e segurança dos dados. É por causa dessa relação que quando se fala em identidade digital é preciso falar sempre de privacidade e cibersegurança. São elementos inseparáveis para a inclusão e ao acesso à oportunidades.
Historicamente, a Internet nos ajudou a construir aplicações para trocar e organizar informações. Agora, estamos aprendendo a proteger essas informações. Se a fraude e o risco de vazamentos de dados formam a principal dor da atualidade, garantir a privacidade e segurança dos dados é o analgésico. O acesso a uma identidade digital que inclua o usuário na infraestrutura de segurança, para que possamos trabalhar juntos na proteção de sua privacidade é o caminho para uma revolução consciente e propositiva.
Quando as pessoas ganham autonomia sobre os seus dados e ao mesmo tempo aumentamos a oportunidade dessas pessoas participarem em transações, por conta do acesso à identidade digital, promovemos não só a dignidade dessas pessoas, mas relações de confiança. A tecnologia está nos ajudando a criar cofres para guardar dados com segurança e entregar a chave ao usuário para que ele possa decidir o que fazer com eles. Para isso, trazer respeito à privacidade by design é fundamental.
Estamos trilhando esse caminho e acredito que a LGPD é só a base do crescimento desse ecossistema. É na identidade digital que enxergo um caminho de contribuir com a ampliação do acesso das pessoas a milhares de oportunidades, além da preservação dos nossos direitos, da proteção de nossos dados, da nossa privacidade devolvendo a cada cidadão o protagonismo e a autonomia sobre seus dados pessoais. Posso assegurar que na Unico estamos trabalhando para cada vez mais darmos passos firmes em direção a um mundo onde se identificar será simples, seguro e confiável. Afinal, não somos robôs ainda.