*Yasodara Cordova é pesquisadora-chefe em Privacidade na Unico
Precisamos acabar com o mito de que a governança pode impactar a privacidade dos usuários, sufocar o desenvolvimento e o compromisso com a inovação e novas tecnologias. Isso não é verdade. A Dra. Rumman Chowdhury, ex Diretora de Confiança, Ética e Segurança no X-Twitter, tem abordado justamente essa questão em suas entrevistas e palestras, descrevendo como as boas práticas de governança podem contribuir para produtos mais inovadores, eficientes e que atendem melhor às demandas dos usuários.
Assim como ela, vejo a área de governança como aquela que permite que um avião voe hoje em dia. No início, os aviões eram inseguros, levavam pouca gente e tinham finalidades limitadas. Hoje, os aviões servem para funções variadas, e transportam milhões de pessoas por ano pelo mundo – graças às medidas de segurança, confiança e ética que foram tomadas para tornar estes veículos em algo escalável globalmente. Afinal, em qualquer área de inovação, o que vai guiar a evolução do processo para que escale de modo seguro é a governança.
Ainda refletindo sobre essa premissa de governança, as principais descobertas de tecnologia sempre partem de problemas difíceis. Estes sempre têm soluções que são de longo prazo, que exigem recursos, tempo e pesquisas de especialistas colaborando. A inovação a partir de princípios éticos se encaixa na nossa realidade, já que a tecnologia amadurece e abraça mais pessoas, escalando globalmente como os aviões fizeram no último século.
Outro exemplo é o da Dra. Marie Curie, cientista polonesa, que descobriu o rádio e o polônio em 1898 e inovou toda uma linha de estudos e aplicações da radioatividade no mundo, mas, infelizmente, morreu de leucemia provocada por anos de exposição, pois não havia ainda nenhuma proteção. Com o tempo e a necessidade de escala da descoberta, uma série de regras de utilização e proteção foram desenvolvidas para que a mesma invenção pudesse escalar seus benefícios pelo mundo. Hoje, essa governança fez com que inúmeros aparatos tecnológicos seguros fossem estabelecidos, derivados da mesma descoberta da Dra. Marie Curie, que salvam vidas diariamente.
Governança e inovação
Quando você tem uma regra que deve ser cumprida, isso deve ser respeitado e é esse o verdadeiro espírito da governança e da inovação. Inovar é conseguir criar algo que resolva o problema posto e, ao mesmo tempo, respeitar regras independente do ambiente, seja, online ou não. No caso da coleta e processamento de dados, existe a possibilidade de se retirar a capacidade das pessoas de resguardar os seus segredos íntimos, afetando negativamente sua privacidade de várias maneiras, expondo pessoas a situações que podem às vezes ser irremediáveis.
A coleta indiscriminada de dados sem cuidado, pode incentivar desde vieses e discriminação algorítmica até perseguições políticas. Por isso, endosso que a proteção da privacidade e a segurança dos dados é parte da governança. Ignorar essas regras, principalmente na era das grandes descobertas, pode acabar em desastres de longa duração.
Empresas que aprenderam essa lição a duras penas no passado hoje estão construindo soluções técnicas na tentativa de resolver problemas de governança e privacidade do início dos tempos conectados como o vazamento de dados ou a coleta excessiva de dados pessoais. Daqui para a frente isso será ainda mais pertinente.
Quando falamos sobre governança, ou seja, quando falamos sobre conformidade, ética, responsabilidade, privacidade, confiabilidade e até transparência em relação ao uso dos dados das pessoas, ainda é possível ouvir vozes que pregam o coletar antes, perguntar depois, colocando a confiança e o respeito pela privacidade do usuário em um lugar de apêndice, em oposição a algo profundamente enraizado no produto real ou na estratégia dos negócios.
Porém, à medida que a IA e as novas tecnologias continuam a encontrar o seu caminho, por exemplo, temos que conseguir confiar em algo para que sua utilização seja completa. Empresas que não conseguem enxergar inovação na governança ficarão para trás, atropeladas por empresas que têm se adiantado para entregar o que tem sido demanda global dos usuários.
A indústria deve às empresas que não praticam inovação com ética para esse espaço através da competição no mercado. As empresas que levam a sério a adoção da privacidade e, consequentemente a governança, acabam gerando mais inovação. Isso será determinante para definir quem vai ganhar a corrida pelo consumidor no futuro. Isso aconteceu de forma inédita com a Apple.
A empresa foi a fabricante que mais vendeu smartphones em 2023, segundo dados preliminares da International Data Corporation (IDC). Os números mostram que a “maçã” de Steve Jobs vendeu 234,6 milhões de aparelhos, enquanto a Samsung, que ocupou a liderança do mercado por mais de uma década, vendeu 226,6 milhões. Recentemente, a Apple havia ampliado o seu compromisso com a privacidade, revelando novas iniciativas de educação e conscientização à privacidade, tendo integração de fábrica a todos os produtos e serviços da marca, da inicialização ao uso de qualquer app.
Com isso, podemos afirmar que ter governança e privacidade caminhando juntas pode gerar benefícios e contribui para a economia. Ser transparente no processo ajuda a construir a relação de confiança dos usuários com a marca. Além disso, ao ter o controle completo sobre meus dados, o mercado se eleva a outro nível, pois a competição nos serviços dispara uma onda de melhorias significativas em privacidade e segurança entre as concorrentes – inclusive estimulando novos negócios e produtos. Por que não incentivar isso?
*Saiba mais sobre privacidade, segurança e proteção de dados pessoais através da aula magna da autora, pelo link: https://www.plataformacidadaniadigital.com.br/