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Investindo em IA: como separar o joio do trigo?

Inteligência artificial ainda está longe de se tornar uma commodity e deve, obrigatoriamente, estar para muito além do discurso

inteligência artificial
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*Geraldo Melzer é cofundador da ABSeed

Não há como negarmos o fato de estarmos vivendo uma ebulição sem precedentes com a disseminação de tecnologias de inteligência artificial generativa. Nas palavras de Martin Ford, autor do livro ‘Rule of the Robots: How Artificial Intelligence Will Transform Everything’, a IA terá um componente mais revolucionário que a própria eletricidade. Enquanto players do mercado de SaaS (Software as a Service), temos acompanhado essa materialização de forma bastante intensa.

A cada semana, recebemos em nosso dealflow proprietário cerca de oito negócios. São jovens empresas de base tecnológica, algumas mais estruturadas que outras e que, em comum, têm em sua apresentação a expressão inteligência artificial. Aparentemente, é essa a nova regra.

Segundo Tomasz Tunguz, investidor americano do Vale do Silício e também especialista em SaaS, em um futuro breve, todas as empresas e startups devem ter uma estratégia de IA para se manterem competitivas. Porém, ainda que concordemos com Tunguz, precisamos reconhecer que há um frisson exacerbado no mercado de inovação – e aqui falamos com mais propriedade do mercado brasileiro, no qual estamos inseridos.

Recentemente, durante seu pitch, um fundador fez questão de destacar que seu software não possuía nenhum componente de IA. Fomos positivamente surpreendidos por sua colocação, não apenas por reconhecer honestidade da parte dele, mas por entender que existem inúmeras soluções que prescindem de IA.

Mas como separar o joio do trigo? Como garantir o investimento em soluções de que fato têm a IA como um fator de sustentação de um negócio, com largo poder de escala? Quando a adoção dessa tecnologia faz realmente sentido? Quando não passa de um recurso de marketing? Trazemos neste artigo alguns insights que, certamente, nos têm ajudado nesse caminho.

Qual o valor da inteligência artificial para o negócio?

A maior parte das empresas SaaS que chegam até nós não nasceram com uma base sustentada pela IA. São negócios que desejam apenas incrementar a proposta de valor existente com base nas tecnologias hoje disponíveis, se valendo de integrações mais simples, grande parte movida por IA – e tudo isso de forma marginal. Se, nestes casos, você tirar o componente de IA, a proposta de valor central se mantém intacta? Se sim, acredite, não é preciso “fingir” que a inteligência artificial está intrinsecamente vinculada ao seu negócio.

Aqui, reforçamos a máxima: não há nenhum problema em não ter um forte componente de IA em um software. Muito pelo contrário! Porém, se valer de algo que não é o seu core para convencer investidores é algo que será facilmente percebido – e na maior parte das vezes, pesa contra!

Em nossa jornada, temos nos deparado também com uma série de startups que incorporaram IA e, com o uso dessas novas tecnologias, são capazes de potencializar fortemente seus modelos de negócio ao automatizar alguns processamentos, seja de textos, áudios ou de imagens. São softwares que não têm algo altamente disruptivo, mas que demonstram o uso adequado de IA e podem multiplicar intensa e exponencialmente a entrega a seus clientes.

Por fim,em menor prevalência, temos as empresas às quais chamamos de AI first, que nascem como o centro de sua proposta de valor sustentado pela tecnologia. Aqui, em geral, temos startups que treinam algoritmos. Trabalham um espectro particular de dados para a geração de insights cada vez mais precisos, que aprendem mais e aperfeiçoam o modelo com o tempo.

Em geral, essas empresas têm um time verdadeiramente técnico, com conhecimento e profundidade sobre inteligência artificial e machine learning. Ainda são poucas as startups que atuam sob esse modelo no Brasil, mas dado o momento do nosso ecossistema, acreditamos que em não muito tempo veremos empresas nativas em IA por aqui.

Feitas essas considerações, ao que um investidor deve se atentar para compreender os fundamentos que separam modelos SaaS fortes em IA, dos mais superficiais?

Fortaleza acadêmica e técnica dos cofundadores

Inteligência artificial possui uma comunidade técnica pequena e é sabido que existem formações e centros de excelência que formam os melhores profissionais. Expertise e know how relevante em machine learning e IA leva tempo, não se adquire rapidamente, em bootcamps de curta duração. A formação em IA, especialmente a que permite construir tecnologias disruptivas e competitivas, exige uma jornada de anos, décadas, de estudos dentro da área.

Times fundadores que não têm dentro de casa capital humano com uma formação sólida e legítima, trabalhando por anos na área, muitas vezes ao longo de décadas, pode ser um sinal de alerta. Nesse sentido, contar com a experiência de especialistas plugados ao nosso ecossistema para nos apoiar nos processos de diligência é um trunfo muito bem-vindo.

Qualidade e volume de dados

Via de regra, empresas SaaS têm acesso a grandes volumes de dados proprietários – viés, inclusive, que age como um facilitador para penetração no mercado de IA. Quando nos deparamos com a capacidade de aplicação de algoritmos de machine learning para extrair insights valiosos, é certo que estamos diante de startups com vantagens técnicas e competitivas significativas e, fundamentalmente, no core business

Quanto mais dados uma empresa coleta, armazena e processa, melhor ela poderá treinar seus algoritmos, aumentando a precisão de seus modelos e aprimorando seus resultados. Esse acúmulo de conhecimento ao longo do tempo pode ser um diferencial e simboliza uma aplicação de IA real.

Ecossistema e integrações

Empresas SaaS que conseguem criar um ecossistema sólido e oferecem integrações com outros sistemas e plataformas podem construir diferenciais poderosos. Se os serviços de IA ofertados por uma startup são capazes de se integrar a ferramentas já utilizadas por seus clientes, isso acaba por criar uma dependência natural, até mesmo pela complexidade de se construir essas pontes.

Destacamos até aqui pontos fortes a serem considerados no momento em que decidimos investir em uma empresas de IA. Porém, o que encaramos como red flags?

Competição com incumbentes

Muito se fala de como os principais incumbentes, as big techs, saíram na frente na corrida da inteligência artificial. Microsoft, Google, Adobe, Amazon estão investindo individualmente bilhões de dólares nessas tecnologias a cada ano.

Investir então em uma startup cuja proposta de valor caminha na linha de ataque a algum desses incumbentes pode ser um passo excessivamente ousado. Ainda que empresas menores contem com a vantagem de serem mais ágeis, seguir nessa direção pode ser um risco desnecessário a ser tomado.

Propostas de valor obsoletas no curto e médio prazo

É certo que as mudanças tecnológicas têm ocorrido com uma velocidade cada vez maior, porém, existem propostas de valor que surgem já com a perspectiva de se tornarem obsoletas. Em alguns casos, o cenário é um tanto dramático, principalmente quando enxergamos um potencial revolucionário de processos pela introdução de uma IA generativa. Como muitos SaaS se dedicam a organizar métodos complexos, com automações sempre que possível, será natural que novos entrantes nativos de IA gerem grande disrupção.

Para alguns contextos, é somente uma questão de dimensionar investimento, foco e tempo. Para mitigar eventuais danos a esses negócios, é urgente a adaptação aos fundamentos aqui colocados, tais como a geração e o processamento de dados proprietários e a criação de um time de alto nível técnico.

Por fim, com o amadurecimento das plataformas de IA, é notável a mudança referencial e o aumento da expectativa dos clientes. Quando uma ferramenta de texto completa automaticamente uma frase de forma precisa, seus concorrentes vão ter de seguir nessa mesma direção. Quando um chatbot é capaz de responder a perguntas corretamente e gerar uma experiência única, todos competidores vão ter que correr atrás desse prejuízo.

Diferentemente da Web3, do metaverso e de outras tecnologias emergentes que despertaram um hype no mercado, a IA tem uma diferenciação particular: a clareza nos casos de uso e o impacto objetivo na potencialização de alguns negócios já têm causado transformações reais no ecossistema e em nossas vidas.

Para nós, que estamos intrinsecamente engendrados nesse universo, não resta dúvidas de que a inteligência artificial vai revolucionar o mercado SaaS. Os dados e tendências tecnológicas atuais nos levam a acreditar nisso. Porém, o frisson é real e é preciso atenção para não se deixar levar por propostas de valor que não se sustentam na prática.

Como no caso de qualquer tecnologia emergente, há muita gente querendo surfar essa onda e apropriar-se da IA, mas sem a experiência e a formação necessárias. Ser capaz de identificar diferenciais claros de forma tangível, entender o sentido da IA na estratégia da empresa e cuidar para não estar na zona de foco dos maiores incumbentes pode ser uma forma de minimizar os riscos de apostas em projetos de IA. A inteligência artificial ainda está longe de se tornar uma commodity e deve, obrigatoriamente, estar para muito além do discurso.