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O primeiro write-off a gente nunca esquece: lições de um empreendedor

Write-off é o lado que poucos contam sobre as startups, mas faz parte da trajetória de muitos empreendedores; entenda

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Write-off zera a dívida financeira, mas não a moral, conta o empreendedor | Foto: Divulgação
Write-off zera a dívida financeira, mas não a moral, conta o empreendedor | Foto: Divulgação

*Por Almir Neves, vice-presidente de Startups da Assespro-PR

O primeiro write-off a gente nunca vai esquecer. Mas essa assinatura, para mim, marca um sentimento de fracasso para com aqueles que investiram na gente, e não digo apenas financeiramente. Tivemos excelentes colaboradores, clientes parceiros, apoio incondicional da família, mentores especiais ao longo da jornada. O write-off me zera a dívida financeira, mas não a dívida moral com essas pessoas.

O ponto de partida: sucesso, liquidez e o sonho de empreender

Um pouco de contexto: em 2019, tive um ano espetacular financeiramente. Duas janelas de oportunidades se abriram e, em 90 dias, tive dois eventos de liquidez excelentes. Para quem não me conhece, ajudei, desde o primeiro dia, um dos potenciais unicórnios do Brasil a se transformar em um gigante do universo da tecnologia e trabalhei junto ao time espetacular de outra empresa de tecnologia que foi vendida para uma das maiores big techs do país.

Posso afirmar com certeza que muito do meu DNA ainda está nessas operações, das quais tenho muito orgulho, pois parte da independência financeira que tenho hoje veio delas.

Aproveitei, então, esse dinheiro no caixa para investir e conquistar alguns sonhos, passar algumas semanas em Israel e entender o que vinha pela frente.

A inspiração: como a Gong.io e o ecossistema martech deram origem à hubkn

Conectando os pontos, vi que sempre fui bom em criar coisas, tirar ideias do papel, estruturar a operação com uma visão bem mercadológica e comercial. No entanto, o ecossistema de martechs não me encantava, mas, vendo as startups do momento de 2019, uma me chamou muito a atenção.

Chamava-se Gong e vinha trazendo dados e inteligência para uma etapa muito chave de qualquer empresa: a área de vendas. Meus olhos brilhavam ao conhecer cada vez mais o que eles faziam e como a startup, nascida em Israel, já era uma das empresas nascentes mais valiosas do mundo.

Pensei comigo que eu tinha a expertise de estruturar a ida ao mercado de empresas, começar do zero, contratar pessoas, montar pitches de vendas, demos de produto, mas sempre senti falta da inteligência comercial, do acionável, da interpretação dos dados e da ação. Na época, mal se falava de Sales Ops como disciplina.

Da validação ao pré-Seed: os primeiros passos e o apoio de investidores

Criei, então, com investimento próprio, a hubkn, um sales ops digital com a premissa inicial de conversar com o CRM da empresa. Fomos, inclusive, convidados para expor em uma feira no Vale do Silício e, adivinha qual startup estava ao nosso lado? Isso mesmo, a Gong!

Durante um ano e meio, fomos desenvolvendo produto, conquistando os primeiros clientes e fui investindo para manter a operação rodando. Com a tese validada, chamei quatro grandes amigos para serem nossos investidores anjos e, junto com essa jornada, captamos nosso pré-seed com um dos mais ativos VCs early stage do mundo. Admito que o fracasso e um potencial write-off nem sequer estavam na mesa. 

O Vale da Morte: quando a falta de tração encontra a pressão do investidor

Tínhamos enfrentado pandemia, contratações que não deram certo, clientes que não entendiam o que a gente fazia: o combo do caos do primeiro ciclo das startups. Mas, com dinheiro em caixa, bora fortalecer a equipe e trabalhar dentro da nossa solução de inteligência comercial que ficava cada vez mais robusta.

No entanto, não tivemos aderência de mercado e, em outro momento, posso explorar melhor esses desafios. A gente não escalava e começou a patinar, até que o VC que investiu na gente chegou um dia e mandou a real: “E aí, vocês vão crescer ou não?”.

Em uma das operações de sucesso que citei no início, tínhamos captado alguns milhões de dólares e eu sabia que uma hora a pressão iria chegar e, mesmo com o investimento captado, eu ainda colocava do meu bolso e de um dos anjos dinheiro na operação para cobrir o negativo, pois nossas reservas já tinham acabado faz tempo. E minhas noites de sono acabaram e pesadelo do write-off chegou forte em minha rotina. 

A tentativa de sobrevivência: o merge e a saída da operação

Entramos, então, no famoso vale da morte das startups e resolvemos vender a empresa, mas estávamos pequenos demais para uma big tech comprar e as poucas propostas recebidas eram uma piada. Em uma curiosa conversa de happy hour com um player parecido, puxamos uma agenda formal para eu conhecer o produto deles e vi que eles tinham coisas que a gente não tinha e a nossa tecnologia seria um próximo passo na evolução da ferramenta deles.

A paixão foi instantânea e, depois de muitos sacrifícios que fiz, como demitir 90% do time, honrar com todos os compromissos trabalhistas, negociamos um merge onde eu abri parte de quase totalidade de ações da empresa para vê-la continuar ainda sobrevivendo e viva no mercado. Vi uma luz no fim do túnel.

Nessa transação, saí do dia a dia da empresa e fiquei como líder do conselho junto aos anjos e ao VC. Um misto de alívio e desânimo por não ter alcançado o êxito tomavam conta da minha alma. Mas o pessoal da outra empresa tinha sangue nos olhos e muita energia, o que para mim era algo muito importante, e começamos a juntar as coisas.

O fim da linha: o que é o write-off no universo de venture capital?

Saímos da UTI e fomos para a enfermaria, mas, mesmo assim, as coisas não decolavam e a energia foi caindo de novo até que o pessoal que, junto à tecnologia, tinha uma operação de serviços fez a matemática e resolveu finalizar o projeto.

Aí chegou outra parte extremamente desafiadora, pois muito pouco se fala dos grandes passivos que assumimos ao empreender: são riscos trabalhistas, jurídicos, financeiros, emocionais que se acumulam ao longo dos anos. Eu sei na pele o que é não ter dinheiro para a folha de pagamento e, mesmo assim, dar um jeito de pagar os salários em dia, ter problemas para pagar as contas básicas da empresa, discutir com os sócios, desanimar-se com algum colaborador não comprometido com a empresa, entre outros itens não sexys da jornada empreendedora.

E essa parte desafiadora se chama distrato, ou write-off no universo de venture capital. E aqui, como na etapa de Due-diligence, você precisa prestar conta de todo o uso do capital investido. Anos e anos de relatórios financeiros, extratos bancários e análises jurídicas que levam a uma assinatura fria e melancólica de um contrato que dá baixa ao investimento recebido.

Reflexões finais: a dívida moral e a vontade de continuar criando

Fracassar nesse nível pela primeira vez, ainda mais depois de dois cases de sucesso, é uma decepção sem sombra de dúvidas, mas, com a fé que carrego dentro de mim e com os projetos que já venho tocando desde 2024, fica aquele gostinho de “queria ter feito mais”, mas principalmente a vontade de continuar criando e tirando as coisas do papel.