*Renata Zuccolo, João Marcelo Lima, Paulo Luciano Júnior e Fernanda Victor são, respectivamente, sócia e associados da prática de Direito Concorrencial do Mattos Filho
Nos artigos anteriores, comentamos as principais modalidades de investimentos de venture capital em startups. Agora, abordaremos como rodadas de investimentos, especialmente em estágios mais avançados, podem exigir a aprovação prévia do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão de defesa da concorrência responsável por analisar o impacto de operações de fusões e aquisições no Brasil, revelando-se um de tema importante para a indústria de Venture Capital (VC).
Caso os investimentos estejam em conformidade com os critérios previstos na legislação concorrencial brasileira, somente poderão ser concluídos após a aprovação do Cade. Investimentos concluídos antes dessa aprovação expõem investidores e startups a investigações e penalidades que podem comprometer o bom andamento das rodadas atuais e futuras.
Outra importante razão para o tema estar no radar da indústria de VC é que o setor de tecnologia tem sido objeto de especial atenção por parte do Cade, que inclusive tem realizado uma série de estudos a respeito dos novos padrões de concorrência na era digital.
Nesse contexto, abordaremos: (i) os critérios para que um investimento dependa de aprovação prévia do Cade; (ii) os cuidados a serem adotados nesses casos; e (iii) uma visão geral do processo de análise do Cade, desde a apresentação do caso, até a aprovação. Este artigo foca nos investimentos decorrentes de aquisição de participação societária e/ou de títulos conversíveis em participação societária, e não considera estruturas alternativas, tais como joint ventures.
Quando um investimento deve ser notificado ao Cade?
A análise da obrigatoriedade de notificação de uma operação ao Cade não é trivial e, se feita de forma incorreta, pode causar prejuízos aos investidores, fundadores e startups. De toda forma, explicaremos abaixo como essa análise pode ser feita, com a ressalva de que não é exaustiva e casos concretos podem ter nuances que dependem de uma análise mais aprofundada.
O Cade analisa todas as transações que preenchem os seguintes critérios específicos e cumulativos: (i) os grupos econômicos envolvidos atingem critérios de faturamento bruto iguais ou superiores aos estabelecidos por lei; (ii) a transação em si que configura ”ato de concentração”; e (iii) possui efeitos no Brasil. Abaixo sugerimos um passo-a-passo seguindo essa ordem dos critérios que reflete uma forma objetiva de se analisar se uma transação precisa ser notificada ao Cade no caso de rodadas de investimentos de VC.
Faturamento bruto registrado no Brasil
São de notificação obrigatória apenas transações em que pelo menos um dos grupos envolvidos tenha registrado faturamento bruto anual no Brasil, no ano anterior à transação, equivalente ou superior a R$ 750 milhões, e, cumulativamente, pelo menos um outro grupo envolvido na transação que tenha registrado faturamento bruto anual no Brasil, no ano anterior à transação, equivalente ou superior a R$ 75 milhões.
O Cade possui uma definição específica para grupo econômico, a qual não necessariamente guarda relação com as definições do ponto de vista societário ou constantes de outras regulamentações. No caso de empresas, isso pode incluir não só o grupo da empresa e suas investidas (ainda que de forma minoritária), mas também qualquer acionista que possua, direta ou indiretamente, ao menos 20% do capital social ou votante da empresa e todas as empresas nas quais esse acionista detenha, direta ou indiretamente, pelo menos 20% do capital social ou votante.
Já no caso de fundos, isso pode incluir todas as empresas em que o fundo envolvido na transação detiver, direta ou indiretamente, controle ou pelo menos 20% do capital social ou votante; e, caso aplicável, o grupo econômico de qualquer cotista que detenha, direta ou indiretamente, pelo menos 50% desse fundo (individualmente ou por meio de acordo de cotistas).
Trata-se de análise que deve ser feita de forma concreta e detalhada para que as partes possam assegurar que consideraram todas as entidades que, na interpretação do Cade, deveriam entrar no cômputo do faturamento daquele grupo econômico específico.
Enquadramento como “ato de concentração”
Muitos contratos da indústria de VC tipicamente celebrados no Brasil podem ser enquadrados como ato de concentração (tais investimentos foram abordados nos artigos anteriores desta série de artigos, disponíveis aqui e aqui), principalmente aqueles realizados diretamente em participação societária (equity) da startup. Veja abaixo as transações mais comuns no âmbito da indústria de VC.
Aquisição de participações minoritárias:
a. 20% ou mais do capital social ou votante efetivamente emitido, nos casos em que o investidor e seu grupo econômico não detiver investimentos em empresas concorrentes ou que possam fornecer insumos à/ adquirir insumos da startup; e
b. A aquisição de 5% ou mais do capital social ou votante efetivamente emitido, nos casos em que o investidor e seu grupo econômico detiver investimentos em empresas concorrentes ou que possam fornecer insumos à / adquirir insumos da startup.
Conforme detalhado em artigo anterior da série, quanto mais no estágio early stage a startup estiver, maior a probabilidade de que sejam utilizados instrumentos de dívida conversíveis. Esses instrumentos serão de notificação obrigatória ao Cade, caso a futura conversão for considerada como um ato de concentração, nos termos acima. O momento da notificação ao Cade (se na emissão da dívida ou na sua conversão) dependerá da existência de direitos, por parte do investidor, de indicar membros dos órgãos de gestão, de “fiscalizar” as atividades da startup ou de direitos de voto ou veto sobre questões concorrencialmente sensíveis.
Efeitos no Brasil
Por fim, em relação aos efeitos no Brasil, é esperado que esse critério seja atingido sempre que a startup estiver sediada no Brasil ou quando estiver baseada fora do Brasil, mas com presença direta e/ou indireta no Brasil (por exemplo, fornecendo produtos/serviços a clientes localizados no Brasil), podendo haver situações limítrofes de empresas localizadas fora do Brasil que mereçam uma discussão mais aprofundada.
O investimento precisa de aprovação do Cade, e agora?
Caso o investimento seja de apresentação obrigatória ao Cade, as partes (investidores, fundadores e startups) não podem concluí-lo até a aprovação definitiva ser divulgada pelo Cade. Isso significa que as partes não podem adotar quaisquer atos que possam ser vistos como uma tentativa de implementação do investimento.
A implementação prematura do investimento – ainda que parcial – sujeita investidores, fundadores e as startups à abertura de uma investigação que pode resultar: (i) na obrigatoriedade de notificar o investimento, caso ainda não tenha sido feito; (ii) em multa, que pode variar de R$60 mil a R$60 milhões; (iii) na eventual declaração de nulidade do investimento; e (iv) na investigação das partes por conduta anticompetitiva.
A forma mais clara de implementação prematura do investimento é a transferência do capital para a startup e/ou da participação societária para os investidores.
Contudo, há outras formas de implementação prematura, dentre as quais o exercício de influência de uma parte sobre a outra. No caso da indústria de VC, as formas mais comuns seriam: (i) o exercício, pelo investidor, de direitos políticos decorrentes da participação societária ou dos títulos conversíveis a serem adquiridos, tais como direitos de voto ou veto sobre questões que digam respeito a estratégia e a atuação comercial da startup; e (ii) a indicação de membros do conselho de administração. Nessas duas situações, as partes precisam tomar o cuidado de deixar claro nos documentos que formalizam o investimento que tais atos só poderão ser realizados após a aprovação definitiva do Cade (isto é, que a aprovação do Cade é uma “condição suspensiva” à implementação do investimento).
Outro ponto que merece atenção é a troca indevida de “informações concorrencialmente sensíveis”, em especial quando os investidores envolvidos são potencialmente concorrentes e/ou fornecedores/clientes da startup. Nessas hipóteses, pode ser importante estabelecer protocolos e procedimentos que permitam aos investidores avaliarem o valor do negócio e conduzir o processo de diligência dentro de padrões aceitos pelo Cade.
Visão geral do processo de notificação
Quando as partes concluem que um investimento exigirá a aprovação do Cade, o recomendável é que a sua apresentação seja posterior à assinatura do documento vinculante que formaliza os termos do investimento e, como visto acima, antes da sua efetiva conclusão.
O processo se inicia com o envio ao Cade de um formulário de notificação com informações sobre as partes envolvidas e os mercados afetados pela operação, bem como os documentos aplicáveis, incluindo, por exemplo, o acordo de investimento e acordo de acionistas (se houver).
O volume de informações a serem apresentadas e o tempo de análise pelo Cade dependem do procedimento aplicável ao caso concreto. O procedimento sumário é voltado para transações de menor complexidade, nas quais a participação combinada da startup e das demais empresas do portfólio do investidor nos mercados afetados pela transação for menor do que 20% (em caso de empresas concorrentes) ou 30% (em caso de empresas que possam fornecer insumos para a outra). Em 2022, 87% das transações apresentadas ao Cade foram aprovadas sem restrições sob o procedimento sumário. No melhor conhecimento da indústria, a maioria dos investimentos de VC são analisados e aprovados seguindo o rito do procedimento sumário.
As demais transações são analisadas pelo procedimento ordinário. Em 2022, 83% dos casos analisados nesse rito foram aprovados pela Superintendência-Geral sem restrições.
Esperamos que essa breve apresentação sobre a importância de se fazer uma análise da necessidade de apresentar um investimento de VC ao Cade e uma visão geral do processo tenha ajudado. Até uma próxima oportunidade!