*Por Guilherme Enck, cofundador da Captable
Em economia, não existe mágica. Ainda assim, a cada novo ciclo de euforia nos mercados, são numerosos os indivíduos que preferem cair na tentação de acreditar que as leis econômicas foram reescritas. Como nos ensinou o lendário investidor John Templeton, as palavras mais nocivas aos investimentos são “This time is different”. O investidor experiente, sobrevivente de inúmeros ciclos, pode lhe garantir que nunca é.
Mal-acostumado, você me deixou
Os investimentos em startups e empresas de tecnologia, aos olhos do leigo, parecem seguir uma lógica diferente dos investimentos em bolsa de valores ou em empresas tradicionais. Ao menos nos últimos anos, a lucratividade não aparentava ser o objetivo das companhias do setor, que queimavam o seu caixa ano após ano, alegadamente em busca de taxas de crescimento meteóricas. Na mentalidade daquele momento, startup não precisava dar lucro; precisava, prioritariamente, crescer para dominar o seu mercado o mais rápido possível.
A lógica de crescimento desenfreado, queima de caixa e prejuízos operacionais funcionou a pleno vapor por um bom tempo. Funcionou enquanto os empreendedores por trás dessas iniciativas não tinham dificuldades em captar novos recursos junto ao mercado uma vez que o dinheiro levantado na rodada anterior chegasse ao fim. Foi uma estratégia válida enquanto as taxas de juros nas mínimas históricas e a adoção de tecnologia em larga escala devido a mudanças no comportamento do consumidor por conta da pandemia do Coronavírus drenavam recursos de outras classes de ativos para irrigar o setor de investimentos em startups.
O cenário finalmente mudou. O custo de capital foi reajustado a nível global, o medo de uma recessão iminente tomou conta dos mercados e o apetite por risco foi recalculado: era o fim dos anos dourados do Venture Capital.
Diante desse novo contexto em que o capital é mais escasso, a narrativa corrente também sofreu adaptações. A partir deste momento, a mídia especializada e até mesmo profissionais do mercado passaram a propagar a ideia de que, passados esses anos de euforia, o mundo das startups havia finalmente caído na real, e que as boas companhias são aquelas que geram fluxo de caixa positivo. Será mesmo que o fato de uma startup gerar prejuízos era uma distorção, uma insanidade apenas justificável durante um período de excessos? Uma boa startup precisa, necessariamente, dar lucro?
De olho no bottom-line
Tanto uma empresa, quanto seus investidores, sempre estão em busca do lucro. Os maiores possíveis, inclusive. Essa é a lógica incontestável do mundo capitalista. Entretanto, ambos estão, por muitas vezes, dispostos a abrir mão do lucro presente em favor de um lucro futuro maior. E é por isso que muitas empresas de tecnologia passaram a adotar a lógica de crescimento baseada em prejuízos, ou seja, a lógica de usar não apenas todo o dinheiro disponível no caixa, mas também capital de terceiros captados via venda de participação societária para financiar seu crescimento. Enquanto essa lógica também pode ser observada em segmentos tradicionais, na cena tech faz ainda mais sentido: empresas de tecnologia, via de regra, possuem um componente de escalabilidade que facilita o seu crescimento acelerado.
A Amazon, de Jeff Bezos, por exemplo, levou 9 anos desde a sua fundação para gerar os primeiros lucros para seus acionistas. Enquanto isso, Bezos incorria em prejuízos quase bilionários para dominar o mundo do e-commerce. O foco em crescimento acelerado cobra a sua conta, e impedia a empresa de auferir lucros. Mas Bezos sabia o que estava fazendo: após conquistar a sua dominância, a Amazon passou a gerar bilhões para os seus acionistas.
Jogo de números
Para entender essa mecânica, é importante mencionar como uma empresa cresce na era digital.
Imagine uma placa de publicidade na beira da estrada que divulga o produto da sua empresa. Quantas pessoas passaram por aquela estrada? Desses, quantos de fato visualizaram a placa? Dos que visualizaram, quantos foram a uma loja para conhecer o produto? Quantos, no fim, compraram o produto? Dado o quanto lhe custou esta peça publicitária, há retorno positivo sobre este investimento? Parece anedótico, mas enquanto a mídia de publicidade tradicional, pela sua natureza, torna impossível termos respostas para as perguntas acima, o surgimento de novas tecnologias criou uma forma de se ter mais ciência e previsibilidade sobre o marketing.
Desde o advento dos canais de venda online, quase qualquer comportamento do usuário passou a ser rastreável e mensurável numericamente. O marketing deixou de ser terra de publicitários, e passou a ser dominado por engenheiros e programadores. Saíram de campo o feeling e o insight criativo, e deram lugar a dados numéricos e métricas objetivas. Qual o melhor slogan? Qual a melhor imagem de fundo? Qual o melhor meio para veicular a peça? Nada disso mais é decidido com base no achismo: tudo será testado, metrificado, comparado e matematicamente decidido.
Logo, é possível saber exatamente quanto custa adquirir um novo usuário pagante – que neste mundo chamamos de CAC (custo de aquisição de clientes). Se imaginarmos uma startup com modelo de negócios de assinatura, com receita recorrente (como Spotify, Netflix e etc.), uma vez adquirido, cada cliente deverá gerar um determinado valor em lucros durante a sua vida útil, ou seja, enquanto não cancela a sua assinatura. A partir da média de tempo que um cliente pagante permanece na base é possível calcular uma média de lucro gerado por cada consumidor – chamado de LTV (lifetime value). Se é possível saber o custo de aquisição do cliente e o quanto o cliente gera de lucro ao longo da sua vida útil, consigo estabelecer a correlação matemática entre investimentos em crescimento e o lucro futuro do negócio.
A ciência é simples: com as contas todas amarradas, cria-se uma máquina em que se sabe que para cada real de input, ela gera cinco, dez, cinquenta vezes em output ao longo de um determinado tempo (este efeito temporal também passível de metrificação e modelagem). Uma vez que a startup, após inúmeros testes – de abordagem, linguagem de vendas, tipos de mídia, canais de divulgação e etc – encontra uma estratégia que gera uma relação perfeitamente favorável entre investimentos e lucros, a companhia deverá alimentar esta máquina com todos os recursos disponíveis. E são desses investimentos que decorrem os prejuízos operacionais que observamos no mercado: pois estão investindo no seu crescimento.
Esses prejuízos são cobertos pelo capital de investidores, a partir das sucessivas rodadas de captação de recursos que uma startup passa. Enquanto o dinheiro vai se esgotando, já está sendo estruturada uma nova rodada para manter a máquina de crescimento em funcionamento e para renovar o ciclo de escala da startup. Pode parecer uma estratégia arriscada, afinal, se a nova rodada não for bem-sucedida, a startup pode ir à falência.
Em muitos casos, isso de fato ocorre. Porém, para quem fez o seu dever de casa corretamente, diante da necessidade de se adaptar a um eventual novo momento do mercado, a companhia pode então desligar a sua máquina, interromper o uso massivo de recursos para crescimento, e entrar em voo de cruzeiro, retornando ao equilíbrio econômico (o famoso breakeven).
Não nos deixeis cair em tentação
Um cenário de liquidez monetária global exagerada, como o que vivemos nos últimos anos, cria distorções neste grande mecanismo de incentivos de tomada de decisão que chamamos de mercado, provocando os agentes econômicos a cometerem erros de julgamento. Afinal, qual o sentido em gastar tempo e energia mensurando, calculando e sendo diligente na tomada de decisão se não haverá dificuldade para captar recursos logo adiante? Apenas a escassez é capaz de disciplinar os agentes econômicos e criar os incentivos corretos para que as suas escolhas sejam o mais cuidadosas e assertivas possíveis.
E, de fato, muitas decisões insensatas foram tomadas durante este período de abundância. Startups incharam seus recursos humanos desnecessariamente, investiram em estruturas físicas nababescas, programas internos caros e ineficientes – afinal de contas, a abundância de capital e a facilidade de acesso a estes não exigia disciplina e rigor nas decisões de alocação de recursos.
Portanto, o que é necessário que se compreenda é que a natureza dos prejuízos que vimos muitas startups incorrerem nesse período não é comparável com os prejuízos do modelo de crescimento que descrevi acima. Basta perceber que os ajustes não vieram por meio de redução de investimentos em aquisição de clientes, e sim na forma de demissões em massa.
Conclusão
Uma startup não precisa, necessariamente, ser lucrativa em todos os momentos. Pelo contrário: se há uma estratégia bem montada, metrificada e que estabelece uma relação atrativa entre investimento, crescimento e lucros futuros, incorrer em prejuízos por um tempo é a melhor decisão estratégica que um fundador pode tomar.
O que deve urgentemente deixar de existir é a estratégia de queima de caixa insensata, não baseada em ciência, que observamos nos últimos anos. A startup com unit economics (CAC, LTV, etc.) saudáveis e com a sua máquina de crescimento bem construída pode e deve continuar adotando essa estratégia. Vida longa aos prejuízos.