“O ano de 2021 foi histórico para o venture capital no Brasil. Segundo o Distrito, as startups brasileiras receberam investimento de aproximadamente R$ 53 bilhões, feitos em 779 aportes. Isso representa um crescimento de 165% frente ao ano anterior.”
É assim que gostaria de começar o texto deste mês.
Que o ano de 2021 foi histórico para o ecossistema de startups e venture capital, todos já sabemos. Toda semana aparecia uma notícia nova de alguma startup levantando um round relevante, com planos e mais planos de expansão, contratações e crescimento agressivo (incluindo a Conta Simples, que levantou R$ 121 milhões, em um dos maiores Series A de fintechs do ano passado).
Segundo dados do Distrito, foram investidos, ao longo de 2021, aproximadamente US$ 9,4 bilhões, frente a US$ 3,5 bilhões em 2020. Ou seja, um crescimento de quase 170% de um ano para o outro e, com folga, o recorde até aqui. Além disso, tivemos 10 novos unicórnios, (empresas com valor de mercado superior a US$1 bilhão). E, olhando para startups que fizeram rodadas captando acima de US$100 milhões, o número chega a 31 empresas. Recorde atrás de recorde.
Se por um lado, temos muitos motivos para comemorar, afinal é um momento de muito crescimento, expansão do mercado de tecnologia no Brasil e amadurecimento do ecossistema como um todo, de outro, é importante ter atenção aos reflexos e consequências que toda essa abundância de capital e rodadas podem causar.
Está sendo cada vez mais comum escutar histórias de empresas que captam dezenas de milhões de dólares em fase ainda pré-operacional, startups que recebem um cheque relevante e ainda não possuem nem meses de operação ou, então, fazendo duas a três rodadas no mesmo ano e multiplicando o valuation de forma exponencial.
Obviamente, começam a surgir perguntas do tipo: “Como é possível valer tanto em tão pouco tempo?”, “será que estamos em uma bolha?”, “qual a visão por trás desse negócio?” e por aí vai.
Se estamos de fato em uma bolha, na minha visão, não estamos. Mas, também vejo que existem muitas distorções e rodadas infladas por conta dessa alta oferta e liquidez por parte dos fundos de investimento. E do outro lado, existe de certa forma uma escassez de boas startups para receber aportes, o que acabou gerando esse desequilíbrio. Por consequência, um primeiro reflexo já começa a aparecer: os valuations do mercado de venture capital estão cada vez mais descolados da precificação das empresas de tecnologia já listadas em bolsa.
Para tangibilizar, e fazendo uma conta rápida, uma empresa que levanta US$50 milhões geralmente se dilui na casa dos 20%, o que representa um valuation de US$250 milhões. Imaginemos que essa empresa fez um Series A (utilizando como base o BigBets Napking), vamos supor que essa empresa está gerando uma receita de R$1 milhão por mês, ou R$12 milhões por ano. Fazendo uma conta de múltiplo de receita e valuation, estamos falando de algo em torno de 108x de receita (com dólar a R$5,20).
O ponto é que são poucas empresas, ou quase nenhuma, que estão sendo negociadas com essa relação no mercado público, isso sem contar que empresas nesse estágio ainda geram muito prejuízo, o que começar a ser motivo para uma maior dificuldade para uma trajetória de IPO em um prazo curto de tempo. Os investidores que geralmente fazem esse tipo de investimento, os late stage, estão cada vez com menos apetite. Alguns motivos corroboram essa visão: uma queda considerável do mercado de tecnologia na bolsa no início do ano (YTD Nasdaq está -13,5%), alta da taxa básica de juros americana, reprecificação dos valuations do setor de tecnologia e busca por empresas mais rentáveis são as principais causas.
Alguns exemplos que tangibilizam bem esse momento são os IPOs de tech que começaram a ser adiados, como é o caso de Hotmart (que é uma empresa extremamente saudável), Ebanx, Rappi, entre outras.
Sendo assim, toda essa liquidez que tivemos até aqui começou a dar sinais de uma certa desaceleração para o médio prazo. É exatamente sobre esse tema que vou aprofundar abaixo e, por fim, passar uma perspectiva final dos próximos anos e quais os riscos envolvidos.
Aceleração e riscos
Para começar, quero explorar os motivos dessa aceleração do mercado de venture capital no Brasil e, para isso, vale começarmos relembrando o básico de microeconomia e formação de preços. No fim das contas, tudo se define na relação de oferta e demanda.
Nos últimos anos, vimos diversos fundos brasileiros ficarem extremamente capitalizados, em proporções jamais vistas antes. Um exemplo mais recente é o Softbank, que anunciou um fundo de R$ 3 bilhões para o mercado Latam. Ou seja, do lado da oferta, começou a existir uma abundância de capital disponível em todas as fases, e fundos que antes faziam apenas cheque late stage (Series C, D e E) começaram a fazer early stage (Seed e Series A e B).
Para colocar mais poder de fogo do lado dos investidores, diversos investidores internacionais (especialmente americanos) começaram a olhar para o Brasil e a América Latina como um mercado com muitas oportunidades (vide o paper que a Sequoia soltou ano passado). Que é explicado também pela consolidação de diversos casos de empresas tech virando unicórnios e fazendo IPO (PagSeguro, Vtex, Stone etc), do fechamento do mercado chinês por conta das incertezas do governo e da altíssima competição no mercado americano, criando o direcionamento do capital para nosso mercado (Brasil e Latam).
A baixa taxa de juros global, nos últimos anos, também influenciou a alocação de capital para ativos de maior risco, em busca de maiores prêmios, o que deixou mais fácil para os fundos levantarem com seus investidores, gerando uma alta liquidez para o setor de venture capital.
Outro fator que influenciou e esse menos falado, é a vida pós-pandemia, em que o trabalho remoto virou normal e aceitável, que fez com que investidores que antes preferiam fazer visitas presenciais até tomar uma decisão final agora façam tudo por Call/Zoom. E funciona! Falo por experiência própria. Fomos, na Conta Simples, a primeira turma do Y Combinator a fazer todo o programa de aceleração de forma remota (incluindo a entrevista), o que antes não era imaginado.
Em conclusão, do lado da oferta, há uma abundância de capital a ser alocado em startups brasileiras. Olhando para o lado da demanda por capital de venture capital, por mais que o número de novas startups surgindo tenha aumentado, o ponto é para empresas em fases Seed, Series A, Series B esse volume não aumentou na mesma proporção em comparação com o capital disponível, que é onde a maioria desses fundos que estão super capitalizados geralmente concentram seus investimentos.
Por consequência, isso fez com que houvesse uma concentração da alocação de capital nas startups que já estavam no mercado, e não tanto para as startups recém-fundadas, gerando uma alta concentração de investimentos em uma fatia de certa forma pequena do mercado. As exceções ficaram para as empresas fundadas por empreendedores de segunda viagem, ex-executivos em unicórnios ou, então, alunos recém-formados em MBA de universidades como Stanford, MIT e Harvard. Mas, mesmo assim, são pouquíssimos casos.
Em resumo, o excesso de capital disponível, desproporcional ao número de startups demandando capital, causou uma inflação muito rápida dos valuations e, consequentemente, dos aportes levantados e do tempo entre rodadas. Como exemplo para tangibilizar, segundo a CB Insights, o tempo entre Series A e Series B caiu de 20 para 14 meses nos últimos 3 anos.
De um lado, todo esse crescimento e o boom do setor são fantásticos para todo o segmento e desenvolvimento de negócios de alto impacto. Por outro lado, existem diversos riscos envolvidos que startups e empreendedores precisam ficar muito atentos e entender como mitigá-los, pois o cenário futuro tende a ser diferente do que vimos nos últimos dois anos.
Pontos de atenção
O primeiro ponto que sempre gosto de chamar a atenção, principalmente do empreendedor, é que a relação de risco entre fundos e empreendedores é totalmente diferente. Enquanto os fundos possuem um portfólio entre 20 e 30 empresas, o empreendedor só possui uma empresa, à qual dedica todo seu tempo e energia. Ou seja, caso uma das startups dê errado a ponto de ter que fechar as portas, o fundo está “protegido”, pois terá outras 29 empresas que podem compensar essa perda. Já o empreendedor é 1 pra 1, ele só tem aquele negócio e, se der errado, não tem a vantagem da diversificação dos fundos.
Destaco esse ponto, pois nessa relação, muitos empreendedores não percebem isso e começam a captar cada vez mais, inflando valuation, despesas fixas e ficando cada vez mais longe da rentabilidade do negócio. Só que levantar muito capital é um risco também. Falta de água mata a planta, mas muita água também mata, só que afogada. E levantar múltiplos rounds seguidos, inflando todas as linhas de custos e despesas do negócio, de certa forma, é jogar cada vez mais água na planta.
Geralmente, tendo unit economics positivo e saudável, investidores deixam de se preocupar com a queima de caixa, desde que o crescimento aconteça e o unit economics fique positivo (LTV/CAC, Payback, churn etc.). Com isso, o custo de aquisição cresce de forma descontrolada, os salários inflam de forma desproporcional ao cargo, os investimentos em coisas não essenciais, como escritório, happy hours e outros, só aumentam, com a perspectiva de que, quando precisar, a empresa reduz os custos e entra em modo lucrativo.
Para quem quiser se aprofundar nesse tema, recomendo a leitura do artigo Toxic VC and the marginal-dollar problem, do Eric Paley.
O problema é que nem sempre é tão simples como pensamos, e essa virada pode demorar mais tempo do que ter resultado positivo ou levantar uma próxima rodada.
E isso é muito mais comum do que imaginamos, a diferença é que esse tipo de notícia não sai nos portais, e não ficamos sabendo. Você nunca vai ver uma manchete do tipo “Startup não consegue levantar rodada em valuations maiores e precisa fazer um downround para continuar viva” ou coisas do tipo. Geralmente, o que acontece é uma aquisição de startup por outra empresa com a citação “os valores não foram revelados”.
Ok, com isso, claro, quero primeiro afirmar que não sou contra levantar múltiplas rodadas, ou levantar muito capital em oportunidades que aparecem, até porque estaria sendo de certa forma hipócrita uma vez que levantamos na Conta Simples um dos maiores rounds de Series A da história.
O ponto que quero levantar é que esse boom no mercado de venture capital pode trazer riscos que nem sempre são aparentes e, como empreendedores, precisamos estar atentos. Por outro lado, precisamos entender que a dinâmica no cenário macro está mudando e pode impactar o mercado de venture capital nos próximos anos. Busque o melhor, mas esteja preparado para o pior.
Cenário futuro
Aqui, quero trazer alguns pontos importantes para estar atento e o melhor mapa de como navegar com as mudanças de perspectivas. O primeiro e principal motivo, na minha visão, é a expectativa das janelas de alta de juros que o FED está preparando para ocorrer ao longo deste ano. Alguns bancos esperam que sejam três janelas. Outros já chegam a falar em quatro. A consequência é que investidores começam a migrar o capital de ativos de maior risco e volatilidade, como é o caso da renda variável, principalmente de empresas tech, e direcionam para ativos de menor volatilidade, uma vez que o prêmio pelo risco compensa mais.
Como consequência, estamos observando uma reprecificação muito agressiva das empresas de capital aberto. Só para dar uma visão, a Nasdaq, conhecida por ser a bolsa que concentra a maior quantidade de empresas de tecnologia de capital aberto, está em uma posição Year to Date de -14,5% (isso porque não foram nem 60 dias ainda). Está certo que, em algum momento, essa queda tende a se estabilizar, mas o fato é que não volta tão rápido quanto a queda.
Ainda existe a possibilidade de o mercado na China voltar a atrair investidores de risco e provocar uma migração de grandes grupos direcionando capital para o país, tirando uma potencial liquidez para o mercado LATAM, principalmente pelo LPs do fundos direcionando capital para outras regiões.
E por último, a oportunidade de liquidez por uma saída estratégica, com a venda para outra empresa, fica cada vez mais difícil. Na maioria desses casos, uma das métricas para determinar se faz sentido o movimento é a comparação do múltiplo de valuation (nesses casos, em grande maioria, com base na receita) de empresas similares listadas em Bolsa.
E, como geralmente o múltiplo do mercado de venture capital é mais esticado que a média, ao comparar com empresas na bolsa, nesse momento, percebe-se um descolamento muito grande entre o mercado privado e público, não fazendo sentido o movimento. Ou em outros casos, sendo vendida até com uma desvalorização em comparação a uma última rodada apenas para “salvar” o negócio.
Para concluir, quero dizer que, antes que alguém possa usar essa nova perspectiva de mercado como justificativa para o negócio não estar crescendo e prosperar, é importante deixar claro que empresas que entregam resultado, e que crescem acima da média, sempre vão ter oportunidades de novas rodadas, expansão e acesso a capital.
A diferença é que a liquidez pode ser menor, e a dificuldade, maior. E esse momento vai ser mais uma seleção natural das empresas que vão conseguir construir um negócio sólido na perpetuidade.
Além disso, destaco que, criar um negócio para perpetuidade e longo prazo é de total responsabilidade de quem está por trás das decisões, e muito menos da dinâmica de mercado, juros, acesso a capital de risco e outras coisas. Nós, como empreendedores e empreendedoras, precisamos estar com uma visão clara do mar que estamos navegando e prontos para ajustar a rota caso necessário. No excuses.