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Usar a legislação para barrar uma startup? Desculpa, mas não vai rolar

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Há exatamente 130 anos, a cidade do Rio de Janeiro inaugurava a primeira linha de bondes elétricos da América Latina. Tinha início o que seria o fim da era dos carroceiros, criadores de cavalos e outros que viviam da tração animal e da sujeira que ela deixava nas ruas. O público estava feliz com a novidade, e a Câmara Municipal logo proibiu “dar aos carros maior velocidade do que a de meio trote dos animais nas ruas do centro”.[1]  

Essa história mostra o absurdo que é usar a régua do passado para medir o presente. Mais de um século depois, os legisladores em geral continuam andando no mesmo passo e não compreendem inteiramente o potencial disruptivo de novas tecnologias. Quanto mais a economia se torna digital, mais a regulamentação de novos negócios mantém a velocidade do meio trote.

É por isso que muitas iniciativas, no mais das vezes, penam numa zona cinzenta legal, a meio do caminho entre o interesse econômico e o da sociedade. Para usar um exemplo bem mais recente de transporte, temos os drones, que sempre voaram ziguezagueando nessa terra de meia lei, com os legisladores correndo atrás a pé. Isso ao longo de anos, quando o uso civil dos drones foi ficando cada vez mais popular, com aplicações em áreas que incluem agricultura, segurança, mineração, construção civil, produções audiovisuais e delivery. E mesmo assim restam pontos polêmicos em questões como direito de propriedade, poluição sonora e privacidade.

Ninguém nega que as inovações trazem questões complexas. Mas é preciso destacar que, no caso específico das startups, com o uso da tecnologia, elas são extremamente eficientes em atender a uma demanda real da sociedade. Não apenas oferecem novos produtos e serviços para o consumidor, mas também oportunidades para um grande número de pessoas, de todos os estratos.

São esses empreendedores que, conectados com o dinamismo da Nova Economia, criam mercados para mão de obra e recursos excedentes por meio de sites e aplicativos. É o que aconteceu, por exemplo, quando a 99 permitiu que as pessoas transformassem seus carros particulares em táxis; quando a Olist abriu espaço para que pequenos comerciantes se tornassem grandes no Mercado Livre; quando a GetNinjas possibilitou que pequenos prestadores de serviços entrassem em contato com um público sem precedentes; ou, ainda, quando a Nexoos abriu caminho para que pessoas físicas emprestassem seu dinheiro extra para pequenas e médias empresas.

Não há inocência nenhuma aqui. Nos casos que mencionei, têm algum sentido a grita de taxistas, lojistas convencionais, grandes empresas prestadoras de serviços e instituições financeiras tradicionais. É fato que em boa parte deles recai uma montanha de regras e tributações que, de início, não se aplicam automaticamente aos recém-chegados. A questão é que, pode não parecer, mas o problema é mútuo, já que a mesma regulamentação inadequada tenta fazer com que os empreendedores andem a meio trote.

Como se fosse possível pedir autorização para inovar, tal qual se fazia tempos atrás, quando era comum ir em busca de um carimbo no cartório para dar o próximo passo. Que fique claro: no mundo digital as oportunidades aparecem tão rápido quanto os negócios precisam mudar e se adaptar. As demandas sociais que as empresas da Nova Economia atendem, assim como os benefícios econômicos que oferecem, são evidentes, múltiplos, com resultados que tiozão nenhum do velho mundo pode negar.

Qual é a dúvida?

A questão da “concorrência desleal”, como alguns teimam em enquadrar os movimentos de alguns negócios movidos pela inovação, tem ainda outros ingredientes. Vejam: nesse exato momento, entre as empresas que se encontram no olho do furacão dos embates jurídicos, está a plataforma de fretamento colaborativo de ônibus Buser. Na dianteira das ações judiciais que a atacam se encontram as entidades privadas de transporte rodoviário de passageiros e órgãos de regulação governamental – uma antiga parceria já bem conhecida.

O nó jurídico que se formou nesse setor evidencia a zona cinzenta da lei que não consegue esconder uma verdade cristalina: faz décadas que contratos públicos regulam o transporte intermunicipal perpetuando empresas que oferecem um serviço de qualidade sofrível e/ou com preços irreais. Está claro que o modelo da Buser, ao trabalhar sob demanda, otimizando as frotas e oferecendo um bom serviço por preços mais baixos, precisa ser acelerado pela legislação. Preto no branco.

Cenário muito parecido é o da eterna batalha jurídica em torno dos aplicativos de mobilidade urbana, como a 99. E o bizarro da indefinição jurídica é que, ao mesmo tempo em que o aplicativo se tornou a principal fonte de renda para milhares de pessoas que antes engrossavam as estatísticas de desemprego, a empresa vive atolada em ações da Justiça do Trabalho. Uma justiça que, em parte, ainda está assentada em normas da época do taxímetro e, claro, não acompanha o dinamismo da Nova Economia.

Nessa zona cinzenta, outras iniciativas inovadoras vislumbram seus espaços, trabalhando para atrair e reter usuários. É um movimento integrado ao dia a dia, que agrega ferramentas para facilitar a vida das pessoas e assim engajá-las no ecossistema. Estamos conectados e integrados virtualmente em um mundo mediado por smartphones, com informação em tempo real, não há como frear a mudança.

E ela é tão impactante, que também não faz sentido negar suas consequências. Como o caso da FOMO (em inglês, Fear Of Missing Out), que significa algo como ‘medo de ficar de fora’, uma síndrome relacionada a pessoas que sofrem ao imaginar que estão perdendo alguma das milhões de coisas que atravessam o mundo hiperconectado.

O sonho e a realidade

Essa arena de guerra, gostemos ou não, faz parte da missão. Precisamos ser realistas no caminho da regulamentação dos novos negócios. As startups vão continuar encontrando soluções para oferecer um serviço melhor do que os obtidos por arranjos burocráticos da Velha Economia. E é desse modo que as empresas disruptivas mobilizarão cada vez mais a opinião pública em favor de regras que atendam a interesses da sociedade, não a privilégios de uma turma agarrada ao status quo.

É verdade que já tivemos avanços no tema, como o marco legal das startups e a lei de liberdade econômica. O capítulo das boas notícias tem ainda os sandbox regulatórios, que vêm funcionando bem, como mostram os do Banco Central e da Susep, permitindo que startups testem suas inovações em ambientes reais quando ainda falta uma regulamentação específica.

Um mundo ideal, quase de sonho, teria legisladores que respondessem, na criação e aperfeiçoamento das leis para o mundo digital, na mesma velocidade dos tantos negócios inovadores. Não é o que temos. Os advogados também precisam se preparar para os novos tempos – como estão sendo treinados para remover o entulho do velho mundo? Porque em algum momento será necessário rever todo o aparato jurídico atual. Essa é uma revolução em que, ao fim, pouca coisa ficará de pé.

P.S. No Brasil de não muito tempo atrás, empresas da Velha Economia se aproveitaram do vácuo legal para ganhos sem fim. O que seria das margens de lucro das montadoras se a legislação inicial exigisse itens de segurança? Das fábricas de plástico e refinarias, se houvesse os atuais controles na primeira regulação? Os empresários tradicionais também acreditavam que, diante da indefinição legal, melhor errar do que ficar parado na fila para conseguir permissão. Por que eles precisam se comportar como tiozões agora? Não é melhor viver a lógica da Nova Economia?

[1] DEL PRIORI, Mary. Entre cavalos e bondes: uma história dos transportes no Brasil. Disponível em https://historiahoje.com/entre-cavalos-e-bondes-uma-historia-dos-transportes-no-brasil/

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