Nesse fim de semana assisti ao documentário da Theranos, ‘A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício’. Assim que terminou, só consegui pensar numa coisa: Cara, como eu consegui engolir essa história na época? Estava claro, escancarado, que era fraude. Eu entendo, é tanta informação rolando pela nossa timeline que não dá pra analisar tudo.
Mas, sinceramente? Isso é reflexo da nossa tendência a acreditar cegamente em promessas inovadoras, sem exercer um mínimo senso crítico.
No episódio de hoje tenho três objetivos:
(1) Conhecer a origem da manipulação da opinião pública em prol de vender algum produto/serviço.
(2) Entender como a Theranos conseguiu enganar tanta gente inteligente, como investidores renomados e o público em geral.
(3) Refletir sobre a importância do marketing não se limitar à construção de uma narrativa convincente, mas sim em proporcionar um valor genuíno e real.
Vamos imaginar uma situação: você é o diretor de marketing e vendas de uma grande empresa de cigarros em 1928. Seu CEO, George Washington Hill, o grande nome por trás da American Tobacco Company, vem até você com um desafio:
“Precisamos dobrar as vendas dos nossos cigarros. Que tal conquistar o público feminino? Se conseguirmos, será como descobrir uma mina de ouro no nosso próprio quintal!”
Mas, para entender melhor, segue o contexto. Naquela época, fazer com que as mulheres adotassem o cigarro era uma tarefa praticamente impossível, principalmente por conta de um estigma social associado ao ato de fumar. À época, mulheres que fumavam em público eram mal vistas.
Então, entra em cena Edward Bernays, o homem escolhido para transformar esse tabu em um símbolo de igualdade e liberdade para as mulheres com um salário de $25,000, uma fortuna na época. Ah, e uma curiosidade que vai fazer sentido mais pra frente: ele era nada menos que sobrinho de Freud e vidrado na ideia do tio de que o ser humano é dominado por desejos irracionais.
Com isso posto, vamos ver como ele lidou com essa tarefa “impossível”. Primeiro, usando os conhecimentos do tio Freud, ele entendeu que a única forma de mudar aquele estigma social era com um apelo dramático.
Foi então que ele aproveitou a Easter Parade, em 1929, em Nova York, para transformar não só a percepção pública sobre as mulheres fumantes, mas também moldar o futuro da publicidade e relações públicas, influenciando as estratégias de marketing até os dias de hoje.
A encenação dramática começou com Bertha Hunt acendendo um Lucky Strike em plena Quinta Avenida como uma forma de protesto. Em seguida, várias outras mulheres começaram a seguir Bertha também com seus cigarros acesos, causando um alvoroço.
Naquele momento, jornalistas já estavam a postos tirando fotos para registrar, e viralizar, aquele movimento.
Coincidência? Claro que não!
Bertha Hunt na verdade era secretária de Bernays.
Bernays contratou as mulheres que seguiram Bertha. E ele sabia que elas precisavam ser persuasivas e carismáticas, mas sem reforçar estereótipos para o ato parecer o mais “natural possível”.
Ele também já tinha enganado a imprensa dizendo que haveria um “escândalo” na Quinta Avenida ao distribuir panfletos e folhetos sobre o ato.
Assim nasceu a campanha ‘Torches of Freedom‘, que tornou o ato de fumar um símbolo de libertação para as mulheres. Ah, e o público-alvo da indústria tabagista dobrou de tamanho. Missão cumprida Edward!
Parte 2: A batalha das percepções e o caso da Theranos
Como qualquer ferramenta, o marketing pode ser usado para o bem ou para o mal. Nesse caso, Bernays teve um interesse econômico, mas também gerou um impacto positivo pela luta por igualdade entre homens e mulheres (ainda que hoje seja esquisito atrelar a palavra “positivo” com cigarro).
Por outro lado, a Theranos usou táticas de marketing enganosas para manipular e prejudicar as pessoas. Com histórias falsas, e até gente famosa os apoiando, tentaram criar uma confiança em um produto que não oferecia absolutamente nada de valor.
Na real, a Teoria da Engenharia do Consentimento pode operar para os dois lados de formas muito parecidas:
- Narrativa emocional: Enquanto Elizabeth Holmes se posicionou como a inovadora revolucionária na saúde, Bernays usou a emoção para associar o fumo à liberdade feminina.
- Apoio de figuras influentes: Theranos contou com o endosso de líderes renomados, como George Shultz e James Mattis. Bernays, por sua vez, utilizou celebridades para promover o cigarro.
- Uso estratégico da mídia: Holmes era onipresente na mídia, promovendo a Theranos. Bernays orquestrou a imprensa para destacar os cigarros.
- Promessas de impacto social: Theranos prometeu avanços significativos na saúde com testes mais eficientes. Bernays, por outro lado, vinculou o fumo ao empoderamento das mulheres.
Conclusão
É essencial reconhecer que o marketing, quando usado com ética e responsabilidade, pode criar impactos positivos na sociedade.
Um exemplo recente foi a campanha da empresa de telecomunicações francesa Orange, antes da Copa do Mundo Feminina da FIFA. Vale a pena assistir ao vídeo:
“Orange – la Compil des Bleues”https://youtu.be/QVNZRHIZVL8
O anúncio da Orange, assim como a campanha “Torches of Freedom”, foi uma uma maneira inteligente de desafiar as normas sociais, mostrando que o futebol feminino pode ser tão emocionante quanto o masculino.
Por fim, a capacidade de discernir entre autenticidade e manipulação é mais crucial do que nunca. O caso da Theranos é um lembrete contundente de que, por mais atraente que uma história possa parecer, é essencial olhar além da superfície e questionar as promessas feitas.
Em um mundo onde a interpretação do consumidor muitas vezes supera a realidade, devemos nos perguntar: Estamos consumindo informações ou sendo consumidos por elas? A resposta a essa reflexão pode ser a chave para não apenas sermos consumidores mais informados, mas também profissionais de marketing mais éticos e responsáveis.
Garimpo
Se você ficou em choque com a história da Theranos, então a série “WeCrashed” sobre a trajetória da WeWork vai te fazer ver que a teoria do consentimento de Bernays é mais comum do que você imagina.
Ao assistir, dá pra perceber que a manipulação da opinião pública e o endeusamento em torno de uma empresa ou líder não são exceções, mas uma prática recorrente.
Pergunta do dia
Seja honesto!
Você está consumindo informações ou sendo consumidos por elas?
Recomendação: Crie um diário para responder às perguntas da coluna.
Continuem inspirados,
Guto