*Por Thiago Quintão Riccio, Laura Purri e Laura Góis
O mercado imobiliário ocupa papel relevante na economia, mas ainda é conhecido pela burocracia excessiva e pelo elevado grau de conservadorismo, principalmente no que se refere aos atos registrais e notariais. Não há dúvidas de que se trata de um dos setores mais tradicionais, caracterizado por normas rígidas e processos que, em regra, exigem conhecimentos específicos das partes envolvidas sobre regulamentos vigentes e normas de direito civil aplicáveis.
Visando o estímulo à desburocratização e a busca por soluções inovadoras, o mercado está investindo no processo de tokenização de ativos imobiliários, tendo surgido diversas startups com foco no desenvolvimento de soluções para digitalização desse setor da economia. A proposta é de simplificar os negócios imobiliários, reduzindo custos transacionais e atribuindo-lhes maior dinamicidade e transparência, desmistificando o acesso a esse mercado e aumentando a liquidez dos ativos imobiliários.
Neste artigo analisaremos o conceito de tokenização de ativos imobiliários, com foco nas principais características, nas vantagens do uso dessa tecnologia e nos desafios a serem enfrentados no cenário brasileiro.
Conceitos Básicos: entendendo a tecnologia
Antes de adentrar ao universo da tokenização de ativos imobiliários, é essencial compreender conceitos-chave, como os de Distributed Ledger Technology (“DLT”), blockchain, tokens e smart contracts.
Em linhas gerais, a tecnologia DLT, ou tecnologia de ledger distribuído, é uma estrutura digital de armazenamento e edição de dados, que permite o registro rápido e confiável de informações. Trata-se de um banco de dados compartilhado entre diversos dispositivos, os quais estão conectados em uma rede descentralizada. Esta rede permite que os usuários tratem simultaneamente dos registros, sem a necessidade de um administrador principal ou uma instituição central.
Cada evento registrado na DLT possui uma data e uma assinatura digital, o que garante a autoria e a data da ocorrência. A imutabilidade dos dados é assegurada pela replicação dos registros em diversos pontos da rede e, também, pelo fato de que cada nova transação deve ser validada pelos membros da rede antes de ser adicionado ao livro-razão (banco de dados).
A blockchain, em tradução literal, “cadeia de blocos”, é uma subespécie de tecnologia de registro distribuído, na qual cada bloco possui uma lista de transações, contendo data, detalhes do evento e um hash (código) do evento atual, seguido de uma referência ao hash do evento anterior. Os blocos de informação fazem parte de uma cadeia e são protegidos por um código criptografado, o que impede a modificação de detalhes da transação e assegura a inviolabilidade dos dados, até porque, qualquer alteração de dados depende do consenso da rede.
O token, ou criptoativo, é uma unidade digital que representa um ativo, valor ou direito dentro de um sistema específico. Classifica-se em fungível ou não fungível (non fungible tokens – “NFTs”), a depender da possibilidade de substituição do ativo por outro de mesma espécie, qualidade e quantidade (art. 85 do Código Civil).
O token fungível pode ser trocado por outro do mesmo tipo, visto que cada unidade é exatamente igual a outra, como por exemplo as moedas digitais, Bitcoin (BTC) e Ether (ETH). Em contrapartida, os NFTs não podem ser trocados uns pelos outros, cada um é único, por exemplo, uma imagem digital, um vídeo etc. Geralmente, são tokens vinculados a um ativo único – tangível ou intangível – que pode existir somente no mundo real ou somente no virtual.
Os smart contracts, por sua vez, são códigos computacionais autoexecutáveis que operam em uma plataforma blockchain. Os contratos são codificados, definindo regras e condições específicas para cada transação. Dessa forma, uma vez registrada na rede a ocorrência de determinada condição (por exemplo, o pagamento), o smart contract será automaticamente executado com o fim pretendido.
Explorando a Tokenização de Ativos Imobiliários
A tokenização de ativos imobiliários é o processo de criação de um ativo digital (o token, registrado na blockchain) que representará o ativo real, qual seja, os direitos sobre determinado imóvel. Resulta da integração da tecnologia DLT, blockchain, smart contracts e propriedade fracionária, implicando na vinculação do ativo imobiliário ao token dentro de uma rede virtual.
Assim como o procedimento de investimento em um fundo de investimento imobiliário (FII), a tokenização imobiliária fragmenta um ativo em porções gerenciáveis. No entanto, ao contrário dos FIIs, que utilizam cotas, a tokenização adota smart contracts.
A distinção fundamental entre FIIs e tokenização está no processo de negociação, uma vez que a compra e venda de cotas de FIIs ocorre nos mercados de bolsa ou de balcão organizado, tanto no mercado primário quanto no secundário, sendo, portanto, transações sujeitas à intermediação de agentes do mercado e à regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Em contrapartida, os tokens imobiliários são trocados diretamente entre investidores em um ambiente de nuvem ou por meio de plataformas de intermediação (exchanges). Os registros dessas transações são mantidos de maneira segura pela tecnologia baseada em blockchain ou semelhantes.
Existem diversas vantagens na utilização dessa tecnologia, sendo as principais: (i) maior liquidez, visto que os ativos podem ser negociados diretamente entre os investidores e os custos de entrada são mais baixos; (ii) mitigação de riscos, pois a descentralização da rede elimina intermediários nos processos de alienação dos ativos, diminuindo a burocracia e os custos transacionais; e (iii) transparência e rastreabilidade das operações, já que que os ativos estão registrados em blockchain e os dados podem ser validados em tempo real por qualquer pessoa com acesso à rede.
A Tokenização de Ativos Imobiliários no Brasil
A tokenização de ativos imobiliários apresenta perspectivas promissoras para desburocratização dos processos e para redução dos custos transacionais do mercado imobiliário. Entretanto, a forma como tem sido implementada no Brasil, ainda que incipiente, traz uma série de fragilidades jurídicas e, nesse cenário, surgem novos desafios – técnicos, regulatórios, fiscais e registrais – que podem comprometer os benefícios do uso dessa tecnologia.
Primeiramente, é necessário adotar um sistema de blockchain de ampla aceitação, o que permitirá o armazenamento de dados com transparência, eficiência e segurança. Apesar de existirem esforços nesse sentido, não há uma rede única para transacionar tokens relacionados a imóveis, ou ao menos alguma forma de interligação entre as redes individuais existentes, o que dificulta a consolidação dessa tecnologia no mercado imobiliário.
Cabe a ponderação, ainda, de que a tokenização de ativos imobiliários não altera o tratamento jurídico dos bens imóveis e nota-se que poucos estados brasileiros possuem uma regulamentação notarial e registral específica para esse tipo de transação, o que também representa um entrave para a ampla utilização dos tokens.
Dentre as poucas regulamentações notariais e registrais existentes a respeito do tema, destaca-se (i) o Provimento nº 38/2021, publicado pela Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), o qual regulamentou “a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis com contrapartida de tokens/criptoativos e o respectivo registro imobiliário pelos Serviços Notariais e de Registro do Rio Grande do Sul”; e (ii) o Provimento nº 87/2022, publicado pela Corregedoria-Geral de Justiça do Rio de Janeiro, que reconhece o uso de ativos digitais em escrituras públicas que visem permuta de imóveis, estabelecendo diretrizes de observância obrigatória para essas operações.
Como se vê, apesar de já terem sido dado passos para regulamentação da tecnologia de tokenização de ativos imobiliários, a fim de viabilizar sua efetiva utilização e aplicabilidade, alguns pontos fundamentais ainda não possuem resposta, destacando-se alguns exemplos a seguir:
- caso o proprietário registral de um imóvel objeto de tokenização pretenda alienar ou onerar aquele bem, quais os mecanismos legais de proteção do titular do(s) token(s) vinculados àquele imóvel?
- será possível implementar escrituras inteligentes e autoexecutáveis, como os smart contracts, considerando as peculiaridades da legislação e da regulamentação notarial e registral brasileira?
- como as operações envolvendo tokenização de ativos imobiliários serão tributadas? Como declarar tokens imobiliários na declaração de imposto de renda ou sua contabilização pelas pessoas jurídicas? A transmissão de um token imobiliário é evento tributável similar à transferência da propriedade de um bem imóvel? Os tokens imobiliários receberão o mesmo tratamento tributário que os NFTs? A receita auferida por uma empresa que detenha tokens imobiliários será – ou não – considerada receita imobiliária, configuração determinante para a definição da carga tributária incidente sobre as operações que os envolvam?
Muitos são os pontos ainda pendentes de esclarecimentos e regulamentação, o que é de se esperar. Os avanços tecnológicos estão revolucionando o mercado imobiliário, seja promovendo desburocratização de processos ou reduzindo custos transacionais. No entanto, algumas questões devem ser previamente analisadas, a fim de garantir segurança jurídica às partes envolvidas.
É evidente que o Brasil possui ainda um longo caminho a percorrer no que diz respeito à regulamentação, especialmente quanto aos aspectos notariais e registrais. Assim, é importante acompanhar as novidades tecnológicas, porém, sempre com cautela e avaliando os seus efeitos práticos perante o sistema legal brasileiro.
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