Tokenização (Coluna Freitas Ferraz Advogados)
Tokenização (Coluna Freitas Ferraz Advogados)

*Por Thiago Riccio, Marcela Assis e Eugênio Corassa

O gás carbônico (CO2) e o gás metano (CH4), juntamente com outros, constituem os gases de efeitos estufa (GEEs). O efeito estufa é um fenômeno natural que consiste na absorção de parte da radiação solar irradiada da superfície terrestre. 

O problema é que, desde a Revolução Industrial, os níveis de GEEs na atmosfera terrestre aumentaram de tal forma que se vivencia hoje o fenômeno denominado “aquecimento global” – marcado por eventos climáticos extremos, como o aumento de áreas desertificadas e a elevação dos níveis dos oceanos. Não por outro motivo, governos e empresas têm demonstrado uma preocupação cada vez maior com o tema. É nesse cenário que o mercado de carbono surge e ganha cada vez mais força.

Dividido entre regulado e voluntário, o mercado de carbono enfrenta diversos desafios para a sua operacionalização (atrelados, por exemplo, à validação da qualidade dos ativos negociados e à comercialização e à disponibilização destes para o mercado). Nesse sentido, a ascensão de startups especializadas nos últimos anos tem desempenhado um papel importante na viabilização desse mercado, principalmente por meio da tokenização de créditos de carbono – processo de transformar um ativo tangível ou intangível em tokens digitais, que são representações criptografadas e seguras em uma blockchain

É o caso das startups Greener e Bluebell, que têm liderado o caminho ao permitir que empresas e indivíduos comprem e vendam esses créditos de forma eficiente e transparente por meio de plataformas digitais baseadas em blockchain.

Diante desse cenário, nosso objetivo é discutir o conceito de mercado de carbono no Brasil, avaliando as potencialidades trazidas pela tokenização desses ativos. Além disso, destacaremos ao longo do texto alguns pontos de atenção e melhores práticas associadas ao uso dessas ferramentas por empresas que estejam, direta ou indiretamente, vinculadas ao mercado.

O que é o mercado de carbono?

A lógica por detrás do mercado de carbono é simples. De um lado, objetiva-se desincentivar a emissão de GEEs (em especial, do CO2) e, de outro, objetiva-se incentivar projetos sustentáveis, que capturem ou reduzam a emissão de GEEs. Cada crédito de carbono corresponde a uma tonelada de CO2 que deixa de ser emitida para a atmosfera. 

Assim, o mercado de carbono nada mais é do que um ambiente de compra e venda de créditos de carbono, lastreados em projetos de redução ou remoção de GEE, que possibilita a compensação de emissões por empresas, governos e organizações por meio da transferência de recursos entre os diversos agentes. 

Nessa lógica, foram desenhados dois tipos de mercado de carbono:

  • Regulado | Fundamenta-se em regras específicas (dentre outras, de funcionamento; de requisitos para participação; de precificação etc.). Geralmente, tais regras criam sistemas de cap and trade, os quais se estruturam da seguinte forma: uma vez estabelecidos tetos (caps) de emissões de CO2 para setores específicos, são distribuídas permissões de emissão (equivalentes aos créditos de carbono) – sempre de acordo com o teto (cap) fixado – àqueles que poderão utilizá-las ou comercializá-las (trade). A partir disso, os participantes terão a opção de (i) reduzir as emissões – de modo a observar o teto (cap) que lhe foi fixado; ou (ii) adquirir permissões (créditos de carbono) que lhes permitam ultrapassar o cap

No Brasil, a regulamentação do mercado de carbono é objeto do projeto de lei nº 528/21, ainda em tramitação no Congresso Nacional. Em paralelo, o Poder Executivo federal tentou criar as bases jurídicas de um futuro mercado regulado de carbono no Brasil por meio do Decreto federal nº 11.075/22, que criou procedimentos para a elaboração dos Planos Setoriais de Mitigação das Mudanças Climáticas, e da instituição do Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa. Em 2023, o Decreto federal nº 11.075/22 foi revogado pelo Decreto federal nº 11.550, que criou o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, órgão colegiado federal encarregada de acompanhar e implementar ações e políticas públicas relacionadas à Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC.

  • Voluntário | Surge a partir do desejo de empresas, indivíduos, ONGs ou governos de compensar e/ou neutralizar voluntariamente a sua pegada de carbono. Isso não quer dizer, contudo, que tal mercado não possua regras e padrões que devem ser seguidos por seus participantes. Existem, por exemplo, padrões internacionais de certificação que foram criados para regular a implementação e operação de projetos de redução ou remoção de emissões de GEEs no mercado voluntário. Esses padrões são geralmente administrados por organizações independentes e visam fornecer credibilidade e confiabilidade aos projetos e créditos de carbono a partir deles gerados. Os créditos gerados são auditados por entidades independentes. 

O que significa falar de tokenização no mercado de carbono voluntário?

No mercado de carbono voluntário, a tokenização atua transformando ativos ambientais em tokens digitais, por meio do registro de ativos reais em cadeias virtuais (como é o caso da blockchain). A tokenização neste mercado pode originar dois tipos de tokens: créditos de carbono tokenizado, que consistem em créditos de carbono que têm origem em registros externos à blockchain e são conectados à blockchain, e créditos nativos, que são emitidos diretamente na blockchain.

Embora deva ser implementada com cautela, a ferramenta da tokenização permite que os créditos de carbono sejam negociados de forma rápida e transparente, trazendo-lhes maior liquidez e acessibilidade. 

Liquidez e Acessibilidade | Quando os créditos de carbono são tokenizados, eles podem ser convertidos em ativos negociáveis semelhantes às commodities tradicionais. O token (que, neste cenário, representa uma medida de crédito de carbono) passa a poder ser comercializado em mercados digitais, potencializando sua liquidez e acessibilidade. A tokenização remove barreiras de entrada para aqueles que não podem obter licenças para negociar em mercados fechados ou intensamente regulados. 

Transparência | Outra vantagem da tokenização é a transparência trazida por modelos de blockchain ou distributed-ledger technology – neles, cada usuário pode verificar a integridade de sua cópia em face das cadeias desses livros-razão. Isso quer dizer que o processo de tokenização traz consigo um sistema de contabilidade implementado para reduzir o potencial de fraude e praticamente eliminar a possibilidade de falsificação. 

A tokenização é, pois, uma ferramenta para garantir a maior efetividade do mercado de carbono voluntário. 

Pontos de atenção e boas práticas relacionados à tokenização de créditos de carbono

A tokenização possui limitações. Ela não garante, por exemplo, a qualidade de um ativo criptografado – afinal, ainda não existem critérios objetivos e uniformes para emissão de tokens de crédito de carbono; não há clareza sobre o que esses tokens representam; nem sempre os tokens gerados seguem padrões internacionais que garantam a sua validade. Um caso controverso que ilustra essas limitações envolveu o projeto Florestal Santa Maria (FSM). Tratava-se de um projeto de manejo florestal sustentável em uma área de cerca de 71.000 hectares, no município de Colniza, noroeste do estado do Mato Grosso, região Amazônica do Brasil. Os créditos gerados pela FSM foram criptografados e passaram a ser comercializados pela empresa Moss, uma fintech ambiental, que vende créditos de carbono para pessoas físicas e empresas que queiram compensar suas emissões. O problema é que, no fim das contas, os tokens eram de “baixa qualidade” na medida em que não havia correspondência entre o ativo comercializado e a realidade.

Com o objetivo de evitar cenários como o da FSM, a International Emissions Trading Association (IETA) – organização empresarial sem fins lucrativos criada em junho de 1999 para estabelecer padrões internacionais para negociação de reduções de GEEs – criou algumas orientações. 

Por exemplo, os créditos de carbono devem ser tokenizados somente a partir de projetos que sejam validados, verificados e registrados sob padrões endossados e condicionalmente endossados pela International Carbon Reduction and Offset Alliance (ICROA), organização sem fins lucrativos que promove as melhores práticas em mercados voluntários de carbono, ou a partir do credenciamento governamental de créditos de carbono. 

A IETA também defende que todos os emissores de tokens estejam sujeitos a políticas de proteção ao consumidor e de transparência. Os emissores também devem garantir que os ativos climáticos digitais sejam adequados para os investidores. Isso é crucial nos casos em que o emissor não tem ligação direta com o ativo de carbono comercializado. 

Uma forma de se fazer isso é avaliar se os créditos de carbono observam mecanismos e parâmetros de qualidade. No mercado global, dois mecanismos independentes têm ganhado destaque: Verra e Gold Standard (GS). Essas organizações estabelecem padrões de certificação que são fundamentais para orientar e validar o mercado voluntário de carbono. Tais padrões de certificação garantem a integridade dos créditos transacionados, assegurando que representem efetivamente a redução de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente (tCO2e).

Conclusão

Nos últimos anos, a ascensão de startups tem desempenhado um papel crucial na viabilização de diversos mercados, dentre eles o mercado de carbono, por meio da tokenização de ativos ambientais. Essas ferramentas permitem a conversão de créditos de carbono em ativos digitais, proporcionando maior liquidez e eficiência nas transações. 

No entanto, é crucial que a tokenização esteja alinhada com as melhores práticas de mercado e seja devidamente regulamentada para evitar possíveis fraudes ou qualquer outra forma de greenwashing (estratégia empresarial que visa enganar os consumidores ao criar uma imagem falsa de responsabilidade ambiental, enquanto, na realidade, não se adotam medidas significativas para reduzir o impacto negativo no meio ambiente). 

A adoção de padrões de certificação reconhecidos e a realização de auditorias independentes ajudam a garantir a integridade e a credibilidade dos tokens de carbono. Ao estabelecer um ambiente confiável e transparente, as ferramentas de tokenização têm o potencial de impulsionar o mercado voluntário de carbono, facilitando a participação de mais atores e promovendo ações efetivas na redução das emissões de GEE. A transparência também exerce um papel fundamental no processo de tokenização, na medida em que garantem que apenas iniciativas legítimas e efetivas de redução de emissões sejam tokenizadas.

Somente nesse cenário a tokenização alcançará seu potencial máximo de operacionalizar o mercado de carbono e torná-lo eficiente. Assim, quaisquer empresas que desejem ingressar neste mercado precisam estar cientes de que a tokenização ou aquisição de ativos tokenizados devem estar adequadas a padrões e boas práticas internacionais.

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