Quando se pensa nos nomes que não têm medido esforços rumo a um ecossistema brasileiro de inovação mais equânime para mulheres – e sobretudo mães – é difícil não pensar no nome de Dani Junco. Farmacêutica de formação, ela criou a aceleradora para mães empreendedoras B2Mamy em 2015 a partir de uma inquietação pessoal, quando estava grávida de 5 meses, e se questionou se a maternidade poderia inviabilizar seu progresso profissional.
Desde aquele chamado no Facebook por mães também angustiadas com esta possibilidade e encontros subsequentes que deram origem ao negócio, muita coisa aconteceu. A empresa já qualificou mais de 30 mil mulheres para empreender ou se recolocar no mercado, conciliando a jornada dupla (ou muitas vezes, tripla) que as profissionais não raro precisam encarar. Entre os diversos marcos da história da aceleradora, está o apoio do Google for Startups, e a abertura da Casa B2Mamy, espaço no bairro paulistano de Pinheiros, em que mães podem trabalhar e fazer conexões de negócios.
Ao longo de sua jornada à frente da B2Mamy, Dani também orquestrou movimentos de ativismo em prol das mulheres, como chamar empresas para dar um dia off às funcionárias no Dia das Mães, e articular o Female Founders, estudo realizado com o Distrito e Endeavor, que trouxe um retrato inédito do empreendedorismo feminino no Brasil. A empreendedora, também colunista deste Startups, reinventou o negócio em meio à pandemia, e, mais recentemente, lançou o Mãe Fora da Caixa, rede social para conectar e desenvolver mães.
A lista de realizações é longa, e Dani quer avançar essa construção – mas não somente para nutrir seu próprio ego: “Acredito que legados quase sempre tem a ver com construir algo que nunca veremos. E não há como multiplicar poder: é preciso dividir”, pontua.
Em um papo com o Startups direto de Santos, cidade do litoral de São Paulo onde mora, Dani falou de assuntos como as mudanças de rumo na B2Mamy, liderança, como se divide entre duas cidades e, claro, maternidade. Confira, a seguir, os melhores momentos da conversa.
Como tem sido empreender no último ano?
Nunca achei que eu fosse vender a B2Mamy um dia, ou abrir capital, ou diluí-la, com muito mais sócios. Sempre achei que o meu negócio fosse passado para a frente através de sucessão, para as pessoas que trabalham comigo. Mas vejo que negócios sociais como o meu, que impactam e que trazem à luz conversas com gênero, equidade e diversidade, inclusão não conseguem sobreviver com modelos tradicionais. Empresas tradicionais de sucesso como a Amor aos Pedaços, por exemplo, que há 40 anos tem uma marca forte de bolos, tem um modelo bem diferente do nosso.
Nos últimos meses, temos olhado muito para como a gente pode deixar esse legado, que, infelizmente, nem precisava existir. [O ganhador do Nobel da Paz, Muhammad] Yunus fala da vontade de ter o Museu da Pobreza, algo que, teoricamente, não deveria existir. As coisas simplesmente deveriam ser justas, iguais, pra todo mundo. Mas a situação vem se agravando e nos últimos dois anos e meio de pandemia esse ciclo só tem piorado, incluindo o que se refere à liberdade financeira da mulher.
O último ano, para mim, foi de avaliar nossos movimentos de crescimento, olhando para cheques. Encarar uma captação, diluir mais a empresa, deixar outras pessoas entrarem. Empacotar produtos que sejam palatáveis para o mundo corporativo, para garantir estes cheques.
Percebo que simplesmente olhar para uma causa justa não é suficiente – ainda. Nestes movimentos, me deparo com o chamado dilema do fundador, além de meio que decidir entre ser o rei, ou o rico. Você divide, ganha grana, mas não é mais dono da sua empresa. Os últimos meses tem envolvido olhar muito para esse dilema, repensar mudanças, decidir que realmente temos que deixar outras pessoas entrarem, mas é um ano de decisão do rumo que vamos tomar.
Diluir a posição na empresa é um tanto preocupante para a maioria dos fundadores, não? Como você lida com isso?
Lido mal, porque o nosso controle é o que mantém a cultura da B2Mamy viva. Em muitas conversas que tenho com pessoas que querem colocar dinheiro, percebo que nos enxergam como um aplicativo comum, com um monte de mulheres dentro. E aí, [a pergunta é] como é que a gente escala? A gente sabe a resposta, e tenta explicar: isso que vocês querem encaixotar e escalar, é justamente aquilo que deixa a gente num oceano azul. Então, pra mim, as conversas são muito difíceis.
A parte positiva é que, cada vez mais conversas com fundos e pessoas tem envolvido mulheres, que estão liderando [estes diálogos]. Ter uma mulher do outro lado faz toda a diferença na hora de falar sobre estratégia e próximos passos, e fica mais interessante ainda quando se trata de fundos que estão olhando para impacto. É algo recente, mas muito peculiar e interessante.
Você fica entre Santos e São Paulo. Como é essa rotina?
É deixar o coração em casa quando pego a estrada. Estou em Santos, a minha rede de apoio está aqui. É aí que entra o maternity penalty [o preço que profissionais pagam por serem mães]. Minha mãe e minha tia, estão aqui, e o Lucas [filho de Dani, de 7 anos de idade] também. Sou casada, o pai do Lucas é super presente, mas ele é CLT: se acontece qualquer coisa com o Lucas, eu sou a pessoa que faz o corre, assim como milhares de famílias brasileiras, onde é a mulher que faz essas coisas. É algo muito difícil, e tenho certeza que isso atrasa a minha carreira também. A minha humanidade está em pauta – e tudo bem, porque é meu filho. Mas é uma logística dura.
Sou uma pessoa que tem um cheque bem alto no mercado de trabalho. Então, hoje, se eu fizesse o movimento de voltar para o mundo corporativo, sei que não teria um problema de recolocação, nem de salário. Mas as empresas não estão prontas para alguém com eu, que pode ser vista como trailblazer [pessoa que sempre está na vanguarda], mas também como uma troublemaker [pessoa que só arruma problemas], questionando o status quo o tempo todo.
Eu amo demais o que faço hoje. Eu também estou muito cansada. Acabei de voltar de 12 dias de uma internação e uma cirurgia na coluna, um problema que reflete a falta de autocuidado. Mas quando você escolhe algo, uma missão, é mais forte que você e muito maior que dinheiro: não dá nem para explicar com palavras.
Qual é a sua percepção do ecossistema de Santos? Seria possível tocar a B2Mamy daí?
O ecossistema de Santos é bem embrionário. Temos alguns colegas aqui, como a Ludmilla [Rossi, da JuicyHub] e estou conversando com atores locais como o Parque Tecnológico de Santos. Estou olhando para a minha cidade, quero transformá-la num outro lugar, porque Santos é uma cidade incrível, rica, com muitas possibilidades. Mas hoje, é impossível não “ir para o mundo”.
Hoje, fico em São Paulo dois dias por semana. Operacionalmente, conseguiria ficar só em Santos e ir para a capital só para os eventos. Mas temos a Casa B2Mamy [no bairro paulistano de Pinheiros] e apesar de conseguirmos fazer tudo online e termos o time em quatro estados diferentes, o espaço é muito importante.
Na Casa B2Mamy, recebemos cerca de 60 pessoas por dia para trabalhar e estar junto. E muitas mulheres viajam para me ver. Elas querem me ver, porque eu sou a pessoa que levantou um negócio durante o puerpério, como um ser humano perdido, com medo, confusa, na mesma condição em que elas estão. Para estas mulheres, me ver, tocar em mim, conversar comigo, tomar um café, aterrissa tudo, mostra que é verdade, que é possível. E também demonstra a importância da presença física.
Vemos mulheres no ecossistema de inovação, como Helena Prado [co-fundadora e sócia da Pine PR, agência especializada em startups, que também lidera comunicação na EY] deixando a gestão das empresas que criaram com outros sócios e profissionais de mercado para abraçar outros desafios. Esta seria uma possibilidade para você, em um futuro próximo?
Sempre converso muito com a Helena sobre este tema. Inclusive, é incrível que a EY ache isso ótimo. É uma mudança no mercado, que é muito significativa.
Para a B2Mamy, [o afastamento da liderança no dia a dia] não seria um problema operacionalmente falando, tanto que eu fiquei dias afastada recentemente – e tudo bem. Temos produtos escaláveis que não dependem mais de mim, e junto com minhas sócias e o time, criamos um plano de ação muito bem organizado para momentos como este. Mas hoje, eu sou a maior conversora de cheques da B2Mamy. A gente tem um visão, e isso se reflete na minha venda. Preciso que [o cliente] venha junto comigo, seguindo esta visão. E encontrar esse tipo de vendedor é muito difícil.
Como CEO, me vejo sendo substituída no futuro, sim. Sou farmacêutica de formação, e adoro a área de desenvolvimento, de inovação, e especialmente produtos – tanto que criei todos os produtos da B2Mamy. Não consigo enxergar ninguém para me substituir, ainda. Mas se isso acontecesse, eu certamente iria para este lugar, de inovação, de desenvolvimento de novos negócios.
Como você cria seu filho para que ele seja um aliado efetivo no futuro?
Temos uma responsabilidade muito grande de olhar para esse lugar. A parte boa é que ele está se educando praticamente sozinho nesse quesito, porque ele vive numa casa extremamente matriarcal, com minha tia e mãe, que também são empreendedoras. Ele vê que elas tomam todas as decisões da casa.
Certo dia, em uma atividade escolar sobre as profissões dos pais, o Lucas foi com a camiseta da B2Mamy, e quando perguntaram o que a mãe dele fazia, e ele disse, um pouco enciumado e orgulhoso, ao mesmo tempo: “Minha mamãe ajuda outras mamães, porque as mamães não conseguem trabalhar igual”. Eu nunca falei isso pra ele, o que significa que ele percebe que existe um problema.
Quando ele vai até a Casa B2Mamy, vê todas aquelas mulheres trabalhando com as crianças e fazendo reuniões. A cabecinha dele já vai se moldando a partir de um outro lugar: o Lucas nunca vai falar que uma mulher não trabalha, ou vai deixar de dizer que meninas são incríveis, e que devem ir atrás de seus sonhos.
Por outro lado, ele também sofre na escola, por não ser o menino que empurra, bate, violenta. Ao mostrar admiração por um primo bailarino na escola, por exemplo, ele também sofreu. Em casos como este, incentivo que ele questione as pessoas sobre suas críticas e, por vezes, o deixo adulto demais. Isso acontece porque tento protegê-lo. Na escola, ainda é muito complicado virar essa chave.
O que te dá esperança para continuar, apesar dos desafios?
As crianças que chegam a cada 20 segundos nesse país; junto com elas, também nasce uma mãe. E eu sinto que, de alguma forma, estou conectada a elas. E é minha esperança que elas entendam as oportunidades e possam fazer diferente. Eu vejo na vida a oportunidade de começar esse processo de transformação para mais mulheres, todos os dias.
Quando uma mulher tem consciência da sua própria beleza, e não só do ponto de vista estético, ela tem consciência social, do seu valor. Quando a gente interrompe a violência, negocia melhor, quando a gente entende quem a gente é, se coloca em primeiro lugar, as coisas se transformam. Quando mulheres acordam para saber que elas são potência, tudo muda ao redor delas. Eu tenho esperança que elas acordem.
Raio X – Dani Junco, CEO da B2Mamy
Um fim de semana ideal tem… Um jogo de vôlei pela manhã, com meu filho brincando na praia. Comer algo gostoso, na praia mesmo – tudo em Santos. Voltar para casa e tirar um cochilo, ficar com meu marido. Talvez, com uma chuva no fim do dia.
Um livro: O que me transformou na pandemia foi “O Jogo Infinito”, de Simon Sinek. No momento, estou lendo “A Ilha das Mulheres”, de Kiran Millwood, em que todos os homens da ilha norueguesa de Vardø morrem em uma tempestade, e as mulheres precisam executar todas as atividades que até então eram deles. É uma narrativa incrível, inspirada em fatos reais.
Algo simples, que eu não vivo sem: Esporte.
Uma música favorita: Anunciação, de Alceu Valença.
Um prato favorito: Feijoada baiana, de preferência a que a minha mãe faz.
Como gosto de relaxar: Lendo, brincando com o Lucas. Qualquer coisa que eu faça com ele me deixa feliz, relaxada, em paz.