
A Austrália se tornou o primeiro país do mundo a puxar o plugue: menores de 16 anos estão oficialmente fora das redes sociais. A partir desta quarta-feira (9) – que já começou no fuso australiano – mais de um milhão de contas serão desligadas de uma só vez. A medida inédita colocou o país no centro do debate global sobre os impactos das plataformas na segurança e saúde mental dos jovens e acendeu alertas em governos que estudam seguir o mesmo caminho. O movimento inaugura uma disputa jurídica e uma guerra cultural que deve esquentar nas próximas semanas.
A Austrália tem cerca de 5 milhões de crianças menores de 16 anos e um milhão delas entre 10 e 15 anos, segundo o bureau de estatísticas do país. Um estudo nacional encomendado pelo governo este ano apontou que 96% desse grupo usa redes sociais. Sete em cada dez relataram ter sido expostas a conteúdos e comportamentos nocivos, incluindo material misógino, vídeos de brigas e posts que promovem distúrbios alimentares e até suicídio.
Pelas novas regras, as plataformas terão de adotar “medidas razoáveis” para impedir que menores de 16 anos criem contas e para desativar ou remover perfis já existentes no país. Quem não cumprir pode enfrentar multas de até 49,5 milhões de dólares australianos (cerca de US$ 32 milhões) por violações graves ou repetidas. Crianças e pais não serão punidos em caso de infrações, colocando o peso diretamente sobre as Big Techs .
A maioria das plataformas restritas – entre elas, Instagram, YouTube, TikTok, Facebook, X, Snapchat e Reddit – afirmou que vai cumprir a lei, e algumas já começaram a agir antes mesmo de a regra entrar em vigor. A Meta, por exemplo, anunciou no mês passado que iniciaria o encerramento de contas de Instagram, Threads e Facebook na Austrália a partir de 4 de dezembro.
O que dizem os defensores
De um lado, autoridades defendem que a proibição – aprovada por ampla margem na Câmara dos Representantes, por 102 a 13 – é uma medida de proteção às crianças. Os apoiadores citam os impactos de padrões de imagem corporal nas meninas, a influência de conteúdos misóginos nos meninos e a exposição a materiais altamente viciantes. Também lembram casos de suicídio de adolescentes australianos que, segundo suas famílias, sofreram bullying online antes de morrer.
“Com uma única lei, podemos proteger a Geração Alfa de ser sugada para o purgatório por algoritmos predatórios descritos pelo próprio criador do recurso como ‘cocaína comportamental’”, disse a ministra das Comunicações, Anika Wells, ao National Press Club em Canberra na semana passada. A referência é a Aza Raskin – empreendedor, designer e ativista tecnológico, filho de Jef Raskin, pioneiro das interfaces e autor do conceito que deu origem ao Macintosh – que ficou conhecido por criar a rolagem infinita nos sites, hoje criticada por incentivar comportamentos viciantes nas plataformas digitais.
Para os defensores da medida, é questão de tempo até que outros países sigam o exemplo australiano. “Sempre me referi a isso como a primeira peça do dominó”, disse Julie Inman Grant, comissária de Segurança Online da Austrália e responsável pela regulação do setor, em um evento em Sydney na semana passada.
Uma pesquisa da YouGov feita no ano passado mostrou que 77% dos entrevistados apoiam a proibição. Para os defensores, a medida pode estimular crianças e adolescentes a priorizarem interações presenciais, fortalecendo habilidades sociais que, segundo eles, vêm sendo corroídas pela hiperconexão.
O que dizem os opositores
Apesar de muitos pais e até alguns adolescentes terem recebido bem a proibição, críticos dizem que a medida pode limitar a capacidade dos jovens de se expressarem, se conectarem e buscarem apoio online. O argumento ganha peso especialmente entre grupos marginalizados ou entre quem vive em regiões isoladas, onde a internet funciona como rede de suporte e aprendizado. Segundo a NBC News, dois jovens de 15 anos entraram com uma ação na Suprema Corte australiana para tentar barrar a medida.
Embora as plataformas digam que vão cumprir a proibição, usando tecnologia de verificação de idade para identificar menores de 16 anos e suspender suas contas, muitas rebatem que isso não tornará as crianças mais seguras. Elas afirmam compartilhar a preocupação com a segurança online, mas defendem que a medida pode ter o efeito contrário.
Para empresas como o Snapchat, tirar adolescentes das redes não os protege, apenas os empurra para novos apps de mensagens, não regulamentados e com muito menos supervisão. “Desconectar os adolescentes de seus amigos e familiares não os torna mais seguros, pode levá-los a usar aplicativos de mensagens menos seguros e menos privados”, disse o Snap em comunicado no mês passado.
Elon Musk, dono do X, atacou duramente a decisão, chamando-a de “uma forma indireta de controlar o acesso à internet por todos os australianos”. Outros opositores dizem que a proibição é drástica demais e foi aprovada de maneira precipitada, sem espaço suficiente para debate público ou análise de impacto.
Algumas plataformas ficaram fora do bloqueio – pelo menos por enquanto. Segundo a CNN, a lista inclui Discord, GitHub, Google Classroom, LEGO Play, Messenger, Pinterest, Roblox, Steam e Steam Chat, WhatsApp e YouTube Kids. A exclusão do Roblox chamou atenção e estranhamento entre australianos, especialmente diante de relatos recentes de que crianças têm sido alvo de predadores adultos na plataforma.
A comissária de Segurança Online, Julie Inman-Grant, afirmou que a Roblox concordou em adotar novos controles, já em implementação na Austrália, Nova Zelândia e Holanda e que devem chegar a outros países nos próximos meses. Pelas novas regras, os usuários precisarão comprovar sua idade para ativar as funções de bate-papo e só poderão conversar com pessoas da mesma faixa etária.
O que acontece a seguir?
A expectativa do governo australiano é que, longe das redes sociais, crianças e adolescentes voltem a se conectar mais com o mundo fora das telas, e isso será medido de perto. A comissária de Segurança Online, Julie Inman-Grant, afirmou na semana passada que o governo pretende acompanhar uma série de indicadores para entender se a política está surtindo efeito. Entre os pontos observados estarão padrões de sono, níveis de interação social, uso de antidepressivos, hábitos de leitura e até a prática de esportes ao ar livre.
Ela destacou, porém, que a análise não se limitará aos potenciais benefícios. O monitoramento também buscará capturar eventuais efeitos colaterais, como a possibilidade de que jovens migrem para cantos obscuros e menos moderados da internet.
Para conduzir a análise, seis pesquisadores do Social Media Lab da Universidade de Stanford trabalharão em conjunto com o órgão regulador australiano. Segundo a CNN, todo o processo será supervisionado por um conselho acadêmico independente formado por 11 especialistas de universidades dos Estados Unidos, Austrália e Reino Unido.
Em comunicado, Stanford afirmou que a metodologia, os dados e as conclusões serão divulgados publicamente para análise de pesquisadores, sociedade civil e formuladores de políticas ao redor do mundo. A instituição diz esperar que as evidências produzidas sirvam de base para decisões de outros países que avaliam novas regras para proteger crianças online.