O ecossistema de inovação e tecnologia no Brasil e na América Latina vive um novo ciclo. Mais calejado depois dos altos e baixos dos últimos anos, o mercado começa a se reerguer com mais racionalidade e consistência. O cenário atual combina capital disponível, talentos, um ambiente regulatório favorável e uma geração de founders mais preparados – e agora com a IA no centro da estratégia.
Essas são algumas das conclusões do Digital Transformation Report, estudo anual da Atlantico, gestora de venture capital focada em early-stage. Nesta edição, o relatório traz um tema que resume bem o momento: The End of Friction.
“Quando a gente fala de fricção, a gente fala dos pontos que atrasam o desenvolvimento de um ecossistema. E esses principais pontos de fricção, geralmente, são capital financeiro, capital humano e regulação”, explica Ana Martins, sócia da Atlantico, em entrevista ao Startups.
Do ponto de vista financeiro, o estudo mostra que existe capital disponível. Em 2024, o Brasil acumulou cerca de US$ 3 bilhões em dry powder – recursos já captados por fundos, mas ainda não investidos. Esse é o segundo nível mais alto da história, ficando atrás apenas de 2023, com US$ 3,4 bilhões.
“Isso significa que as empresas de tecnologia têm o capital para escalar somente com os fundos locais. Isso sem contar com a participação dos fundos globais, que vêm aumentando à medida que a gente vai vendo novas empresas interessantes surgirem”, afirma.
Para a executiva, o ambiente favorável vai além do financeiro. Ela explica que o capital humano está em um “ponto de inflexão” e que o ciclo de formação de talentos de tecnologia está começando a mostrar resultados.
“O capital humano demora para se desenvolver. Por exemplo, um engenheiro de software que se forma na faculdade e vai trabalhar em uma grande empresa de tecnologia, como Nubank, Mercado Livre, iFood, entre outras. Ele precisa passar por uma jornada em que ele atinge um nível de senioridade e então decide abrir a própria empresa. São ciclos de 10 a 15 anos”, ressalta Ana, ressaltando que o estudo mapeou 140 empresas que já surgiram de grandes unicórnios brasileiros e latino americanos.
O número de unicórnios na América Latina, inclusive, quase triplicou desde 2020, passando de 14 naquele ano para 39 em 2025.
Outro fator relevante é a atuação regulatória. O levantamento destaca o potencial que se abre com iniciativas como as do Gov.br, que possui verificação de identidade de 82% da população brasileira, com projeção de alcançar 100% dos brasileiros em 2027. O roadmap do projeto inclui a expansão dessa verificação para o setor privado.
Para Ana Martins, ter um setor público favorável à inovação, encabeçando projetos como o Pix, o Open Finance e o Drex, tem feito a diferença.
“O poder da regulação é de acelerar o desenvolvimento de um ecossistema com uma tacada só, porque a mudança vem top-down. No Brasil a gente viu uma evolução enorme do ecossistema de fintechs nos últimos 10 anos e grande parte do crédito aqui vai para o Banco Central. O Gov.br foi um exemplo novo que a gente trouxe esse ano, de uma ferramenta que digitalizou a identidade da população brasileira. Assim como o Pix, também é um dos sistemas mais inovadores do mundo, e você pensa em toda a implicação que isso tem para empresas de tecnologia”, diz.
O levantamento aponta ainda que a IA tem se tornado parte do dia a dia dos brasileiros e mexicanos. Em especial, dos founders. Segundo o estudo, 30% das startups se dizem AI-native, 41% são AI-enhanced, ou seja, possuem aplicações com inteligência artificial. Outras 22% são assistidas por IA e 7% se consideram AI-curious.
A sócia da Atlantico também vê na instalação de data centers uma oportunidade de longo prazo para o Brasil. Ela lembrou que o país já atraiu investimentos expressivos, como os US$ 2,7 bilhões anunciados pela Microsoft em nuvem e inteligência artificial. Para Martins, esse movimento não apenas gera empregos e capacita profissionais, mas também pode abrir espaço para que o Brasil desenvolva competências em hardware, tradicionalmente menos exploradas pela região. “Isso pode criar uma nova onda de empresas de tecnologia que não só fornecem software e serviços digitais, mas também podem competir globalmente no hardware”, observou.
Quanto ao futuro do venture capital no Brasil, Martins avalia que o setor atingiu um patamar saudável após o pico de 2021 e a queda subsequente. “Nem sei se eu diria que o pior já passou, porque eu acho que na verdade a gente inflou em 2021 e agora voltou para um nível saudável de capital”, disse. Segundo ela, as boas empresas terão recursos suficientes para escalar desde o early stage até o growth.