Muito tem se falado sobre como a pandemia acelerou a transformação digital de pessoas e empresas. Os últimos 3 anos foram marcados pelo ensino à distância, o trabalho remoto e o comércio online. Na área da saúde, o boom da telemedicina veio acompanhado das prescrições digitais e vendas de medicamentos online. Embora parte da população ainda busque as lojas físicas do bairro, farmácias e drogarias têm se aproximado cada vez mais de um novo modelo de negócio que pode ganhar força nos próximos anos: dark pharmacy.
A proposta é semelhante a das dark stores ou dark kitchens: atuar de forma 100% digital, apenas como centro de distribuição de compras online feitas em sites, apps ou marketplaces. Isso permite encurtar a distância entre as lojas e os clientes, agilizar entregas, reduzir custos operacionais e, como resultado, diminuir o preço dos produtos. No Brasil, o movimento ainda é recente, mas empresas do setor – principalmente healthtechs – já estão de olho nesta tendência.
“A indústria de saúde é muito grande. O setor até utiliza tecnologia, mas há muito espaço para melhorias especialmente no B2C, olhando para a jornada do consumidor final”, afirma Bruno Ramos, cofundador da Pill Farmácia Digital. A startup nasceu com o objetivo de transformar a forma como as pessoas se relacionam com as farmácias. “Hoje essa é uma relação puramente transacional, um comércio entre paciente e estabelecimento”, analisa Bruno, que fundou a empresa ao lado de Tom Bergstein.
“Ao estudar as demandas do consumidor ficou muito claro que o paciente quer ter um cuidado no atendimento farmacêutico, incluindo encontrar o que está procurando com facilidade e pagar um preço justo. Conseguimos oferecer esses valores sem ter que abrir centenas de lojas Brasil afora. É um modelo muito mais leve que permite que o empreendedor invista no que efetivamente faz diferença para o paciente”, diz Tom.
Os clientes querem conveniência e nas compras físicas costumam buscar as farmácias mais próximas de casa. No online, a possibilidade de comprar um remédio sem ter que levantar do sofá acaba oferecendo um conforto ainda maior. Mas para Tom e Bruno a grande vantagem é mesmo a redução dos custos. Operando 100% digital, eles não precisam bancar grandes unidades físicas espalhadas pelo país, nem tantos funcionários para operar em cada local. A redução dos gastos operacionais é refletida no preço final dos produtos, que tendem a ser mais baratos do que nas drogarias tradicionais.
Desafios do mercado
Apesar dos benefícios, o modelo ainda enfrenta alguns entraves para se consolidar, a começar pela cultura de farmácias e drogarias físicas, principalmente das grandes redes, ainda ser muito forte no país. Para romper com a tradição, os novos players precisam se aproximar do público e mostrar as vantagens do digital. “A mudança de mentalidade é uma dificuldade. Tentamos mostrar que somos uma boa opção para o paciente cuidar da sua saúde. Sempre tirando dúvidas, acompanhando o tratamento e gerando valor. Quando o cliente entende o potencial, fica super favorável à tese”, afirma Bruno.
Outro ponto é a questão regulatória. “A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem a competência de regular e fiscalizar a comercialização de medicamentos, produtos para a saúde, cosméticos, entre outros. E também de regular os serviços, inclusive os farmacêuticos”, explica Renata Rothbart, advogada do escritório Mattos Filho que atua assessorando clientes das indústrias de Life Sciences e Saúde Digital.
Atualmente, o modelo de dark pharmacy não está previsto na regulamentação. Segundo a especialista, a norma atual das boas práticas de serviço e condições de funcionamento das farmácias é de 2009. “Desde então, não houve uma evolução muito relevante em termos de adoção de tecnologia e digitalização das experiências. Mas a pandemia deixou ainda mais claro a necessidade e a funcionalidade que a internet pode trazer na jornada do paciente”, analisa. Com o surto de Covid-19 houve uma série de flexibilizações para que as pessoas continuassem seus tratamentos. Entre elas, a adoção de prescrições digitais, telemedicina e venda online de medicamentos controlados.
Em 2020, a Anvisa lançou uma Consulta Pública para discutir a necessidade de uma revisão do texto. “Esse é um mecanismo de participação social importante, em que qualquer pessoa física ou jurídica – incluindo associações, universidades, pesquisadores e entidades do setor – pode se manifestar a respeito do texto e propor mudanças. Não significa que serão acatadas, mas é a oportunidade de mostrar o que talvez não funcione e o que deveria ser considerado”, diz Renata.
Desde então, a entidade definiu um Grupo de Trabalho dedicado a estudar e discutir a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 44/2009, que trata das boas práticas farmacêuticas para o controle sanitário do funcionamento, da dispensação e comercialização de produtos e da prestação de serviços farmacêuticos em farmácias e drogarias. Uma discussão não diretamente sobre dark pharmacy, mas sobre a comercialização remota de medicamentos e funcionamento dos e-commerces no setor. “Agora a Anvisa está na fase de avaliar a inclusão das contribuições que vieram do grupo”, pontua Renata.
De acordo com a advogada, é importante – embora não obrigatório – que a Anvisa faça uma análise de impacto regulatório. “Uma nova regulação potencialmente trará mudanças bastantes relevantes para o setor farmacêutico. Seria interessante analisar os impactos de regular ou não isso de determinada forma. Mapear quais modelos são praticados hoje, se existe algum risco para o consumidor e como endereçá-lo da forma correta”, avalia.
“Espero que tenhamos uma regulação atualizada e coerente com a realidade do mercado, mas o trabalho não termina aí”, afirma Renata. Com os avanços na digitalização dos serviços farmacêuticos, outras questões deverão ser colocadas em pauta, como a questão da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e regras de publicidade de medicamentos. A especialista acrescenta que hoje há a possibilidade de prescrever alguns medicamentos virtualmente, mas outros ainda estão pendentes por uma adequação do sistema de vigilância sanitária. “A digitalização da jornada do paciente está só no começo, e ainda há muito para se fazer”, conclui Renata.
Para Tom Bergstein, fundador da Pill, uma questão importante a ser discutida é a de venda de medicamentos controlados, que exigem a retenção da receita. “Antes da pandemia não podíamos fazer a venda online desses produtos. Com a Covid-19 permitiu-se, em caráter temporário, a dispensação remota dos medicamentos controlados”, afirma. A expectativa, segundo o empreendedor, é que isso vire uma Resolução da Diretoria Colegiada, sendo incorporado à regulamentação.
“A Pill criou mecanismos para isso e hoje já consegue fazer esse atendimento, ainda reportando para a Anvisa e fazendo essa comunicação sobre o remédio e as receitas da forma correta. O processo funciona e para o paciente há a vantagem de estar no conforto de casa. Esperamos que seja uma mudança que veio para ficar”, pontua.
Quem já faz
Mesmo sem uma regulamentação específica sobre dark pharmacy, a operação da Pill já é regulada pela Anvisa e o Conselho Regional de Farmácia. “A startup segue toda a normativa que se refere ao setor de varejo farmacêutico e opera com todas as licenças necessárias, além de receber visitas regulares dos órgãos competentes do setor”, explica o cofundador Bruno Ramos. A healthtech é uma das investidas da Coruja Capital, investidora independente de Márcio Schettini, ex-diretor-geral de varejo do Itaú.
Além dela, outros players já apostam na digitalização de serviços farmacêuticos, embora não operem necessariamente com sua própria farmácia digital. É o caso da Mevo (ex-Nexodata), healthtech paulistana fundada em 2017. Além de receita médica eletrônica, a startup tem uma plataforma para compra online de medicamentos de farmácias por todo o país. A solução integra as mais diversas redes farmacêuticas promovendo uma experiência remota de compra com entregas em até 45 minutos em São Paulo.
Em julho, a companhia levantou uma pré-série B de R$ 45 milhões liderada pelo VC norte-americno Floating Point, com participação da família Fribourg, do investidor Jeff Keswin, fundador da Lyrical Partners, e do Grupo Santa Cruz, entre outros. Na época, a PEGN reportou que a venda de remédios online ajudou a marca a aumentar o volume de vendas em 10 vezes em apenas cinco meses.
Já a Memed, especializada em receitas médicas digitais, interliga a cadeia de valor do sistema de saúde brasileiro reduzindo custos, auxiliando a prática médica e universalizando o acesso à saúde de qualidade. No ano passado, a healthtech lançou a plataforma Memed+, um marketplace que conecta pacientes a diversas redes de farmácia para a compra online de medicamentos a partir da receita digital.
“A digitalização no setor está só começando. Os grandes players começaram recentemente a investir em tecnologia e inovação. Há muitas oportunidades e vamos seguir aprimorando nossas soluções”, afirma Joel Rennó Jr, CEO da Memed, em entrevista ao Startups. Para o executivo, o principal desafio é ter um ambiente propício para que novas empresas surjam e regulações positivas que permitam a criação de novos modelos de negócio.
Apesar de não se posicionar como dark pharmacy (e nem ter a pretensão de ser uma), a Memed atua como aliada do varejo farmacêutico. A companhia atende mais de 210 mil de médicos e 22 milhões de pacientes, emitindo cerca de 4 milhões de prescrições por mês. A empresa conta com mais de 350 parceiros, incluindo 15 operadoras de saúde, e é utilizada por mais de 80 mil farmácias em todo o país.
Em junho de 2021, a startup recebeu R$ 300 milhões da DNA Capital, que montou um fundo específico só para investir na operação. Quatro meses depois, a startup levantou mais R$ 100 milhões com a Fit Participações, o fundo soberano de Singapura Temasek e novamente a DNA Capital. Com o caixa reforçado, a healthtech cresceu de forma acelerada e, em menos de um ano, aumentou sua base de 30 para mais de 200 colaboradores.