A DeepSeek abalou o mundo da tecnologia e colocou em xeque a hegemonia das big techs americanas. A inteligência artificial chinesa ganhou os olhos do mundo após anunciar ter custos operacionais menores do que das suas grandes concorrentes, além de ter código liberado para que qualquer pessoa possa editar e reutilizar – viva o Open Source.
Mas a questão que não quer calar é: o que todo esse alvoroço muda para os brasileiros, que para muita gente, estão atrasados e sem chance de disputar esse mercado? Apesar de não ter nenhum projeto que tenha “explodido”, o Brasil possui diversas iniciativas com inteligência artificial. É o caso da Mentora (IA para processos de mentoria e educação), Prediza (previsões para o agronegócio), 4kst (machine learning e análise de dados para o segmento B2B), PickCells (ferramenta de otimização e potencialização laboratorial) e várias outras.
Mesmo assim, de acordo com Marina Proença, fundadora da Mentora, o mercado brasileiro de IA ainda se encontra em processo de amadurecimento. Ela percebe que muitas empresas estão curiosas com a ferramenta, mas ainda buscam entender como aplicá-la. “Acho que a grande coisa que eu tenho visto é, ‘legal, como é que a gente usa isso aqui’? ‘O que a gente faz com isso?'”, exemplifica.
Essa também é a opinião de Ricardo Lanzuolo, CEO e co-founder da 4kst. “Assim como no mundo inteiro, o mercado brasileiro de IA está tentando se achar. Então, por aqui, não é diferente. Todo mundo começou a trabalhar sobre essa novidade para o que pode ser feito sobre sobre essa camada”, explica.
Portanto, a chacoalhada que o DeepSeek deu no mercado pode sim abrir uma oportunidade para as companhias brasileiras que tentam acompanhar o passo da disputa tecnológica da inteligência artificial. Mas não será algo fácil.
Quais são as dificuldades do mercado brasileiro de IA hoje?
Fundadores e especialistas com os quais o Startups conversou nos últimos dias têm duas queixas em comum: falta de estrutura e de investimentos. Ok, nada de novo. Mas em um mercado tão competitivo, isso fica ainda mais grave. Os talentos estão a um e-mail de distância de oportunidades que pagam em dólar.
Pesa aqui também a boa e velha âncora mental que atravanca muitas das ambições brasileiras de se tornar uma referência em tecnologia (seja IA ou não): o famigerado complexo de vira-lata.
De acordo com Rodrigo Paiva, sócio-fundador da Pickcells e Head de IA na Neurotech, do grupo B3, a perspectiva do viralistimo é uma boa colocação. “Ela vai num aspecto macro, tipo: é possível o Brasil fazer isso? Sim, o Brasil tem pesquisadores de alto nível, tem empresas fornecendo tecnologia, internacionalizando tecnologia a partir do Brasil, a gente tem uma referência em computação no mundo e em várias áreas de tecnologia, o que a gente não tem acesso é a mesma infraestrutura e o mesmo investimento de base”, disse.
Para Jeferson Rodrigues, founder & CEO da Prediza, a chegada escandalosa da DeepSeek escancara esse problema. Isso porque IA chinesa mal chegou ao mercado e já conseguiu os holofotes do mundo. “Precisa vir alguém de fora para fazer o mesmo que nós e ganhar visibilidade. Tem várias startups parceiras aqui no mercado brasileiro, que possuem base de conhecimento e modelos. A gente não perde em nada. O que a gente tem de pessoa, de talento aqui, de conhecimento, tá num nível igual ou superior. O problema é a barreira imposta, que dificulta tudo”, desabafa.
Para Pedro G. de Lara, CPO e diretor de produtos da Fractal, até existem investimentos, mas compará-los com os montantes dos Estados Unidos acaba sendo injusto por conta da diferença entre as moedas. Sendo assim, para ele, a capacidade de estímulo duradouro e permanente é um grande desafio estrutural.
Bianca Martinelli, sócia da Alexia Ventures explicou que, se há barreiras para o avanço do Brasil no setor, elas estão ligadas a três fatores principais:
- Educação e capacitação de talentos: O país precisa formar mais profissionais altamente qualificados em IA para atender à crescente demanda do mercado.
- Infraestrutura tecnológica: Investimentos públicos e privados são essenciais para garantir acesso a poder computacional adequado e dados de qualidade para treinar modelos de IA.
- Maturidade do ecossistema: Muitas startups ainda estão na fase inicial e precisam mostrar capacidade de escala e diferenciação para atrair capital de risco de forma consistente.
Como estão os investimentos em IA brasileira?
Para Bianca, os investimentos em inteligência artificial estão crescendo globalmente. E o Brasil tem acompanhado o ritmo.
Para se ter uma ideia, no primeiro trimestre de 2024, startups brasileiras focadas em IA captaram mais de US$ 110 milhões em 38 rodadas de investimento, sendo US$ 35 milhões direcionados a sete startups cujo núcleo é a IA. Ou seja: há um interesse crescente em iniciativas nacionais por parte dos investidores brasileiros. Ainda segundo ela os investidores têm buscado principalmente startups que aplicam IA para resolver problemas específicos do mercado local.
Quando questionada se existe alguma “barreira” por parte dos investidores para investir em IA brasileira, a investidora avaliou que, nos últimos anos, os investimentos foram fortemente concentrados em grandes players internacionais que desenvolvem modelos fundacionais (LLMs, ou Large Language Models). Os números mostram isso claramente. Dos US$ 41,7 bilhões investidos globalmente em IA generativa nos últimos quatro anos, 54% foram destinados a apenas três empresas: OpenAI, Anthropic e xAI. Mas, já começam a haver mudanças.
“Um movimento importante vem acontecendo: a redução do custo e do tempo necessário para treinar novos modelos. A DeepSeek, treinou seu modelo com um custo muito abaixo do que se via até então. Esse cenário abre novas oportunidades para investimentos focados em aplicações práticas da IA. E o Brasil pode se beneficiar dessa tendência”, explicou Bianca.
Como estão os profissionais de IA brasileiros hoje?
Falando sobre os talentos brasileiros, há opiniões distintas sobre o atual cenário. Há quem acredite que o Brasil tenha profissionais qualificados o suficiente para o mercado (mas acabam indo para outros países para buscar novas oportunidades); e há quem veja que ainda é necessário mais qualificação para poder alavancar a IA no país.
“Eu tenho um problema sério de contratar desenvolvedor, os caras estão trabalhando para fora, ganhando em dólar, trabalhando na praia. Estamos perdendo as pessoas. Como vamos trazer os negócios sem as pessoas? Oportunidade no Brasil tem. Tudo que a gente faz, a gente exporta, populariza e entrega para o mundo”, opinou Jeferson Rodrigues. Na avaliação de Pedro G. de Lara, uma ferramenta de código aberto como o DeepSeek traz uma “nova esperança” para driblar essa competição global.
Já Marina Proença demonstra preocupação com a qualificação dos profissionais. Segundo ela, o mercado de tecnologia está em constante evolução, e os profissionais brasileiros têm dificuldade de acompanhar o ritmo — o que, por consequência, acaba “travando” a IA no país. “Isso não é uma conversa apocalíptica, é um fato. Vai mudar tudo! Tem muita gente agarrada no o que eu sei, o que eu conheço, a minha experiência… e daí? Vai mudar tudo”, reforça, exemplificando que as funções de product designer e front-end já mudaram.
Para Ricardo Lanzuolo, os bons profissionais de IA precisam entender profundamente sobre estatística, matemática e ciência da computação. Segundo ele, esses são os profissionais que estão entendendo os algoritmos que formam o que é IA: os mais raros e mais difíceis de se achar.
Segundo Celso Camilo, professor da Universidade Federal de Goiás, as faculdades federais, no geral, tem um quadro de professores qualificados dentro dos cursos de Ciência da Computação para direcionar pesquisas e estudos na área de IA. “Apesar disso, temos poucas pessoas no mundo e no Brasil que são especializados em IA hoje. O mercado é carente de profissionais qualificados e, por isso, disputa os talentos com pacotes de atração e retenção”, apontou.
Ainda de acordo com o professor, existem diferentes formas de qualificação profissional, desde cursos de bacharelado em Computação até cursos de curta duração em plataformas on-line. Mas o diferencial é a motivação e persistência dos profissionais para dedicarem nos estudos mais avançados e aplicados.
“Existem profissionais bem preparados e outros que precisam de mais estudos e experiências. Muitos são só usuários da tecnologia desenvolvidas por terceiros e, por isso, tem um repertório de ferramentas reduzido para atacar os problemas. Já outros, dominam os métodos de IA e se sobressaem no mercado por conseguir tratar problemas mais complexos”, comenta.
Celso Camilo finaliza dizendo que um bom profissional pode se atualizar sobre a IA através de cursos de especializações, mestrado, doutorado, cursos de curta duração, comunidades da área, fóruns e, principalmente, desenvolvendo projetos reais para entender na prática as necessidades do mercado e como usufruir dos métodos de IA.
Como a DeepSeek pode ajudar o mercado brasileiro de IA?
Para Rodrigo Paiva, a chegada da DeepSeek abre um precedente para a indústria brasileira, tanto para os pesquisadores quanto para as empresas, que terão a possibilidade de fazer um estudo e uma otimização dos modelos a partir de um modelo já existente. “A DeepSeek conseguiu fazer uma contribuição científica que é divulgar o modelo no formato open source. Agora, temos a possibilidade de embarcar isso dentro de uma estrutura de cloud proprietária das empresas os beneficiarmos da abertura do código. Então eu imagino que a DeepSeek vem sim para contribuir muito para o mercado brasileiro”, apontou.
O sócio-fundador da Pickcells não foi o único que ficou empolgado com a chegada da DeepSeek. A IA chinesa é vista por Pedro G. de Lara como algo muito diferente no mercado. Segundo ele, a ideia do código aberto é algo muito interessante e um grande atrativo para as empresas. “Eu não tenho dúvida que ele vai afetar o mercado. Ele vai afetar, de forma positiva! A gente vai ter uma ferramenta com um nível de acessibilidade maior do que nós temos das ferramentas hoje. Eu imagino que com o DeepSeek, a gente consegue ganhar mais integração no mercado de desenvolvimento”, explicou.
O CPO e diretor de produtos da Fractal reforça seu positivismo em cima da ferramenta ao imaginar como os negócios podem ser ajudados pelo DeepSeek. “Isso no momento que as equipes de desenvolvimento começarem a não só utilizar a DeepSeek no front, no web server, mas também no código, puxando isso para dentro de máquinas específicas, para usos específicos, vai ser interessante”.
Nova esperança: modelos baseados em DeepSeek
Como dito anteriormente, a DeepSeek pode ser uma nova esperança para o mercado brasileiro de inteligência artificial: com o código aberto, há inúmeras novas possibilidades para o empreendedorismo brasileiro, especialmente para as startups, que não têm tantos recursos financeiros de largada.
Ainda para Pedro G. de Lara, não há dúvidas que aparecerão derivações para aplicações bem setorizadas, com base em DeepSeek. “O fato de ser open source é algo que ajuda muito esse processo de investigação de novos modelos, tanto de aplicação quanto modelos de negócio. O código estar aberto é muito forte para a inovação”, aponta.
Diego Bertolin, venture partner da KPTL, diz que ainda é tudo muito novo e uma grande hipótese, então vale o questionamento se realmente o custo da DeepSeek é mais barato do que as demais gigantes do mercado, para ajudar no desenvolvimento brasileiro. “Supondo que a DeepSeek de fato tenha um custo menor, fica mais barato entregar resultados aqui no país, já que, no Brasil, infelizmente, a gente paga quase tudo em dólar”. O sócio também tem certeza de que surgirão novos modelos baseados em DeepSeek, com mais pessoas trabalhando em cima disso e opções para usar e inovar em cima.
Apesar disso, Diego Bertolin aponta que, provavelmente, surgirão desafios para aprender como agregar valor em cima disso. “A gente está num momento maravilhoso da emergência dessa tecnologia, mas a temos que provar os modelos de monetização, tudo isso diante do cliente. Como é que a gente de fato monetiza isso?”, questiona.
Mesmo assim, o venture partner da KPTL demonstra positividade em cima do surgimento desse novo mercado, citando que o Brasil possui capacidade de criar grandes tecnologias, como foi com a NuBank e o iFood. “A a gente ainda tem muito a se provar. Ainda não temos grandes cases de IA no Brasil, mas temos grande potencial. Somos muito bons em desenvolver coisas. Mas você criar e desenvolver uma startup significa que você está competindo por talento”.