Pode confessar: quantas roupas você tem aí paradas no armário? Provavelmente a sua resposta é “muitas” – e a minha também. Mas não somos a exceção. As pessoas não usam 70% das peças de seus guarda-roupas, segundo estimativas da startup de moda circular Repassa.
“Ninguém tem tempo e paciência para fazer todo o processo que envolve vender uma peça usada: tirar fotos, cadastrar, negociar e enviar pelo correio. Por isso, tantas roupas sem uso ficam paradas no armário”, diz Tadeu Almeida, fundador e diretor-executivo da companhia, que opera um brechó online com mais de 550 mil peças de marcas como Renner, Zara, H&M e Adidas.
O comércio de itens usados no Brasil cresceu 48,58% no primeiro semestre de 2021, em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo um levantamento do Sebrae feito com base em dados da Receita Federal. Ainda que incipiente por aqui, a compra em brechós online têm se tornado tendência de consumo entre as gerações Y e Z. Para quem vende, as plataformas são uma fonte de renda extra e, para quem compra, uma oportunidade de renovar o guarda-roupa com peças muito mais baratas do que nas lojas tradicionais.
Sustentabilidade
Quando Tadeu decidiu empreender, tinha uma certeza: tinha que ser um negócio escalável que, além de gerar retorno financeiro, causasse um impacto socioambiental positivo. No mercado da moda, ele encontrou, de um lado, o fast fashion, baseado no consumo desenfreado e em grandes quantidades. O setor é responsável por algo entre 8% e 10% dos gases de efeito estufa na atmosfera, e torna a indústria da moda a 2a mais poluente do mundo. Além disso, o setor de usados, que aumenta o ciclo de vida das peças, minimiza o consumo dos recursos naturais e reduz a emissão de poluentes na atmosfera.
Criado em 2015, o Repassa opera com as chamadas Sacola do Bem. Por R$ 24,99, o cliente pede a sacola pelo site, recebe em casa e enche com todas as peças que quer desapegar. Depois, envia gratuitamente de volta para a startup, com sede em São Paulo, e ela cuida de todas as etapas da venda – do cadastro no site ao envio para quem comprou. Os vendedores ficam com 60% do valor da venda (o restante fica para a startup) e podem optar por receber o valor total ou doar parte do dinheiro para uma instituição parceira, entre elas o Graac (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer), Fundação Abrinq e a ONG Patas Dadas.
Só nos últimos 12 meses, a empresa gerou uma economia de 991,9 milhões de litros de água e evitou que 1.285,8 toneladas de gás carbônico fossem emitidas e que 183,7 toneladas de roupas fossem parar em aterros sanitários. Além disso, R$1.757 mil foram doados para as ONGs, R$ 33,8 milhões foram economizados para quem comprou e R$14278,7 mil repassados para quem vendeu.
“Nosso guarda-roupa tem muito dinheiro parado que pode ser usado de forma muito mais útil. A forma como consumimos é nossa maior ferramenta de mudança, porque é o consumo que direciona o que o mercado vai fazer e como as empresas vão produzir”, diz o empreendedor.
Quem concorda com essa afirmação é Luciana Valente, fundadora do brechó Susclo. “Nosso foco é criar uma comunidade de pessoas que procuram soluções mais sustentáveis para o seu dia a dia”, explica. Além das peças de segunda mão, a startup oferece embalagens feitas com resíduo têxtil e, se o cliente devolver a sacola, ganha um desconto na próxima compra, o que incentiva a logística reversa.
O negócio nasceu em 2018, de uma necessidade da própria empreendedora. Queria vender algumas roupas, mas precisava de praticidade, de uma solução que assumisse todo o trabalho de coleta e cadastro na plataforma. Ela conta que não havia muitos desses brechós em Fortaleza, sua cidade natal, e o preço do frete não compensava o valor acessível de roupas à venda em São Paulo.
“Comprar em brechós só tem vantagem. É muito mais barato e com impacto ambiental positivo”, diz Luciana. O brechó permitiu alongar o tempo de vida de mais de 5.600 mil peças em 2021, além de economizar mais de 15 milhões de litros de água e 22 mil quilos de carbono liberado na atmosfera.
Roupas que não são aceitas na plataforma, muitas vezes por pequenos detalhes como a falta de um botão, são repassadas para mulheres de comunidades periféricas de Fortaleza, que recebem capacitação de como organizar o próprio bazar.
Livre de rótulos
“Muita gente ainda acredita que brechós vendem roupas de defunto, peças com energia ruim e muitas marcas de uso. A gente precisa mostrar o nosso produto e quebrar esses paradigmas”, afirma Luanna Toniolo, cofundadora e diretora-executiva da Troc, startup de brechó fundada em Curitiba, em 2016. Para a Troc, a estratégia é investir no omnichannel.
Em dezembro de 2021, a companhia inaugurou uma loja no MorumbiShopping, na capital paulista. “Quando a pessoa vê uma loja moderna e com peças em bom estado, não acredita que é de segunda mão”, diz a empreendedora. No começo, a equipe avisava que era um brechó assim que o cliente entrava na loja. Hoje, a abordagem é diferente. “Deixamos acontecer. A pessoa se interessa pela vitrine, entra e quer comprar tudo. Avisamos que são peças usadas no caixa. A essa altura, ela já gostou de muitas roupas, viu que os produtos são bons e decide comprar mesmo assim.”
Embora a unidade seja recente, a empresa já tem planos de abrir novas lojas físicas. Segundo Luanna, a unidade foi importante para melhorar a recorrência de compra. “Houve um aumento nos acessos do site. O cliente faz a primeira compra no offline e retorna pelo e-commerce, onde a startup quer facilitar ao máximo a compra e venda das peças. A Troc coleta as roupas na casa do cliente e faz todo o cadastro na plataforma por ele. Em apenas 10 meses, a companhia faturou R$ 1 milhão. Hoje, são mais de 45 mil produtos em estoque.
Criadoras de conteúdo também ajudaram a marca a conquistar clientes. A primeira parceria foi com a influenciadora fitness Gábi (que parou de usar o sobrenome Pugliesi no ano passado). Uma amiga em comum apresentou o brechó para Gabriela, que separou algumas roupas para vender via e-commerce. “Vendemos 3 vezes mais do que costumávamos na semana. Ela lançou sua própria lojinha conosco, com 120 peças, e esgotou tudo em 1 hora.” Hoje são mais de 250 embaixadoras, incluindo a modelo Isabeli Fontana, a socialite Carol Celico e a consultora de moda Lilian Pacce.
Experiência única
As irmãs Julia e Gabriella Wolff, cofundadoras do brechó Daz Roupaz, gerenciam cerca de 20 mil peças no estoque por mês, divididas entre o e-commerce e as 2 lojas em São Paulo, localizadas em Pinheiros e no Itaim Bibi. “Nosso giro é muito rápido. As roupas de hoje são diferentes das de amanhã”, afirmam.
Ao invés de trabalhar com consignação, a startup compra as peças de quem quer desapegar. Para agilizar esse processo, a companhia desenvolveu um software que calcula quanto vale cada item e faz a curadoria do que serve ou não para o estoque com base nos critérios pré estabelecidos pela empresa. “O importante é ser atual e em bom estado, independente da marca”, explica Gabriella.
Graças à tecnologia, elas compram cerca de 400 novas peças por dia nas lojas físicas e 200 no e-commerce – número que deve aumentar em breve com as atualizações do site. “Pagamos à vista. As peças que a gente recebe hoje já entram no sistema no mesmo dia, porque é muito fácil de catalogar.” Depois, a startup revende as roupas para outros consumidores.
Para fidelizar o público, o brechó aposta em experiências únicas, como o Clube Daz Circular, que dá benefícios exclusivos aos clientes por apenas R$ 3,99 mensais. Os assinantes têm direito a alugar, por 30 dias, peças do estoque pela metade do preço. “Outros brechós não podem fazer isso, porque as peças não são deles”, explica Julia. No final do mês, o cliente tem a opção de pagar o restante do valor para comprar as peças ou devolvê-las para o brechó.
Ele também pode reservar 1 peça por mês do inventário e, ainda, participar de um sorteio semanal, em que o vencedor ganha 1 hora no estoque da Daz Roupaz, com 1 acompanhante. “Como as peças vendem rápido, essas são grandes vantagens e, ainda, incentivam a moda circular.”, dizem as empreendedoras. Lançado em dezembro de 2021, o Clube já tem uma fila de espera de 2.800 pessoas e deve ganhar novas turmas em 2022. A empresa também quer aprimorar a tecnologia e abrir mais 10 lojas pelo Brasil nos próximos 2 anos, com um olhar especial para São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, onde mais vende pelo e-commerce.
Luxo também tem lugar
Fundado em 2013, o Cansei Vendi é um brechó de artigos de luxo de segunda mão criado pela ex-trader de energia elétrica Leilane Sabatini. Com a atriz Luana Piovani no time de sócios, a startup soma mais de 10 mil peças no estoque de 125 grifes, incluindo Gucci, Chanel, Dior, Prada, Dolce & Gabbana e Louis Vuitton.
Para operar de forma segura com o formato de compra e venda, a plataforma conta com um sistema de autenticidade dupla. Todos os itens são avaliados por uma equipe interna especializada e, em seguida, pela empresa norte-americana Real Authentication, reconhecida mundialmente por autenticar artigos de luxo. “É um diferencial para que quem compra, porque a pessoa tem segurança de que o produto é verdadeiro e de boa qualidade”, diz Leilane.
Segundo a fundadora, as peças são de 20% a 80% mais baratas do que compradas direto nas lojas. A companhia fica com 35% de comissão para peças acima de R$ 1.000 – a maioria do acervo – e 40% para abaixo disso. “São peças muito caras, com um ticket médio de R$ 3.000. As pessoas não querem comprar com robôs. O atendimento humano faz a diferença nessas horas”, afirma. Para isso, a companhia investe no Instagram, onde os clientes encontram a própria Leilane nos stories compartilhando as novidades da empresa.
Assim como outros brechós, a fashiontech também está de olho no omnichannel, e acaba de inaugurar uma loja nos Jardins, bairro nobre de São Paulo. A expectativa é abrir outra unidade no final do ano, impulsionada por uma rodada de investimento a ser concluída ainda no primeiro semestre. O aporte dá sequência ao aporte de R$ 3 milhões investidos por um fundo não revelado em 2019. A projeção é crescer 250% em relação a 2021.
No radar das gigantes
Em julho de 2021, o Repassa foi adquirido pela Lojas Renner, por um valor não divulgado. “A união com um grupo do tamanho da Renner, que tem capital disponível e valores de sustentabilidade, solidariedade e ética muito alinhados com os nossos, é uma oportunidade de crescimento”, diz Tadeu. Segundo o executivo, a startup cresce de forma consistente desde o seu lançamento, de 2 a 3 vezes por ano – e a expectativa é que isso se mantenha.
Sem dar muitos detalhes, ele adianta que alguns projetos já estão sendo planejados com a varejista, e devem ser colocados em prática no segundo semestre desse ano. A Renner já distribui gratuitamente as Sacolas do Bem do Repassa em 6 de suas unidades, e isso deve aumentar no próximo ano. Além disso, a startup vai aproveitar a rede de transporte e estrutura de entrega da varejista em suas operações. Outras empresas, como Levi’s, Havaianas, Malwee, Dudalina e Shoulder, também distribuem gratuitamente as Sacolas do Bem em seus pontos de venda físicos.
Quem também está de olho nos brechós é a Arezzo&Co, controladora das marcas Arezzo, Schutz Anacapri e Reserva. No final de 2020, essa última comprou 75% dos negócios da Troc, por um valor não revelado. “A pandemia fez muitas marcas repensarem seus papéis. O cliente está exigindo um posicionamento mais sustentável”, diz Luanna Toniolo, da Troc. A startup viu uma oportunidade de, ao invés de competir com as marcas, ajudá-las a entregar mais valor para os consumidores.
Segundo a empreendedora, a união com a Arezzo&Co aconteceu pela sinergia de valores, foco em performance e pela autonomia que a Troc ainda tem para tocar os negócios. Desde a compra, o time da Troc cresceu de 25 para 100 colaboradores e a startup aumentou em 720% o número de itens processados no site, com capacidade para receber até 30 mil peças por mês.
“2021 foi uma amostra de tudo o que vai acontecer com a Troc nos próximos anos. O grupo Arezzo acelera o negócio, porque nos dá uma chancela de que o trabalho é bom”, afirma. “Quem dita a tendência no Brasil ainda são os grandes grupos de moda. Quando um desses players sugere que seus clientes desapeguem das roupas que não usam mais, o avanço é muito mais rápido.”