Por anos, a diversidade foi reconhecida como um pilar estratégico para as organizações, impulsionando a inovação, melhorando a performance financeira e fortalecendo a reputação e a cultura organizacional. No entanto, uma recente onda de descontinuidade dessas iniciativas nos Estados Unidos acendeu um alerta global sobre os riscos de retrocesso, na medida em que grandes empresas vêm reduzindo seus investimentos na área, dissolvendo times dedicados de Diversidade, Equidade e Inclusão (DE&I) e revertendo políticas criadas nos últimos anos.
Gigantes como Walmart, Boeing, McDonald’s e John Deere recuaram em suas metas e reavaliaram a abordagem interna sobre diversidade, equidade e inclusão. No setor de tecnologia, Microsoft, Amazon, Google e Meta também enxugaram ou encerraram seus programas de DE&I, revertendo políticas criadas nos últimos anos ao alegar mudanças nas prioridades de negócios e no cenário político. Elon Musk, dono da rede social X (antigo Twitter), classificou as iniciativas de inclusão como “uma distração e uma forma de socialismo corporativo”.
O recuo das políticas de inclusão nos Estados Unidos tem gerado preocupações sobre seus possíveis impactos no Brasil, considerando a forte influência norte-americana no mercado e no ambiente corporativo. Contudo, especialistas apontam que o contexto brasileiro apresenta particularidades estruturais importantes. A legislação mais robusta, a atuação ativa de movimentos sociais e o crescente compromisso dos stakeholders com os direitos humanos indicam que, apesar dos reflexos globais, a agenda de DE&I no Brasil deve seguir um caminho próprio.
Vamos ao contexto
Em 2020, as pautas de diversidade e inclusão (D&I) ganharam destaque no ambiente corporativo, impulsionadas pelos movimentos sociais, pela pressão pública crescente e por estudos que mostraram correlação entre equipes diversas e melhor desempenho financeiro. Após o assassinato de George Floyd e os protestos do movimento Black Lives Matter, empresas em todo o mundo se comprometeram a construir times mais diversos e a aumentar a representatividade no ambiente de trabalho.
“Mortes midiáticas como a de George Floyd, nos Estados Unidos, e de João Alberto Freitas, no Brasil, geraram um apelo significativo para a promoção da equidade racial. Tornou-se praticamente inaceitável que as empresas permanecessem neutras diante das pautas raciais. Ainda que muitas tenham se limitado a uma hashtag ou uma imagem, houve uma exigência generalizada para que todas se posicionassem”, analisa a psicóloga Vitor Martins, líder de diversidade e inclusão com passagens por Nubank e Swap.
Como resultado, as empresas começaram a anunciar ações de combate ao racismo e a favor da inclusão, contratando executivos especialistas em D&I e ajustando suas políticas internas. A criação de grupos de afinidade, programas de formação e vagas afirmativas passaram a integrar os compromissos assumidos publicamente, demonstrando um esforço conjunto para transformar o posicionamento em ações concretas.
No entanto, nos últimos anos, as políticas afirmativas nos Estados Unidos têm sido alvo de crescente pressão política e jurídica. Em 2023, a Suprema Corte do país proibiu o uso de ações afirmativas nos processos de admissão das universidades, alegando que as cotas raciais violavam a Cláusula de Igualdade de Proteção da 14ª Emenda da Constituição. A decisão histórica revogou décadas de precedentes que buscavam ampliar o acesso e a inclusão de alunos negros, hispânicos e outros grupos sub-representados no ensino superior.
Com o avanço da onda conservadora, que culminou na eleição do republicano Donald Trump, o apoio a políticas progressistas tem diminuído no meio corporativo, enfraquecendo a agenda de diversidade e inclusão no país. Uma análise recente do The Wall Street Journal (WSJ) revelou que essas mudanças refletem a incerteza sobre os parâmetros legais dos programas de DE&I, além da cautela com a reação política após a Suprema Corte dos EUA proibir ações afirmativas de admissão nas universidades norte-americanas.
“Os interesses das organizações costumam estar alinhados aos do governo. Ou seja, a maneira como o governo se posiciona reflete, de certa forma, na postura das empresas”, afirma Vitor. “Assim como os EUA foram pioneiros na adoção de políticas de diversidade e inclusão, também têm sido os primeiros a retirar essas iniciativas no âmbito político e corporativo”, pontua.
Efeito cascata?
A retração das políticas de inclusão no exterior tem gerado preocupações sobre o risco de um efeito cascata no mercado brasileiro. No entanto, especialistas ressaltam que o Brasil possui diferenças estruturais significativas que podem moldar a forma como essas mudanças se refletem no país.
“No setor público, enquanto os Estados Unidos dão passos para trás, o Brasil avança, ainda que com resistência”, destaca Vitor Martins. Um exemplo é a política de cotas no ensino superior, que no Brasil é garantida por lei para promover a inclusão de grupos historicamente marginalizados, como pessoas negras, indígenas e de baixa renda. Outro caso é a licença-maternidade remunerada: enquanto o Brasil assegura um mínimo de 120 dias com salário integral, os EUA não possuem um programa nacional de licença remunerada.
João Yosef Torres, sócio-fundador da consultoria Mais Diversidade e presidente executivo do Instituto +Diversidade, acrescenta que o Brasil possui um respaldo legal para trabalhar com metas e ações afirmativas, ao contrário dos EUA. “São países com cenários completamente diferentes”, avalia.
Em 2022, o Brasil incorporou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância em seu ordenamento jurídico, reafirmando o compromisso em prevenir, eliminar, proibir e punir atos de racismo, discriminação e intolerância. A convenção estabelece que os países signatários adotem políticas para promover a igualdade de tratamento e oportunidades para todos, por meio de ações educacionais, medidas trabalhistas, sociais e outras iniciativas.
Além disso, a Constituição Brasileira classifica as normas de direitos humanos como cláusulas pétreas, ou seja, não podem ser alteradas nem mesmo por emenda constitucional. “Mesmo se Senado e Câmara quiserem, não podem mudar o valor das ações afirmativas, pois elas são protegidas por essa cláusula. Para alterar isso, seria necessário uma nova constituição ou até mesmo um golpe de Estado. Por isso, há uma grande proteção legal no Brasil para implementar ações afirmativas nas organizações”, explica João.
“A decisão recente de algumas grandes empresas norte-americanas gerou preocupação no mercado. Porém, há muitas articulações empresariais acontecendo no Brasil – e até nos EUA, como no caso da Apple e da Costco – para reforçar o compromisso com a diversidade, reafirmando seus valores e deixando claro que não vão abrir mão de seus programas de diversidade e inclusão”, afirma.
Recentemente, segmentos do setor empresarial no Brasil se uniram para publicar um manifesto conjunto, reafirmando publicamente o compromisso com a agenda de DE&I no país. Intitulado “Um compromisso inabalável com o futuro”, o documento foi assinado por 500 grandes empresas com atuação no Brasil, incluindo Natura, Bayer, Bradesco, Ambev, Itaú, Grupo Pão de Açúcar, Banco do Brasil, entre outras.
“Empresas que abraçam a diversidade, equidade e inclusão são mais resilientes, inovadoras e alinhadas às expectativas de seus diversos stakeholders (partes interessadas, em português). Ao criarem estruturas justas e acolhedoras, essas organizações fortalecem o engajamento de colaboradores, clientes e parceiros, contribuindo para um futuro mais próspero e sustentável para todos”, diz o manifesto.
As companhias reforçam que o Brasil tem o potencial de ser referência global em diversidade e inclusão. “Nossa demografia diversa, o arcabouço legal e político robusto, e os compromissos já assumidos por empresas e instituições criam um cenário ímpar para a promoção de um ambiente de negócios que preze pela inclusão, criatividade e inovação.”
João Yosef Torres observa que as empresas nacionais (ou multinacionais com operação no Brasil) avançaram significativamente em seus programas de diversidade e inclusão nos últimos 10 anos. “As organizações brasileiras têm levado a pauta de DE&I muito a sério. Com o recuo das empresas norte-americanas, temos a chance de liderar esse movimento globalmente”, destaca.
Impacto real
O respaldo jurídico e legal no Brasil não significa que não existam obstáculos. Segundo João Yosef Torres, um dos maiores desafios das empresas ao implementar programas de diversidade e inclusão é garantir que eles agreguem valor para todas as pessoas envolvidas – colaboradores, clientes, investidores e o próprio negócio. Isso exige uma comunicação mais eficiente, além de ações de sensibilização e educação corporativa que alcancem todos os níveis da organização.
“Um dos equívocos mais comuns em relação à pauta de D&I é a crença de que, para um grupo ganhar, outro precisa perder. A criação de um programa de ação afirmativa para mulheres, por exemplo, não significa que os homens estão sendo prejudicados. O verdadeiro desafio está em desconstruir essa mentalidade e mostrar que iniciativas inclusivas beneficiam toda a organização”, explica. Para isso, é fundamental que as empresas revisem a forma como comunicam suas práticas, garantindo que todas as pessoas entendam o valor dessas ações, não apenas aquelas diretamente impactadas.
Vitor Martins observa que as políticas de diversidade e inclusão, embora positivas, ainda não conseguem romper com as estruturas que produzem as desigualdades. “Os sistemas de exclusão produzem hierarquias: alguém sempre está no topo e alguém na base. Um exemplo claro disso é a diferença salarial: homens ganham mais do que mulheres, e pessoas brancas ganham mais do que pessoas negras. As políticas de diversidade e inclusão, embora positivas, ainda não conseguem quebrar essas hierarquias — de gênero, raça, corpo e sexualidade. Enquanto elas não forem rompidas, as políticas de diversidade podem até trazer avanços, mas não alteram o que realmente importa: a estrutura”, pontua.
“Muitas pessoas são contratadas, mas não têm oportunidades de desenvolvimento ou ficam restritas a cargos de entrada, sem acesso a posições de liderança. Outras deixam as empresas devido ao impacto na saúde mental”, atenta Vitor. Ela analisa que mesmo nas organizações que mantêm programas e metas de diversidade, as iniciativas costumam ser superficiais, com a maior parte dos investimentos concentrada em treinamento e letramento, sem avanços para níveis mais estruturais. “Ainda é preciso muito mais para que, de fato, possamos ver de forma mais tangível os impactos das ações de diversidade e inclusão.”
Nana Lima, cofundadora da consultoria para equidade de gênero Think Eva e da ONG Think Olga, acrescenta que é fundamental continuar avançando nas medidas já previstas na legislação e garantir o cumprimento das políticas estabelecidas pela lei. Ela ressalta, ainda, a importância de olhar para os grupos mais vulneráveis, que, por não terem direitos plenamente garantidos, estão mais expostos a ameaças. “Ainda temos muito a percorrer. Nem todas as empresas cumprem a legislação, e grupos minoritários que ainda não têm reconhecimento legal dependem exclusivamente de ações afirmativas para acessar oportunidades no mercado de trabalho”, explica.
Mais do que ações pontuais, como palestras ou workshops, que costumam gerar impactos superficiais, Nana defende a criação de iniciativas que realmente promovam a transformação. “Precisamos buscar o impacto real. Criar um programa ou pintar a bandeira do arco-íris todo mundo pode fazer, mas qual é o efeito real disso? Quais políticas internas impactaram positivamente a vida dos colaboradores? O que avançou nos últimos anos? Quais metas foram alcançadas ou, ao menos, definidas? Temos que criar mudanças estruturais.”
Nana ressalta que é essencial avançar além do trabalho de sensibilização e começar a transformar as estruturas das empresas. A conscientização continua sendo importante, mas o próximo passo, segundo Nana, é implementar mudanças concretas que garantam a inclusão de forma sistêmica e duradoura. Para isso, é fundamental envolver áreas como compliance, jurídico, gestão de pessoas, liderança e conselho. “Ainda há uma grande dificuldade em dar esse salto, mas é necessário garantir que as empresas não retrocedam e que direitos conquistados sejam preservados”, avalia.
As lideranças têm um papel fundamental nesse movimento, pois são responsáveis por definir direções, influenciar a cultura organizacional e garantir que as iniciativas não fiquem apenas no discurso. “Mais do que reafirmar a importância da diversidade — algo já amplamente comprovado por estudos que mostram os impactos positivos na estratégia, no serviço e na comunicação da marca —, é essencial refletir sobre o custo de não agir. Em um país tão desigual como o Brasil, deixar de trabalhar essa pauta não afeta apenas a empresa, mas toda a sociedade”, avalia Nana.
As empresas precisam reforçar continuamente seu compromisso com a diversidade, tanto interna quanto externamente. “Não se trata de colocar uma meta inatingível ou esperar que a questão se resolva sozinha, mas sim de assumir a responsabilidade social de forma estratégica e efetiva”, diz Nana. Criar um ambiente de segurança psicológica, reafirmar valores e garantir o desenvolvimento dos colaboradores são passos essenciais para construir uma cultura verdadeiramente inclusiva e sustentável.