
O empreendedorismo no Brasil cresce a passos largos, mas o ecossistema de startups ainda enfrenta desafios estruturais: poucos líderes têm voz ativa em decisões estratégicas, o acesso a capital continua desigual, e as oportunidades de protagonismo nem sempre se distribuem de forma equitativa. A presença feminina é um termômetro dessa disparidade: mulheres avançam timidamente em números e seguem lutando para ocupar posições de liderança e influência decisória.
Há uma década, empresas de base tecnológica fundadas apenas por mulheres representavam 4,4% do mercado total. Hoje, esse índice é de 4,7% – um crescimento de apenas 0,3% em dez anos, segundo o Female Founders Report 2021, elaborado pelo Distrito com Endeavor e B2Mamy. A disparidade se reflete também no acesso a capital: dessas empresas, apenas 0,04% dos mais de US$ 3,5 bilhões investidos no Brasil em 2020 foram destinados a negócios liderados exclusivamente por mulheres.
O cenário global mostra avanços mais expressivos, mas ainda limitados. Nos Estados Unidos, mulheres representam cerca de 18,6% das tomadoras de decisão em fundos de venture capital, segundo relatório recente da All Raise. Apesar de a participação ter dobrado desde 2017, em fundos maiores (com US$ 3 bilhões ou mais) apenas 12 mulheres ocupam cargos de managing partner, contra 87 homens, evidenciando que a desigualdade persiste nos espaços de maior influência.
Maria Rita Spina Bueno tem acompanhado essa transformação de perto. Ex-diretora-executiva da Anjos do Brasil e fundadora do MIA – Mulheres Investidoras Anjo, ela combina experiência prática, formação acadêmica e visão estratégica para analisar o mercado e atuar como catalisadora de mudanças.
Neste Dia do Empreendedorismo Feminino, ela participa de um bate-papo que cruza sua trajetória pessoal com o panorama brasileiro. Maria Rita fala sobre investimento, liderança, inovação e a importância de mulheres assumirem protagonismo e influenciarem a tomada de decisão no ecossistema de startups. Veja, a seguir, os melhores momentos dessa conversa:
Startups: O Brasil registrou avanços no empreendedorismo feminino nos últimos anos. No entanto, no mercado de startups, a evolução ainda é tímida, seja em número de fundadoras ou no acesso a capital. Como você enxerga esse cenário hoje?
Maria Rita: A contextualização é importante. Se a gente olha historicamente, houve avanço – e eu vejo esse crescimento de forma positiva. Quando comecei a me envolver com o ecossistema, em 2011, praticamente não havia mulheres empreendendo e muito menos investindo. Com o tempo, uma série de iniciativas conseguiu ampliar essa presença.
Então, sim, melhorou. Mas é absolutamente insuficiente. Ainda não estamos representadas da maneira que poderíamos. E não digo isso pensando apenas em números – não é porque somos 51% da população que teríamos que ser 51% das empreendedoras, porque a conta não é tão simples. Mas quando olhamos o potencial, a qualidade das ideias e a quantidade de mulheres empreendendo, dá para ver claramente que muitas delas não têm as mesmas oportunidades que os homens. Por isso, eu sempre digo: sou uma otimista inconformada.
Startups: Na sua visão, quais foram os avanços mais concretos, e onde ainda falta evoluir no protagonismo feminino no ecossistema?
Maria Rita: O primeiro avanço real que enxergo está no universo das investidoras. Quando olhamos para investidoras-anjo, há um crescimento expressivo da presença feminina e um protagonismo que antes não existia. Essas mulheres estão investindo, liderando rodadas, ocupando espaços de decisão – e isso também começa a aparecer dentro da gestão de fundos.
Do lado das empreendedoras, vejo que o movimento existe, mas ainda falta alcançar esse mesmo protagonismo. Na época em que eu era diretora-executiva da Anjos do Brasil, mais de 50% das startups investidas tinham pelo menos uma mulher sócia ou fundadora. Isso em um contexto de cerca de 20 startups investidas por ano. E os números continuam bem próximos até hoje.
No entanto, quando você aprofunda e pergunta: quantas dessas mulheres estavam fazendo o pitch? Quantas eram CEO? Quantas tinham voz ativa de fato dentro da empresa? Esse percentual cai muito. Então, ainda falta protagonismo real. O que eu mais desejo – e acredito que precisamos evoluir como ecossistema – é ver mulheres em posições de liderança, tomando decisões e sendo protagonistas.
Startups: Quando olhamos para o universo das investidoras, que barreiras ainda dificultam a entrada das mulheres – ou a transição de empreendedoras para investidoras?
Maria Rita: Acho que o primeiro ponto é o desconhecimento. Historicamente, as mulheres têm menos familiaridade com o tema investimento do que os homens. Dinheiro ainda é um assunto mais tabu para elas. Muitas têm dificuldade de dizer “eu ganho bem, eu tenho recursos para investir, eu invisto”. Isso pesa.
Além disso, quando a mulher começa a se interessar por investimento, ela quer entender tudo antes de dar o primeiro passo. E, nesse universo, ninguém sabe tudo. Então, esses dois fatores – o tabu e a exigência de dominar completamente o assunto – acabam travando.
Há um dado que costuma surpreender: globalmente, o grupo de pessoas com maior crescimento de patrimônio financeiro é o de mulheres, e não o de homens. Ainda assim, elas continuam investindo menos. O motivo? O tabu e a barreira do conhecimento. Falta entender melhor como esse universo funciona e, depois, se permitir dizer: “o que eu sei é suficiente para começar”. Essas seguem sendo as principais travas para que mais mulheres se tornem investidoras ativas no ecossistema.
Startups: O que te motivou a criar o MIA – Mulheres Investidoras Anjo?
Maria Rita: Tem muito a ver com a minha própria trajetória. Cheguei por volta dos 40 anos num ponto em que resolvi parar de trabalhar e tirar um sabático, que acabou virando vários anos sabáticos. Aos poucos, fui entendendo que dinheiro não era o mais importante na minha vida, e que eu não queria mais fazer coisas com as quais eu não estivesse verdadeiramente satisfeita. Claro, sempre existem os dias ruins, as tarefas que a gente não gosta, mas o conjunto precisava fazer sentido para mim.
Quando comecei a ajudar a Anjos do Brasil a crescer, algo começou a me incomodar muito. E é curioso como a gente normaliza certas coisas: demorei para perceber que o incômodo era o fato de só terem homens. Eu adoro trabalhar com homens, me dou super bem, acho que eles são ótimos, mas eu sentia que algo faltava. E o que faltava era diversidade. Faltavam mulheres naquele ecossistema.
No início, achei que era uma questão do Brasil, porque o ecossistema ainda era muito embrionário. Mas depois percebi que, no mundo todo, os números eram baixos. E aí caiu a ficha: não era um problema brasileiro, era estrutural. Vi várias iniciativas surgindo lá fora para mudar isso, então pensei: se elas estão fazendo lá, a gente pode fazer aqui também. Foi aí que nasceu o MIA, como um movimento para trazer mais mulheres para investir e apoiar mulheres empreendedoras.
Startups: No mundo do investimento, algumas decisões são muito analíticas, outras têm um componente mais intuitivo. Como você equilibra esses dois lados – especialmente vindo de uma formação em filosofia e atuação em inovação?
Maria Rita: A filosofia traz conceitos. E quando você tem conceito, você faz uma leitura muito boa do mundo – e isso é fundamental para trabalhar com inovação, porque inovar é justamente lidar com aquilo que ainda não existe, com o que vai se transformar no futuro. Você precisa entender bem a situação atual, imaginar para onde pode ir e saber caminhar num espaço de incerteza. Quando você tem esse ferramental filosófico, consegue fazer esse percurso de forma muito mais interessante.
Muita gente chama isso de intuição, mas não acho que seja só isso. Também não é só razão. É um repertório de leitura de mundo – entender como as coisas acontecem e qual o conceito base que está ali, seja ao analisar um mercado em transformação ou decidir sobre um investimento.
Dito isso, apesar de ter formação e mestrado em filosofia, eu também sou bastante analítica, tenho uma base financeira sólida. Minha primeira faculdade foi na Poli, comecei engenharia, larguei no segundo ano, mas esse raciocínio ficou. Então consigo navegar pelos dois lados.
Acho que isso é uma mensagem importante quando falamos de trazer mais mulheres para o ecossistema: não existe uma trajetória única para agregar valor. Mulheres com formações diferentes e histórias diversas podem contribuir demais. Muitas vezes temos uma visão mais generalista, mais abrangente, e isso ajuda muito quando estamos lidando com inovação.
Startups: Como isso se reflete na sua atuação como investidora-anjo?
Maria Rita: Invisto pouco, gosto de deixar isso claro para ninguém achar que, por causa da minha atuação na Anjos do Brasil, eu sou uma grande investidora – porque não sou. Nos últimos 20 anos, escolhi trabalhar em organizações sem fins lucrativos, o que naturalmente traz algumas restrições financeiras.
Mas, mesmo investindo pouco, sou muito fiel a duas teses que têm a ver com o mundo que quero ajudar a construir. Quando a gente tem algum capital, aliar capital e propósito é muito poderoso. Então, eu pessoalmente só invisto em empresas lideradas por mulheres e em negócios de impacto.
A partir daí, olho principalmente para a capacidade dessas pessoas de construir algo incrível – empresas que transformem o mundo, com resiliência, brilho no olho, vontade de fazer acontecer. Quem investe em early stage sabe que só existe uma única certeza: o negócio vai mudar ao longo da jornada. Então, o que realmente importa são pessoas que têm capacidade de trilhar esse caminho, que não é simples.
Startups: No ano passado, vimos big techs lá fora reduzirem investimentos e até desmontarem áreas de diversidade. Isso levantou a preocupação de que esse movimento pudesse chegar ao Brasil. Você vê esse risco? Ou acredita que o cenário brasileiro tem particularidades que tornam esse efeito menos provável?
Maria Rita: Não acho que o Brasil esteja na mesma situação dos Estados Unidos – ou de outros países – em termos de risco. Mas, ao mesmo tempo, é importante olhar para isso como um risco real. Se a gente subestima a possibilidade de retrocessos, pode deixar de agir com a força necessária para avançar.
Existe, sim, algum risco, mas não acho que seja gigantesco. O Brasil sempre foi um país mais diverso, e vejo que aqui menos empresas entraram na agenda de diversidade e ESG apenas porque era “onda” ou porque era politicamente correto. No Brasil, percebemos muitas lideranças que estão genuinamente comprometidas com essa pauta e que entendem que não se trata só de fazer o que é certo, mas também de algo que traz resultado financeiro, retorno muito significativo para os negócios.
Então, embora não possamos ignorar o risco, também não acho que estamos caminhando para uma volta atrás. Talvez o ritmo desacelere um pouco, mas, com as lideranças que estão realmente comprometidas, acredito que vamos seguir adiante – e podemos até ter uma retomada muito forte no Brasil.
Startups: Como você enxerga sua próxima fase profissional?
Maria Rita: Essa é difícil. Quero continuar fazendo um pouco de tudo que faço hoje. Fiz um movimento grande de transição – saí do dia a dia da Anjos do Brasil, deixei de ser executiva – justamente porque queria ter mais flexibilidade. E é isso que imagino para os próximos anos.
A educação continua muito forte para mim. Adoro compartilhar conhecimento, trocar com os alunos, seja na academia ou em cursos livres. Isso me nutre muito. Outro lado em que me vejo cada vez mais envolvida é na análise de pessoas que empreendem. Tenho buscado me capacitar para entender melhor os perfis, olhar para essas lideranças e ajudá-las a se desenvolver. Me interessa muito entender como posso apoiar alguém nessa trajetória de formação como líder empreendedor.
Startups: Se pudesse voltar ao início da sua jornada e dar um conselho para aquela Maria Rita que ainda não sabia o que viria pela frente, o que você diria?
Maria Rita: Diria para me expor mais. Não gosto muito de exposição, não tenho muita paciência, não é da minha natureza. Mas percebi que, quando a gente evita aparecer, acaba abrindo espaço para que pessoas menos comprometidas com um ecossistema saudável – e mais oportunistas – assumam esse lugar.”
Então, meu conselho seria: coragem. Exponha-se mais. Use melhor as redes sociais, use melhor as plataformas que você tem à disposição. Porque isso faz bem para o ecossistema, mesmo que seja um desafio enorme para você, Maria Rita.