
Tem casais que compartilham a senha do streaming. Outros, o feed do pet, a conta do mercado e a faxina de sábado. Dividem boletos, sonhos e responsabilidades, construindo juntos a rotina com tudo que ela tem de leve, bonito e desafiador. Mas alguns vão além e escolhem dividir não só a vida, mas também o CNPJ.
Empreender a dois pode parecer ousado – e, de fato, é. Se dividir a vida com alguém já traz seus próprios desafios, somar a essa dinâmica a gestão de um negócio – que, por si só, já exige muito – pode colocar à prova toda a capacidade de colaboração, comunicação e resiliência do casal.
Misturar amor e trabalho pede diálogo constante, confiança mútua e uma boa dose de maturidade emocional. É saber separar o que é assunto de trabalho do que é conversa entre parceiros, lidar com críticas e divergências sem levar para o lado pessoal e estar disposto a enfrentar juntos as instabilidades típicas do empreendedorismo.
“Criem um acordos logo no início – tanto como parceiros, quanto como sócios”, recomenda Mayara Neris, que criou a hotina ao lado da esposa, Karoline Oliveira. “Ninguém começa um relacionamento pensando no fim, e ninguém gosta de imaginar todos os cenários ruins. Mas a verdade é que tanto relações quanto negócios podem acabar, e é importante estar preparado para lidar com isso”, explica.
Para Mayara, é essencial discutir questões delicadas desde o começo: o que acontece com a empresa em caso de separação? E com o relacionamento, se o negócio não der certo? Quais comportamentos são aceitáveis, e quais cruzam limites? “Isso pode ajudar, inclusive, na hora de buscar investimentos. Casais empreendedores costumam ser vistos como um risco maior pelos investidores, e ter alguns pontos pré-definidos pode passar mais segurança aos parceiros”, observa.
Neste Dia dos Namorados, o Startups reuniu a história de cinco duplas que decidiram unir amor e negócio, mostrando, sem firulas, a realidade de como é empreender a dois. Entre acertos e erros, sonhos e planilhas, DRs e reuniões de alinhamento, eles descobriram que o amor pode, sim, ser um diferencial competitivo – desde que bem cultivado.
Confira, a seguir:
Nohoa Arcanjo e Rodrigo Allgayer (Creators LLC)
Quando decidiram empreender juntos, já com 11 anos de relacionamento, Nohoa e Rodrigo fizeram um acordo: o sucesso da empresa só teria valor se viesse acompanhado do sucesso do casamento. “Se quando o negócio desse certo a gente não estivesse mais juntos, é porque, na verdade, deu errado”, resume Nohoa.
Embora a Creators tenha sido oficialmente idealizada por Rodrigo, Nohoa já atuava nos bastidores desde o início. “Já tínhamos carreiras como executivos, e ela me ajudou a desenhar a empresa, me dava mentorias e trocávamos ideias o tempo todo”, relembra o empreendedor. A virada veio após uma conversa com um potencial investidor. “Ele me disse que eu precisava de um sócio que, assim como eu, acordasse e dormisse pensando no negócio. Saí de lá com a certeza de que essa pessoa era a Nohoa”, completa.
Apesar da história inspiradora, eles reconhecem que empreender a dois não é para todo mundo. “É preciso ter alinhamento de valores e objetivos claros. No nosso caso, já compartilhávamos sonhos e vivíamos muitos desses assuntos juntos. Talvez, se não fôssemos um casal, não teríamos resistido em muitos momentos da jornada empreendedora, porque um segura o outro. Vivemos em sintonia e a gente se apoia muito nessa força”, diz Rodrigo.
Para construir a nova dinâmica, eles contratam uma especialista que, como brincam, fez uma espécie de terapia de casal. “Ela nos trouxe uma visão de como o time, os clientes e os investidores poderiam nos ver, e se a gente se posicionava como casal ou não. Muitas coisas para a gente se atentar sobre como se portar, como conversar na frente do time e de outras pessoas ligadas ao negócio”, diz Nohoa.
Logo no início, começaram a colocar em prática os aprendizados, que fizeram toda a diferença para a evolução da startup. “No começo, fazíamos tudo juntos: dar feedback, entrevistar candidatos, demitir alguém”, lembra a CEO. Com o tempo, perceberam que o time, mesmo sem perceber, projetava neles sentimentos e experiências pessoais. Quando davam uma bronca em conjunto, por exemplo, soava como uma repreensão de pai e mãe, o que prejudicava o ambiente profissional.
Separar ao máximo as atuações foi essencial. Eles passaram a aparecer juntos apenas nos momentos especiais, como o anúncio de um investimento e a chegada de um novo cliente, quando o foco está muito mais na mensagem do que em quem a transmite. Segundo eles, a estratégia ajudou a estabelecer papéis mais definidos na empresa e permitiu que cada um se aprofundasse nas próprias responsabilidades, assumindo áreas específicas como prioridade.
Eles admitem que é difícil não levar trabalho para casa, mas que isso não é necessariamente um problema. Ainda assim, encontram momentos para se desconectar, muito graças à filha, Gaia, que, de forma positiva, os “obriga” a mudar o foco. “Ela nos proporciona momentos em família, nos quais desaceleramos e voltamos a atenção para algo que ela precisa, o que naturalmente nos tira do modo empresa e reconecta com a casa e a vida pessoal”, diz Nohoa.
Mayara Neris e Karoline Oliveira (hotina)
Fundadoras da hotina, plataforma de gestão de tarefas do dia a dia para profissionais de saúde e bem-estar, Mayara e Karoline já sabiam que, por serem um casal de empreendedoras, poderiam ser vistas como um risco pelos investidores. No entanto, o risco maior seria deixar Karoline fora da sociedade e, assim, criar uma startup de saúde sem nenhum profissional da área, que vivesse o dia a dia da profissão e conhecesse na prática os desafios a serem solucionados.
Logo no início, elas perceberam que precisavam alinhar as coisas. “A gente não separava a dinâmica pessoal da profissional. Falávamos de trabalho na hora do almoço, a caminho de um passeio no fim de semana e até deitadas na cama antes de dormir”, conta Karoline. A solução? Diálogo, diálogo e diálogo.
Com o tempo, elas construíram a relação de sócias e entenderam quando dedicar atenção aos assuntos do trabalho ou da vida pessoal. “Ter agendas separadas ajuda muito: uma com o e-mail profissional e outra com o pessoal. Assim, concentramos todas as demandas da hotina em um calendário e as tarefas do dia a dia em outro. Normalmente, quando queremos falar sobre assuntos da empresa, marcamos uma reunião”, acrescenta Mayara.
Essa separação acontece até na hora de captar investimento. “Como somos um casal, às vezes as pessoas presumem que uma já representa a outra, e acham que basta conversar com uma em nome das duas. Mas o fato de um investidor gostar da Mayara não significa, necessariamente, que ele vá se identificar com o restante dos sócios”, comenta Karoline. Por isso, elas mantêm a distinção também na relação com os investidores, construindo conexões individuais e diretas com cada parceiro.
Para elas, construir um negócio em sociedade, especialmente quando há também um vínculo afetivo, exige um acordo que vai além do papel. O primeiro passo, segundo elas, é o autoconhecimento: entender suas próprias habilidades e motivações para estar naquele projeto, não apenas como parceira de vida, mas como alguém que contribui ativamente para a empresa. Reconhecer o outro também é fundamental. “Ultrapassar seus próprios limites só porque está empreendendo com alguém que ama compromete tanto a relação profissional quanto a pessoal”, reflete Karoline. Por isso, elas colocam a honestidade como base do acordo: sempre que algo muda, é preciso conversar e ajustar o que for necessário, com transparência e respeito mútuo.
Como duas mulheres que desafiam as estatísticas do empreendedorismo – uma mulher preta, gorda, pansexual e neurodivergente; a outra, uma mulher branca, lésbica e periférica -, elas compartilham o peso de terem que acertar sempre, já que qualquer erro pode ameaçar toda a estrutura construída com esforço. “Precisamos ser muito boas em diálogo. Senão, tudo isso que a gente representa pode acabar nos afogando, e a gente perde o rumo – nos negócios e na vida pessoal. É sobre organizar as coisas, para que não fiquemos numa disputa constante ou sempre na defensiva, seja no trabalho ou fora dele”, pontua Karoline.
Priscila Toledo e Diego Aristides (Stellula.co)
Casados há 12 anos, Priscila Toledo e Diego Aristides se conheceram no trabalho e, mesmo seguindo trajetórias profissionais diferentes, sempre planejaram empreender juntos. Ela com mais de 20 anos de experiência no mercado financeiro e, ele, ex-CTO do Hospital Sírio-Libanês, perceberam que poderiam unir suas competências no segmento de deep techs. Surgiu então, no ano passado, a Stellula.co, uma holding composta por duas empresas: a Stellula Tecnologia e o hub de inovação The Collab.
“Estar casado é ter uma relação de sociedade, a diferença é que a gente trabalha junto. É muito bom estar com alguém que te conhece e que está com você 24h por dia”, conta Diego.
Um hábito que o casal levou da relação para a sociedade foi conversar sempre sobre o que pode ser melhorado, dando feedbacks construtivos e abrindo um espaço saudável de escuta entre eles. Mesmo antes de começarem a empreender, eles já costumavam fazer uma viagem anual onde conversavam sobre seus objetivos de vida e faziam um planejamento estratégico para o casal e a família.
Para Priscila, ter respeito e humildade para ouvir ao outro são qualidades fundamentais tanto na relação amorosa, quanto como sócios. “Um completa o outro, cada um sabe onde está a potência e a oportunidade ou a fraqueza, e é nesse mundo que a gente se junta para fazer o que a gente está fazendo. Não tem muito esse ego de um aparecer mais do que o outro”, afirma.
Como em todas as relações que envolvem vida pessoal e trabalho, manter essas duas áreas separadas pode ser um desafio. Com uma filha de três anos, eles evitam levar trabalho para a casa e têm uma regra de não falar sobre a empresa no café da manhã, quando a família está reunida. Conversas específicas sobre o negócio, como assuntos financeiros, por exemplo, são agendadas com antecedência, como ocorre em qualquer empresa.
Apesar disso, Priscila reconhece que em alguns momentos é difícil separar as duas vidas. “Teve um dia em que o Di estava com insônia e teve uma ideia. Eu estava dormindo, mas ele me cutucou e contou o que estava pensando. Na hora eu acordei e a gente levantou e começou a trabalhar. Acontece. Não é todo dia, senão eu matava ele. Mas foi um dos nossos produtos mais vendidos, e foi criado às 3h da manhã”, ri.
Monique Evelle e Lucas Santana (Inventivos)
Monique e Lucas se conheceram há dez anos, em um evento de empreendedorismo onde ela foi palestrante. Ele era presidente da empresa júnior do curso de Engenharia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e organizava o evento. Durante uma festa depois do encontro, os dois começaram a conversar e viram que tinham mais em comum do que apenas o talento para os negócios. Começou aí uma história de amor e parceria que culminou na plataforma de formação de empreendedores Inventivos.
Apesar de estarem juntos há uma década, dividindo a vida pessoal e profissional, Monique garante que o casal nunca brigou.
“Até pensamos: será que a gente tem que brigar? Mas a verdade é que a gente começou já conversando sobre futuro profissional. A gente se via empreendendo, e logo nos primeiros meses conversamos sobre sonhos pessoais e profissionais. Eu tinha uma veia de propósito mais forte e ele era melhor com números, então conseguimos juntar as duas coisas”, conta.
Lucas acrescenta que as habilidades de cada um contribuem para uma relação em que os dois se somam: “Eu sou engenheiro, comecei a fazer mestrado em matemática, sempre trabalhei com tecnologia, estruturação, processos, dados. Monique é muito melhor em comunicação, vendas, inspirar pessoas. A gente acaba se complementando nessas coisas”.
Casados desde 2023 e depois de passar por diversas mudanças até encontrar o modelo de negócios que melhor funcionaria para o projeto que queriam criar, Monique e Lucas não abrem mão de ter conversas difíceis e de respeitar a individualidade de cada um.
Em casa, têm escritórios separados e optam por conversar sobre trabalho apenas nos espaços e horários dedicados para isso.
“Se estamos assistindo a um filme e vem uma ideia para o negócio, a gente pausa, anota, e depois tem uma reunião para falar sobre aquilo”, explica Monique.
Rodrigo Roncaglio e Liana Chiaradia (Guia da Alma)
Juntos há 12 anos, sendo seis deles casados, o casal, que leva uma vida nômade, decidiu há oito anos fundar uma empresa com um propósito pouco convencional para a época: a saúde mental. A heathtech Guia da Alma, que busca prevenir o burnout dos colaboradores, nasceu a partir de uma experiência pessoal vivida por ambos.
Colegas de faculdade, eles se formaram em 2015 em Design pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A colação de grau trouxe não só o diploma, mas também o amadurecimento e questionamentos sobre a vida. “Nesse momento, começamos a buscar ferramentas que nos auxiliassem nesse processo. Fomos fazer terapia, investir em autoconhecimento e buscar mais qualidade de vida. Foi também nessa busca que iniciamos o Guia da Alma”, relembra Liana.
De acordo com a fundadora, a terapia teve um impacto muito positivo na vida dos dois. “Percebemos que muitas pessoas enfrentavam dificuldades para encontrar um terapeuta de qualidade ou até mesmo para saber por onde começar. Ao mesmo tempo, muitos profissionais não sabiam como se divulgar. Então, unimos tudo isso”, explica.
Rodrigo Roncaglio destaca que, em 2016, ninguém acreditava muito em terapia (e, muito menos, terapia online). Por isso, quando o casal trouxe a ideia de lançar uma plataforma para conectar pessoas e profissionais da saúde, ela foi considerada bastante inovadora.
“Enfrentamos muito preconceito com o tema, além de resistência das pessoas que simplesmente não aceitavam e não se abriam para falar sobre saúde mental naquela época. Vencemos com persistência, dedicação e, principalmente, por nunca ter desistido desse sonho”, recorda.
O executivo diz que o dia a dia como fundadores de uma startup é intenso, como uma “montanha-russa de emoções”. Ainda assim, o casal busca equilibrar o relacionamento com a rotina profissional, reservando dias específicos para saírem e passarem um tempo juntos. O estilo de vida nômade, adotado por eles há dois anos, também ajuda nesse equilíbrio: juntos, Rodrigo e Liana costumam fazer viagens e trilhas que fortalecem ainda mais a conexão entre eles.
Apesar da correria como fundadores, Rodrigo afirma que administrar uma empresa fortaleceu o relacionamento. “É algo que nos une muito. O nível de confiança que a gente tem entre um e outro… não tem como confiar mais em qualquer sócio do que na pessoa que você ama e que te ama de volta”, reflete.
Quando questionado sobre o significado do Dia dos Namorados, Rodrigo disse que a data é um “show de memórias afetivas”. O executivo relembra que, antes mesmo de começarem a namorar, passou a data junto de Liana, e foi nesse momento que os dois perceberam que ali estava nascendo algo “a mais”.
Segundo Liana, o Dia dos Namorados “tem um simbolismo que nos ajuda a lembrar do quanto é importante ter um dia de comemoração para estar juntos e manter a alma jovem”. Ela também observa que os relacionamentos de longo prazo são combinação de uma grande parceria, amizade e paixão.