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Fernanda Pereira fala sobre o fim do Appzinho, machismo, sororidade e problemas do ecossistema

Com o fim do Appzinho, a cofundadora apresenta suas críticas ao ecossistema

Fernanda Pereira fala sobre o fim do Appzinho, machismo, sororidade e problemas do ecossistema

Quando Daniela Pereira e suas filhas, Fernanda e Gabriela, decidiram contratar uma mulher programadora para trabalhar no Appzinho, site de aluguel de quartos e apartamentos com atuação no Rio de Janeiro, elas não imaginavam as coisas que teriam que escutar.

“Nossa ideia sempre foi ter um time majoritariamente feminino. Estávamos em reunião com o representante de uma agência e quando ele soltou a seguinte frase: ‘programadora é que nem p#ta: paga mais e ela vai correndo.’ A vontade era encerrar a reunião naquele momento”, conta Fernanda, cofundadora e diretora de operações da companhia, ao Startups.

Essa não foi a única vez que as empreendedoras tiveram que enfrentar uma situação assim. Segundo a empreendedora, desde a criação da startup, em 2017, foram inúmeras viradas de olho, interrupções de fala, falta de respeito e casos de assédio moral e emocional.

No 2º dia útil de 2022, Fernanda anunciou que o Appzinho encerraria as operações em 31 de janeiro. O comunicado veio em um texto no LinkedIn que a fundadora descreveu como indo “contra a maré dos textões politicamente corretos” normalmente postados na rede. “Um depoimento 100% sincero, especialmente para mulheres empreendedoras que se sentem ou sentiram solitárias, desmotivadas e sem nenhuma rede de apoio”, escreveu.

Em conversa com o Startups, ela relatou várias situações pelas quais passou ao longo da vida do Appzinho, muitas delas agravadas pelo fato de o aplicativo ter sido criado por 3 mulheres. Segundo a empreendedora, os episódios refletem claramente o preconceito – e até certo ponto, a falta de vontade de entender e apostar no que sai dos padrões validados pelo Vale do Silício – que permeia o ecossistema.

Uma startup que deixa de existir não é uma grande novidade. As estatísticas mostram que a maioria das iniciativas está fadada a não seguir adiante. Faz parte do negócio. A questão é que ninguém gosta de falar de seus fracassos, e a manchete “Startup X fecha as portas” não chama tanta atenção quanto “XXX é o novo unicórnio do pedaço”, ou “XXX levanta milhões para crescer” – com se alguém captasse dinheiro para deixar de crescer, mas tudo bem.

O fracasso de um negócio por questões de mercado é algo totalmente compreensível e esperado; o problema é que quando outras forças atrapalham a sua trajetória.

Gabriela, Daniela e Fernanda Pereira, fundadoras do Appzinho

Um pouco de contexto

A startup nasceu do Apezinho, blog criado em 2013 por Daniela, Fernanda e Gabriela, para ajudar quem vai morar sozinho pela primeira vez, com dicas de organização, finanças, culinária e decoração. Muitos leitores, principalmente jovens que tinham acabado de entrar na faculdade e saído de casa, começaram a pedir dicas de mudança, em busca de um quarto ou apartamento para alugar.

“Minha mãe percebeu que não havia um classificado com a mesma força de um QuintoAndar, mas com foco no aluguel de quartos no Rio de Janeiro. Então, criamos o Appzinho para atender a essa demanda,” diz Fernanda.

Os negócios iam bem. Nos 3 primeiros anos, a proptech levantou capital de investidores-anjo para lançar e sustentar as operações. De fevereiro a setembro de 2020, a plataforma cresceu 236% em ofertas ativas (de 222 para 525), 479% em número de buscas (de 73 mil para 350 mil) e 45% em volume de usuários por mês (de 22 mil para 32 mil).

“Nosso público mudou completamente na pandemia. Antes, o foco era jovens universitários, mas começaram a surgir pessoas de todas as classes, bairros e faixas etárias”, diz a empreendedora. Ela atribui o crescimento às mudanças sociais ocorridas no período: pessoas se separando, perdendo o emprego e buscando um lugar mais acessível para morar. “Até quem tinha uma casa com um quarto sobrando começou a alugar o espaço para conseguir uma renda extra.”

Os acessos cresceram tanto que o dashboard da plataforma não suportava mais a demanda. Foi quando as empreendedoras concluíram que era hora de captar um novo financiamento – a intenção era atrair R$ 1,5 milhão em capital para aprimorar a tecnologia. “Tentamos muito levantar esse dinheiro. Conversamos com diversos fundos nacionais e com investidores-anjo. Mesmo com muita vontade e trabalho duro, recebemos 45 ‘nãos’”, conta a empreendedora.

Machismo estrutural

Uma publicação da Harvard Business Review sugere que investidores preferem propostas feitas por empresários do sexo masculino do que pitchs feitos por uma mulher, mesmo quando o conteúdo da apresentação é idêntico. Segundo o texto, as perguntas feitas para homens em busca de capital de risco giram em torno das vantagens e ganhos potenciais do negócio, enquanto as empreendedoras, recebem uma abordagem mais preventiva, com foco nas perdas potenciais e mitigação de riscos.

As fundadoras do Appzinho vivenciaram essa diferença de tratamento na prática. Em janeiro de 2020, a startup foi convidada para apresentar um pitch para um famoso grupo de anjos da região Sudeste, ao lado de 5 outras startups de diferentes segmentos.

“A gente nunca foi tão desrespeitada como naquele momento. Os argumentos vinham de homens que tentaram de todas as formas invalidar a nossa fala. As outras startups, de equipe majoritariamente masculina, não receberam o mesmo tratamento”, afirma a empreendedora, destacando a falta de representatividade no grupo de investidores. “Entre eles só tinha 1 mulher assistindo à apresentação”, completa.

Fernanda conta que passou por situações semelhantes com muitos outros fundos de investimento. “Enfrentamos vários opressões, e temos consciência de que ainda somos privilegiadas, por sermos pessoas brancas, cis e de classe média. Em outras interseccionalidades a situação é muito pior, porque a representatividade no ecossistema [praticamente] não existe.” 

A empreendedora chama atenção para o preconceito de idade. Ela e a irmã, em seus 20 e 30 e poucos anos, eram vistas como inexperientes. “Não tínhamos credibilidade por sermos novas.” Por outro lado, a mãe, de 54, não era levada à sério por ser “velha demais para empreender”. 

Na avaliação de Fernanda, mulheres com expectativas de atrair recursos de fundos de venture capital não podem se dar ao luxo de ser quem realmente são. “A gente não pode vestir o que quer ou falar como gostaríamos, e ainda temos que nos portar da forma que os investidores esperam,” argumenta.

A desigualdade no ecossistema se reflete no número de fundadoras – startups criadas apenas por mulheres são só 4,7% do mercado total, de acordo com o estudo “Female Founders Report 2021”, elaborado pelo Distrito em parceria com a Endeavor e a B2Mamy – e continua nas outras partes do ecossistema, como o baixo número de mulheres investidoras dentro das gestoras. A LAVCA faz uma lista anual com os principais nomes na América Latina e tem sinalizado um crescimento ao longo dos anos, mas a presença feminina ainda é muito baixa. 

E a sororidade?

Sem citar nomes, Fernanda diz que tentou falar com investidoras, aceleradoras e VCs focados em mulheres, mas, em muitos casos, não obteve resposta. Por isso, ela se surpreendeu com a repercussão do artigo publicou no LinkedIn em que comunicou o fim do Appzinho. “Muitas mulheres entraram em contato, falaram para não desistirmos e que nosso negócio era incrível. Mas na época que buscamos ajuda, ninguém quis se aproximar,” pontua.

Para a empreendedora, esse é um problema que não está restrito aos ecossistema de inovação. Formada em publicidade pela PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), ela alerta que diversidade e inclusão são as palavras da moda em empresas, programas e, principalmente, nas redes sociais, mas que na prática os temas estão longe de ser realidade.

“A ideia de que todas mulheres empreendedoras são empáticas e praticam de fato a sororidade fora do Linkedin é mentira. Não são todas, longe disso”, escreveu no artigo. Nesta entrevista, a fundadora completou o raciocínio: “A gente pensa que a pessoa vai nos atender, ouvir e ajudar só pelo fato de ser mulher. Mas é muito raro isso acontecer no mundo real, seja qual for o mercado. Não houve sororidade, muito menos ajuda por parte de outras mulheres”, afirma.

Fora do padrão

Questionada se a competição com grandes proptechs, como Loft e QuintoAndar, atrapalhou os negócios, Fernanda afirma que não. “Nosso mercado e público alvo eram diferentes.”

Apesar de também trabalhar com studios, kitnets e outros imóveis inteiros, o foco do Appzinho eram os quartos. Quem oferece um serviço parecido é a Yuca, uma plataforma com opções de quartos inteiros e compartilhados, a partir de R$ 2.000 por pessoa. Na Uliving, studios para 2 pessoas com banheiro compartilhado custam pelo menos R$ 1.550.

“Não são opções viáveis para uma pessoa que ganha 1 salário mínimo, acabou de sair de casa e vai começar a vida – e era justamente esse público que a gente queria abraçar”, explica Fernanda. No Appzinho, as empreendedoras ofereciam aluguéis de quartos mais acessíveis – alguns deles, disponíveis por R$ 550.

Segundo a empreendedora, não faltava demanda pelos serviços. Ela explica que quem não pode pagar o preço das plataformas tradicionais costuma usar o Facebook como alternativa. “As pessoas anunciam e procuram quartos para alugar nos grupos fechados, que não param de crescer.” A intenção da startup era usar a plataforma para profissionalizar essas comunidades virtuais, com filtros de busca e negociações mais seguras.

Diferente das outras proptechs, o Appzinho oferecia, entre outras opções, quartos em favelas do Rio de Janeiro – o que, segundo Fernanda, não era muito bem visto pelos investidores. “A gente fala em comunidade e as pessoas pensam que eram lugares perigosos”, afirma.

Não foi fácil explicar o conceito para os investidores. Para Fernanda, a realidade dos executivos era muito distante das vivências dos clientes do Appzinho. “Se a gente falava que 15 pessoas repartiam 1 quarto na comunidade da Mangueira, parecia que estávamos falando de uma ficção. Tentávamos explicar sobre esse mercado, mas ninguém entendia, porque é uma realidade completamente diferente da desses executivos.”

As empreendedoras tentavam aproximar as vivências. ‘Sabe quando seu filho faz intercâmbio na Austrália, fica na casa de família e precisa alugar um quarto?’, questionavam. Aí a pessoa começava a entender – mas nunca completamente. “São 2 planetas muito distantes”, diz Fernanda.

Depois das reuniões, elas recebiam 3 principais tipos de resposta. Alguns explicavam que o valor solicitado era muito baixo para a carteira de investimentos do fundo, e que o ideal era fazer uma captação via Family, Friends and Fools (quando amigos, colegas e familiares se unem para investir na empresa de estágio inicial). “Isso é partir do princípio de que os empreendedores têm conhecidos com dinheiro sobrando para investir R$ 1,5 milhão no negócio, o que não é uma realidade para a maioria dos brasileiros”, afirma a cofundadora do Appzinho.

Com 7 co-fundadores, a startup também ouviu o argumento de que tinha muitos sócios. Fernanda diz que isso foi mais uma necessidade do que opção. “O sonho é que chegue uma pessoa e dê todo o dinheiro. Mas, no nosso caso, os investidores entraram com valores menores e, para captar todo o dinheiro, tivemos que abrir [participação no negócio] para outros executivos”, explica.

Por fim, os fundos pediam um retorno financeiro que, segundo Fernanda, seria impossível de alcançar em tão pouco tempo. “Alguns queriam que a gente retornasse 300 vezes o valor do investimento inicial em apenas 2 anos, o que não seria possível em um mercado de aluguel de quartos a valores acessíveis.”

O site do Appzinho ficará no ar até o dia 31 de janeiro, mas as Pereiras seguem à frente do blog Apezinho, compartilhando dicas e experiências para ajudar quem quer sair de casa. As empreendedoras pretendem doar a plataforma para uma instituição focada em quartos em comunidades.