
Os próximos lances na guerra dos apps de delivery não serão definidos apenas por taxas, cupons ou benefícios, mas por quem consegue ocupar espaço, construir narrativas e ganhar influência.
Novembro marcou o início da operação da Keeta – braço internacional da chinesa Meituan – no Brasil, enquanto o iFood reforça suas estratégias para manter a liderança e a 99Food intensifica esforços para se consolidar no tabuleiro. Cada vez mais, o jogo vai além da operação: regular o setor, gerenciar a imagem pública e ganhar visibilidade se tornam tão decisivos quanto preço e serviço.
Na terça-feira (18), o iFood anunciou uma parceria com o Nubank para oferecer descontos exclusivos a usuários que pagarem com o cartão do roxinho ou via NuPay. A iniciativa se soma à integração com a Uber, apresentada no início do ano, que criou uma via de mão dupla entre os apps: pelo iFood, o usuário pode solicitar viagens da Uber; já na Uber, é possível acessar os serviços de entrega de comida, mercado, farmácia e conveniência do iFood. A articulação reforça a tese do iFood de ser um ecossistema conectado, no qual mobilidade, consumo e serviços convergem em uma mesma experiência.
Em paralelo, a 99Food retornou ao Brasil dois anos após encerrar suas atividades no país. A operação de entregas da chinesa DiDi Global Inc. foi relançada em agosto e, desde então, retomou os serviços em Goiânia, São Paulo, Campinas, Salvador e Rio de Janeiro. Agora, a plataforma busca consolidar seu espaço, prometendo oferecer condições mais justas e transparentes para restaurantes, entregadores e consumidores.
Em um movimento para se afirmar como plataforma relevante no debate sobre mobilidade, entregas e serviços digitais, a 99 anunciou o SUPERCidade 99. Programado para o dia 26 de novembro, em São Paulo, o evento reunirá imprensa, parceiros e executivos para apresentar a visão da empresa sobre o superapp. Embora não seja focado exclusivamente na 99Food, o evento marca uma tentativa de ocupar espaço na conversa pública – justamente em um momento em que os holofotes do setor começam a se dividir.
Coincidentemente, no mesmo dia, a Keeta também reúne a imprensa em São Paulo para um encontro fechado, apresentado como sua chegada formal à capital. Com a presença do CEO Tony Qiu, do vice-presidente de parcerias estratégicas, Danilo Mansano, e de marcas como Bob’s e Seven Kings, a coletiva estava inicialmente marcada para o dia 25, mas foi transferida de última hora para o dia 26. Procurada pelo Startups, a empresa disse que a mudança ocorreu por questões internas e para adequar a agenda dos colaboradores, negando qualquer relação com o evento da 99.
Pressão por melhorias
Enquanto as plataformas se movimentam para aumentar o market share, uma outra frente de atuação ganha força – desta vez, impulsionada por quem sustenta as entregas no dia a dia. Nas últimas semanas, entregadores e motoristas de aplicativos organizaram novas paralisações nacionais, reivindicando reajuste nos valores mínimos por corrida, regras mais claras de repasse, fim dos bloqueios unilaterais e maior transparência nos sistemas de pontuação.
Poucos dias após o início das operações em Santos e São Vicente, mais de 300 entregadores da Keeta organizaram uma paralisação contra as condições oferecidas pela plataforma. O movimento ganhou força após uma reunião com representantes da empresa. Segundo os trabalhadores, a conversa se concentrou em questões técnicas, como falhas de GPS, lentidão do aplicativo e consumo excessivo de bateria, enquanto os temas mais sensíveis, como taxas, bônus e remuneração das entregas ficaram de fora da discussão. A categoria esperava que a reunião resultasse em avanços concretos sobre reajustes, mas isso não aconteceu.
Do outro lado, a 99 enfrenta um desafio semelhante. Fontes com conhecimento do tema afirmaram ao Startups que entregadores vinculados à plataforma articulam uma paralisação para a próxima terça-feira (25). O objetivo é chamar atenção para “práticas que consideram abusivas e reivindicar aumento das taxas pagas pelas corridas”.
A mobilização não é novidade para o setor. Os entregadores do iFood, por exemplo, já protagonizaram diferentes paralisações, incluindo uma greve nacional no início deste ano em defesa de melhores condições de trabalho – uma espécie de reedição do Breque dos Apps, movimento que ganhou repercussão em 2020. Em nota oficial, o iFood afirmou que mantém “uma agenda sólida e permanente de diálogo com os entregadores parceiros e representantes da categoria, para aprimorar iniciativas que garantam mais dignidade, ganhos e transparência para esses profissionais.”
Além da discussão sobre remuneração e condições de trabalho, cresce também a disputa simbólica pelo espaço visível nas ruas. Nas últimas semanas, entregadores da 99Food em Goiânia relataram uma nova exigência do app: enviar diariamente uma foto da mochila térmica oficial da marca – aquelas usadas nas entregas e que estampam o logo da plataforma – para validar o agendamento de turnos. Quem não envia a imagem dentro do prazo fica impedido de validar o agendamento do turno do dia seguinte. Segundo a categoria, a medida ignora que muitos trabalham em mais de uma plataforma e pode limitar a renda, ao restringir o uso de bags de outras marcas.


Regulação como arena de disputa
Enquanto os entregadores se organizam nas ruas, o debate também avança para os tribunais, para o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e, cada vez mais, para os corredores de Brasília.
Discussões sobre o Projeto de Lei das plataformas, que propõe atualizar a Lei de Defesa da Concorrência, avançam para acomodar as dinâmicas dos mercados digitais. A proposta em debate mira temas sensíveis para o setor, como remuneração mínima, contribuição previdenciária e o modelo de responsabilidade compartilhada entre empresas e trabalhadores – pontos que impactam diretamente operações como delivery por aplicativo.
Ao mesmo tempo, as plataformas têm acionado órgãos reguladores com frequência, levando a disputa para instâncias jurídicas e administrativas. A rixa não é recente. Em 2021, o Uber Eats (que operou no Brasil até março de 2022) entrou com uma representação no Cade para integrar o processo movido por Rappi e Abrasel contra o iFood. As empresas alegavam que os contratos de exclusividade firmados pelo iFood com restaurantes configuravam práticas anticompetitivas, ao impedir que esses estabelecimentos operassem em outras plataformas. O caso resultou, em 2023, em um acordo entre o iFood e o Cade, que estabeleceu limitações ao uso dessas cláusulas de exclusividade.
Mesmo assim, a disputa entre os aplicativos seguiu, se manifestando em novas ações e notificações entre concorrentes, como a registrada pelo iFood contra a 99Food em agosto, alegando concorrência desleal. Segundo o iFood, recrutadores da rival estariam abordando profissionais em posições estratégicas pelo LinkedIn, ignorando cláusulas de não concorrência previstas em contrato.
Pouco antes, foi a vez de a Keeta acionar a Justiça contra a 99Food, acusando a plataforma de adotar “cláusulas de bloqueio” em contratos com restaurantes parceiros – o que, na visão da chinesa, funcionaria como um mecanismo de exclusão de mercado, sem justificativa econômica legítima.
No último mês, a 3ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu a favor da Keeta, determinando a suspensão das cláusulas apontadas como restritivas. A 99 disse que vai recorrer e afirmou ter “plena confiança na legalidade das práticas e, sobretudo, em seus efeitos concretos: ampliar o mercado de delivery de comida, gerar demanda e rentabilidade para restaurantes, expandir oportunidades de ganho para entregadores e oferecer conveniência com preços justos para os consumidores”.
Recentemente, as disputas que já vinham sendo levadas à Justiça ganharam uma nova camada institucional. Após a troca de acusações entre os players, o Cade decidiu intensificar a vigilância sobre o setor. No início de novembro, o órgão instaurou um procedimento administrativo para acompanhar de perto o mercado de marketplaces de delivery de comida, com o objetivo de prevenir possíveis infrações à ordem econômica.