Quem andou nas últimas semanas por corredores movimentados de São Paulo, como a Avenida Paulista ou a Faria Lima, pode estar com a sensação de dèja-vù. Nas ciclofaixas e ciclovias do centro expandido da cidade, uma criatura bastante popular e polêmica do mundo pré-pandêmico voltou a dar as caras: os patinetes elétricos. Não é miragem: uma nova geração de startups, formada por empresas como Whoosh e Jet, tem buscando provar não só que seus modelos de negócio são sustentáveis, mas também que os veículos podem ser uma solução acessível para a mobilidade metropolitana.
“Chegamos aqui com os aprendizados após os erros do passado. Não é algo inovador, mas é uma reintrodução de um modelo que já deu certo na Europa”, diz Francisco Forbes, sócio da Whoosh Brasil. Os erros do passado a que o empresário se refere já parecem distantes no retrovisor, mas ainda fazem muita gente torcer o nariz ao ouvir “patinete elétrico”. Entre 2018 e 2020, uma enxurrada de empresas movidas por grandes injeções de capital fez bagunça pelos canteiros e esquinas de grandes cidades tentando fazer a onda pegar.
Não deu certo: os patinetes quebravam rápido, enquanto os que restavam faziam as startups entrarem em rota de colisão com o poder público. Além disso, no afã de tomar conta do mercado, não foram poucas as iniciativas que sofreram não só por conta das dificuldades de fazer o modelo de negócios parar de pé. Mas padeceram por dentro, por problemas de gestão – como a Grow, fusão da brasileira Yellow com a mexicana Grin.
Nessa confusão, poucas foram as companhias que sobreviveram até março de 2020. Quem se manteve vivo, teve de lidar com o azar da chegada da pandemia, que fez o planeta se trancar em casa e dinamitou de vez o mercado. Após o fim do isolamento social, porém, a ideia voltou à baila na Europa e, aos poucos, foi ganhando corpo.
Azul ou amarelo
A Whoosh, por exemplo, nasceu em Moscou em 2018 e hoje opera uma frota de 320 mil patinetes elétricos em mais de 60 cidades europeias. Por conta da Guerra da Ucrânia, a sede da empresa está no Chipre. A operação brasileira, porém, tem organização independente, contando com os acionistas da companhia estrangeira e Francisco Forbes, fundador da Infracommerce e da Seed, no corpo de investidores.
Depois da saída das duas empresas do ramo de varejo, ele fez uma transição para a mobilidade e foi trabalhar na SpaceX, cuidando de investimentos para o Hyperloop. Lá, conheceu investidores que também aportavam na Whoosh. “Eles queriam vir para o Brasil. Fui resistente no começo, mas aos poucos entendi que fazia sentido”, conta o empreendedor, que iniciou as operações da empresa por aqui em meados de 2023. “Somos uma startup que vem para implementar um modelo que para em pé e funciona. A Infracommerce não deu lucro até hoje, mas aqui trouxemos uma série de mudanças do ponto de vista operacional. Já entregamos lucro no primeiro ano e meio da empresa”, gaba-se.
A chegada foi por Florianópolis, com expansões posteriores para Porto Alegre e Rio de Janeiro. “Floripa foi uma opção por ser uma cidade menor, mais controlada, com boas ciclovias e boa segurança. A universidade também foi um fator importante, com um volume de jovens utilizando, em um ambiente em que a regulação já estava mais organizada”, explica Francisco, que prefere trabalhar em conjunto com o poder público local. “Existiu uma moda de entrar batendo nas prefeituras e ver quem ganhava. Mas não gostamos disso. Poderíamos já ter lançado várias cidades, mas preferi esperar. Sempre entramos só quando está tudo redondo.”
É o que explica por que em São Paulo, onde opera desde 13 de dezembro de 2024, a empresa ainda não se espalhou por toda a cidade: a malha da Whoosh, com 88pontos licenciados para os patinetes, vai da Consolação ao Paraíso, da Avenida Paulista até a Marginal Pinheiros, além de abarcar Pinheiros e Vila Leopoldina. Outros 112 pontos aguardam aprovação das subprefeituras. “Nosso projeto é estar nos quatro lados da cidade. Não quero ser o cara que só funciona na Faria Lima, quero servir como transporte e estar na Freguesia do Ó”, ressalta.
Para rodar, o usuário precisa pagar R$ 2 para desbloquear o patinete, além de uma tarifa de R$ 0,69 por minuto, que pode variar segundo a demanda. Usuários recorrentes também podem aderir a planos de assinatura semanal, mensal ou anual, pagando de R$ 5 a R$ 50 para não pagar mais a taxa de desbloqueio. “Nosso trabalho começa onde tem ponto de ônibus e metrô. É legal estar em pontos turísticos, mas quero mais fazer a ligação do centro com o bairro do que servir para quem quer passear no parque. Somos uma empresa de transporte”, complementa Forbes.
Além da Whoosh, que opera com patinetes amarelos, quem também tem ocupado as ruas da capital paulista é a Jet, que usa o azul como símbolo. Também vinda da Rússia, a empresa estabeleceu sua operação local em parceria com um veterano desse mercado: Michel Farah, co-fundador da Ride – uma das empresas que começaram a explorar os patinetes elétricos em 2018 e, pouco tempo depois, acabou fazendo parte do grupo da Grow.
Ele se arrepende da estratégia adotada pela antiga companhia. “Era uma corrida frenética em que importava o aluguel, e não a segurança das pessoas. Parecia batata quente, em que o dinheiro entrava e tinha que ser gasto logo. A loucura de virar unicórnio fazia com que acontecessem erros administrativos”, diz o diretor de relações governamentais da Jet, presente em 18 cidades e dona de 10 mil patinetes no País.
Sócio da Farah Services, que também presta serviços para a preservação de parques e áreas públicas, Michel viveu na pele o problema da desorganização do mercado. “O patinete que ficava jogado na rua me atrapalhava para fazer a manutenção do espaço que eu cuidava”, comenta. Para ele, a crise do mercado tem ajudado a nova geração a se estabelecer com mais calma. “Por causa da crise, poucas empresas estão no setor hoje e a corrida não é frenética. Dá tempo para ter mais calma, com administração segura e fazer um crescimento consolidado” complementa Michel.
Tal como a Whoosh, a Jet hoje está disponível também em um quadrilátero limitado no centro expandido, mas ligeiramente diferente: vai da Avenida Nove de Julho à Avenida Jabaquara, e do corredor Vergueiro-Paulista até a Avenida dos Bandeirantes, com uma pequena extensão para o Morumbi no trecho da Marginal Pinheiros. O aluguel custa R$ 2 pela taxa de desbloqueio, com tarifa adicional de R$ 0,49. Quem quiser utilizar por uma hora ininterrupta tem a possibilidade de pagar R$ 28. Além disso, também há um plano de assinatura, de R$ 15 mensais, em que não é cobrada a taxa de desbloqueio. A empresa tem ainda outro modelo de negócios: o aluguel de power banks – gratuito na primeira hora, R$ 6 por um dia e R$ 12 pelo dia seguinte.
Aprimoramentos
Tanto Jet como Whoosh começaram a rodar em São Paulo seguindo a regulamentação local, que foi aprovada em 2019, mas só passou a ser testada de fato agora. Entre as regras, está o uso limitado a ciclofaixas, ciclovias e ruas com limite de 40km/h, a proibição para menores de 18 anos e também a vedação ao uso do patinete por mais de uma pessoa. A velocidade máxima dos patinetes elétricos é de 20 km/h e, segundo comunicado enviado pela Secretaria Municipal de Transportes, “após o uso, os veículos devem ser devolvidos nas estações cadastradas, sendo proibido deixá-las em locais não autorizados”.
Além de seguir a lei, o uso de estações pré-determinadas é um dos trunfos das empresas para melhorar o modelo de negócios na comparação com as startups do pré-pandemia. “Hoje o sistema não é dockless, mas sim um dock virtual, com uso de cercas digitais para determinar onde o usuário pode parar”, explica Michel, da Jet. “Buscar os patinetes e bicicletas em qualquer lugar era um trabalho muito custoso.”
Um ponto que as empresas apostam é na contratação de profissionais próprios e dedicados a tarefas específicas de operação e manutenção, ao contrário do que acontecia anteriormente – a Yellow, por exemplo, utilizava mão de obra terceirizada para recolher os patinetes elétricos e bicicletas. “Hoje, tenho uma equipe que só faz troca de bateria, outra só para manutenção e outra para organizar pontos. Cada uma tem suas rotinas e seus padrões”, explica Francisco, da Whoosh. “Por outro lado, é um trabalho que demanda uma certa escala, então não dá para começar em qualquer cidade nem pensar pequeno.”
A escolha por patinetes elétricos mais resistentes também é outro aspecto em que Jet e Whoosh buscam não repetir os erros do passado. “Naquela época, os patinetes deveriam durar 3 ou 4 meses e duravam 28 dias. Eles eram frágeis, pequenos e fáceis de estourar”, recorda-se Michel. Hoje, ambas utilizam modelos Ninebot, da Segway, que custam cerca de R$ 10 mil e são mais robustos do que os veículos usados antes pela Grow e por outras empresas.
“Nós estimamos que um patinete consiga ter seis anos de operação, fazendo um programa de manutenção continuada. Hoje, conseguimos pagar um patinete em 3 a 5 meses de uso”, estima Frqancisco, que também vê no aumento da autonomia do equipamento – em torno de 50km por uso – uma redução dos gastos com as recargas e trocas de baterias. De acordo com o executivo, desde o início da operação, menos de 25 patinetes elétricos dos 6 mil utilizados pela Whoosh no Brasil foram substituídos.
A melhora na durabilidade reduz não só o custo operacional das empresas, mas também o número de acidentes – a Whoosh, por exemplo, tem seguro cobrindo todas as viagens, mas que só foi acionado seis vezes em mais de 3,5 milhões de usos. Parte desse índice se deve ao fato de que os novos modelos são menos “recreativos”. “O patinete não é divertido, ele não acelera na descida, nem dá para dar cavalo de pau. Ele é bem chatão e bem seguro”, brinca Michel. Já outra parte se deve também à conscientização que as startups fazem para educar o usuário sobre boas práticas de condução – uma das obrigações na regulamentação paulistana, com direito até a relatórios anuais.
Outro avanço da nova geração e que ajuda a reduzir custos operacionais são as tecnologias de rastreio, que evitam roubos de patinetes e também infrações. “Hoje conseguimos entender quem está transgredindo as regras, andando em duas pessoas ou pela calçada, ou mesmo se está andando na mão oposta àquela rua”, detalha Michel, da Jet, que projeta trazer regras mais fortes que as regulações locais. Além disso, as duas empresas buscam trabalhar próximas ao poder público e às forças de segurança locais. “Estamos integrados com Guarda Municipal e com PM, já fizemos blitzes educativas e ações. A educação é a melhor arma”, destaca Forbes.
Além da origem em comum, Jet e Whoosh também enxergam horizontes parecidos: ambas não buscam captar recursos de maneira rápida junto com fundos de venture capital ou abrir uma quantidade gigantesca de cidades. “Temos uma lista de mais de 20 cidades para expandir, mas fazemos uma análise criteriosa, focando em lugares que tenham um desafio de transporte considerável”, afirma o CEO da Whoosh, que quer chegar a 12 mil patinetes nesta temporada. Para Michel, da Jet, o fato do patinete não ser uma “febre” como foi antigamente é positivo. “O volume de locações está muito bom, mas essa ausência de febre é sadia para o negócio, para podermos crescer organicamente.”
‘Veterana’ corre por fora
Se tudo correr como o planejado a dupla Whoosh e Jet terá pelo menos uma terceira concorrente na capital paulista: a gaúcha Pulga, cuja história é bastante diversa em relação à das rivais. Fundada pelo designer Lucas Dias, a empresa nasceu em 2013, em Gramado (RS), como um projeto que buscava resolver problemas de mobilidade urbana com skate – esporte que o fundador chegou a praticar profissionalmente.
A transição para o patinete aconteceu nos anos seguintes, com Dias buscando criar um desenho próprio do veículo. Quando finalmente conseguiu rodar em Gramado, com uma rede de 20 modelos, o ano já era 2019 e Yellow e Grin já estendiam suas redes pelo País. “Começamos muito antes deles, mas quando eles chegaram nós levamos um susto”, conta o fundador da Pulga.
Por ter começado pequena, porém, a Pulga teve resiliência para sobreviver à pandemia e ir absorvendo pequenas concorrentes – como a Mobileasy, que rodava em Barueri, e a FlipOn, dona de uma frota de 1,2 mil patinetes elétricos. Com o tempo, a empresa também expandiu operações para a vizinha Canela e para Balneário Camboriú.
A próxima da lista seria a Riviera de São Lourenço, no litoral paulista, mas os planos foram por água abaixo quando o galpão da empresa, em Porto Alegre, ficou inundado durante as enchentes de em maio de 2024. “Ficamos com os patinetes 25 dias debaixo d’água, mas começamos a recuperá-los. Perdemos só 1% da frota”, conta Lucas, que teve de mudar os planos da empresa.
Hoje, a Pulga voltou a operar só em Gramado, cobrando R$ 5 por desbloqueio do equipamento e mais R$ 0,95 por minuto. O plano do empreendedor é fazer da cidade um polo de testes para “novas experiências” a partir do uso dos patinetes, chegando até a grandes cidades como a capital paulista. “Queremos competir com os russos”, diz Dias. Agora só falta combinar com eles.