A construção da usina de Angra 3 tem se alongado por 40 anos, e, entre idas e vindas, está prestes a ser retomada mais uma vez. Mas parece que agora será diferente, com o mundo inteiro se voltando para a energia nuclear como uma solução para atender à demanda gerada pela inteligência artificial, sem recorrer aos combustíveis fósseis. No Brasil, a modernização da indústria é o carro chefe do atual governo – que tem inclusive anunciado estímulos à instalação de data centers no país. E, para fazer frente a essa Nova Indústria, Angra 3 pode ser apenas o começo.
Cenários elaborados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) apontam que o Brasil deveria aumentar sua capacidade de geração de energia nuclear dos atuais 2GW para 8GW a 10GW em 2050, o que significaria a construção de seis a oito novas usinas (considerando que cada planta tem capacidade para gerar cerca de 1GW).
Mas o Brasil não é o único a ver na energia nuclear a saída para construir a indústria do futuro. Nações como Índia, Rússia, Japão, Estados Unidos, além de países da Europa, também têm apostado na construção de novas usinas para corresponder ao aumento de demanda com a IA.
Recentemente, até mesmo empresas, como a Amazon, Google e Microsoft assinaram acordos para desenvolver os chamados pequenos reatores modulares (Small Modular Reactors – SMR), que são reatores de fissão nuclear, mas com cerca de 10% do tamanho de um reator convencional – e, portanto, mais fáceis e rápidos de serem construídos. As três gigantes de tecnologia têm investido pesado na corrida pela inteligência artificial e garantir que haja abastecimento de energia para seus data centers é um elemento crucial.
Um relatório da Agência Internacional de Energia (AIE) divulgado no início deste ano prevê que o consumo de energia em data centers no mundo, que foi de 460 terawatt-hora (TWh) em 2022, pode chegar a 1.050 TWh em 2026 com o avanço da IA – um aumento de quase 130%.
Energia nuclear no Brasil
Mas, afinal, a energia nuclear é a única saída? Hoje, as usinas nucleares de Angra 1 e 2 fornecem cerca de 2% da energia que é consumida no país. Para Raul Lycurgo, presidente da Eletronuclear, essa proporção deveria ser maior. Segundo ele, o consumo de energia elétrica tende a aumentar numa dimensão que o sistema elétrico nacional não tem condições de suprir com as outras fontes.
“Uma pesquisa feita com inteligência artificial consome 10 vezes mais energia do que uma pesquisa feita em um buscador como o Google. As novas tecnologias vão demandar muita energia, e energia de base, que não oscila, que tenha 24h por dia”, afirma.
Juntas, as usinas de Angra 1 e 2 têm capacidade para gerar cerca de 2 mil megawatts (2GW). Isso é suficiente para abastecer 40% do estado do Rio de Janeiro. Angra 3 tem capacidade para gerar, sozinha, cerca de 1.400 megawatts (1,4 GW). Com isso, as três usinas seriam capazes de abastecer entre 60% e 65% do território fluminense.
“O sistema elétrico, para ser resiliente, não pode contar apenas com uma fonte. O Brasil tem hidrelétricas, com e sem reservatório, tem fotovoltaica, tem eólica e tem urânio. Não podemos ter um tabu e desprezar fontes importantes por isso, ainda mais com eventos climáticos cada vez mais extremos”, argumenta Raul.
Mais da metade da geração de energia elétrica no Brasil atualmente vem das usinas hidrelétricas, que formam a base do sistema, junto com as termelétricas – acionadas em períodos de maior seca. Com as mudanças climáticas, a falta de chuvas tem sido cada vez mais frequente, o que faz com que as térmicas tenham que ser acionadas por períodos mais longos, encarecendo a conta de luz e aumentando as emissões de gases de efeito estufa, devido à queima de gás natural, diesel e carvão.
As fontes solar e eólica têm ganhado cada vez mais importância, e este ano corresponderam a cerca de 25% da geração no país, segundo dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). O problema é que essas fontes são intermitentes, ou seja, dependem de fatores como o sol e o vento para que haja geração de energia.
“Para aumentar a capacidade instalada de eólica e solar, é preciso ter uma base firme para dar confiabilidade ao sistema. Não vai haver transição energética sem nuclear”, defende o presidente da Eletronuclear.
Amaro Pereira, professor do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ, afirma que, com o crescimento do país e com o aumento do número de data centers, será necessário fortalecer as usinas de base.
“Nós praticamente esgotamos o nosso potencial hidrelétrico. A fronteira estaria na região amazônica, mas há questões ambientais ali que são complexas. Como somos um país em desenvolvimento, nosso consumo de energia está sempre crescendo, então o mais provável é que seja necessário construir mais termelétricas no futuro”, explica.
Segundo ele, concluir a construção de Angra 3 será fundamental para fortalecer essas fontes de base. Por um lado, a energia gerada pela usina complementará a energia gerada pelas hidrelétricas, evitando o acionamento das térmicas a gás, diesel e carvão. Além disso, em momentos de menor consumo, as usinas nucleares, que são constantes, permitiriam que houvesse uma “sobra” das hidrelétricas, favorecendo o acúmulo de água nos reservatórios.
“Angra 3 vai agregar uma quantidade de energia significativa ao sistema. Isso não pode ser dispensado. Especialmente se pensarmos que parte da obra já está pronta”, avalia o professor.
Corrida pela IA
Para André Miceli, CEO da MIT Technology Review, a retomada da construção de Angra 3 é uma “boa notícia”. Um relatório divulgado pela instituição em outubro destacou a energia nuclear como uma das tendências para a transição energética.
O executivo ressalta que o gasto de energia com a inteligência artificial atingirá níveis que até pouco tempo eram impensáveis. A geração de uma única imagem com IA, por exemplo, consome o equivalente a carregar o smartphone de 0% a 100%, diz ele.
“A gente entende que a energia nuclear sofreu um processo de discriminação em função de eventos, da própria utilização para a guerra, e de acidentes que aconteceram ao longo da história, mas é uma energia limpa. Hoje em dia tem tecnologia para gerar energia de uma forma mais segura e altamente eficiente”, afirma.
Esse “rebranding” da energia nuclear ficou ainda mais claro com o anúncio de que a Microsoft assinou um acordo, em setembro, para ressuscitar a usina de Three Mile Island, na Pensilvânia. A planta foi palco do pior acidente nuclear já ocorrido nos Estados Unidos, em 1979, quando o reator da Unidade 2 sofreu um derretimento parcial. O incidente ganhou inclusive documentários no Netflix (Meltdown: Three Mile Island) e no Prime Video (Radioactive: The Women of Three Mile Island).
Agora, os planos de Bill Gates, junto com a companhia Constellation Energy, são de relançar a usina e gerar energia para compensar o uso de eletricidade do data center da Microsoft.
“Abastecer indústrias críticas para a competitividade econômica e tecnológica da nossa nação, incluindo data centers, requer uma abundância de energia que seja livre de carbono e confiável a cada hora de cada dia, e as centrais nucleares são as únicas fontes de energia que podem cumprir consistentemente essa promessa”, justificou Joe Dominguez, presidente e CEO da Constellation, em comunicado enviado ao mercado.
Angra 3 será concluída em 2031
Com potência de 1.405 megawatts (1,4 GW), a usina de Angra 3 será capaz de gerar mais de 12 milhões de megawatts-hora por ano, o suficiente para atender 4,5 milhões de pessoas – ou cerca de 3% do consumo do país. Segundo a Eletronuclear, mais de 65% da obra já foi concluída.
Em setembro, o BNDES entregou à Eletronuclear os estudos referentes à estruturação do modelo técnico, jurídico e financeiro da retomada do projeto de implantação de Angra 3. A retomada ou não das obras da usina depende, agora, de aprovação do modelo pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).
De acordo com o estudo, o custo para abandonar as obras de Angra 3 pode passar de R$ 21 bilhões. O montante seria praticamente o mesmo de se concluir o empreendimento, alega a Eletronuclear.
O BNDES foi contratado pela Eletronuclear em 2019 para realizar o levantamento, que contou com a participação de mais de 50 consultores de nove empresas e teve sua primeira entrega realizada em novembro de 2022, quando os estudos foram submetidos à análise do Tribunal de Contas da União (TCU). Essa análise foi concluída em abril de 2024.
O estudo também recebeu 285 contribuições da sociedade após a realização de consulta pública aberta em março deste ano e que durou 53 dias. No processo, o BNDES realizou estudo de impacto socioambiental e diligência técnico-operacional (engenharia) para atestar que os equipamentos têm condições de operar, tendo em vista a paralisação das obras da usina.
“Tendo o OK do CNPE, a gente licita no primeiro semestre do ano que vem, firma contrato no segundo semestre, e as obras começam no final do ano que vem, início de 2026. As obras levam cerca de cinco anos, então a previsão é que sejam concluídas no final de 2030, início de 2031”, afirma Raul Lycurgo, presidente da Eletronuclear.
O executivo alerta para os riscos de continuar adiando a conclusão das obras. Segundo ele, a corrida pela IA já começou em outros países, e investir em uma matriz elétrica confiável será decisivo para determinar o nível de competitividade do Brasil em relação a outras nações emergentes.
“A China tem 29 usinas em construção e quer ter 150 até 2035. A Índia está construindo em torno de 27. São investimentos de longuíssimo prazo, mas que precisam começar hoje. A Amazon está pensando em energia para 2040. As empresas de data center vão procurar países que já tenham infraestrutura. E aí o ambiente vai estar propício para quem? Se queremos nos tornar um porto seguro para esses investimentos, o trabalho tem que começar agora”, provoca.