O open delivery surgiu para levar mais eficiência e produtividade na operação de delivery de bares e restaurantes. A lógica é parecida com a do open banking: padronizar e compartilhar informações entre restaurantes, canais de venda (apps e marketplaces) e sistemas de gestão para simplificar a comunicação, reduzir gastos e ampliar a concorrência das plataformas que operam no mercado.
Encabeçado pela Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes), o projeto é apoiado pela Matera, empresa de tecnologia com foco em soluções e produtos financeiros, e a Afrac (Associação Brasileira de Automação para o Comércio). “O open delivery não é software, não é plataforma, não é site. É apenas um documento que descreve o formato padrão para operar no setor”, explica Carlos Netto, diretor-executivo da Matera.
Para tirar o projeto do papel, o open delivery recebeu R$ 3,3 milhões repartidos igualmente entre 16 grandes empresas, incluindo Via, Alelo, Ambev, Rede (do Itaú), Mercado Pago e Getnet. Além disso, contou com a ajuda dos principais apps de delivery do mercado, incluindo iFood, Uber Eats (que encerrará as operações no Brasil em março) e Rappi, que participaram das reuniões de desenvolvimento e indicaram técnicos e profissionais especializados para a iniciativa.
Ao longo do último ano, os atores criaram uma documentação técnica para os players do setor que queiram, voluntariamente, aderir ao padrão único e aberto de programação. A Abrasel estima que, com a redução das ineficiências operacionais, o open delivery traga ganhos de 20% a 30% na rentabilidade histórica do setor de entrega de refeições.
Quem se beneficia
“Existe uma grande dificuldade para fazer a integração de sistemas”, afirma Miguel Neto, diretor-executivo da plataforma Quero Delivery. Estes entraves técnicos geram complexidades para negócios que querem operar através das plataformas de delivery. Um restaurante que queira aderir ao iFood, por exemplo, tem que cadastrar dados como o nome do estabelecimento, dados de contato, CNPJ, endereço, especialidades, itens e valores do cardápio. Se este negócio também quiser entrar no Rappi, na Quero Delivery ou em qualquer outro app, precisa repetir o processo para cada uma das plataformas.
“Cada canal de venda usa um padrão diferente, tornando bem complicado para o restaurante se conectar a muitos deles ao mesmo tempo. Os softwares aderentes ao open delivery trazem vantagens de operação relevantes: o estabelecimento publica uma única vez o cardápio [incluindo itens, preços e promoções] e, a qualquer alteração, todos os parceiros recebem”, escreve a Abrasel na página oficial do projeto.
Segundo a associação, além de facilitar a vida dos restaurantes, o projeto também beneficia as plataformas originadoras de pedidos. Com a integração promovida pelo open delivery, é esperado que muito mais restaurantes buscarão apps e marketplaces para vender seus produtos. “Ao padronizar e organizar o modo como os restaurantes publicam, administram e personalizam seus cardápios, o open delivery abre as portas para um ganho de escala e aceleração da sua plataforma, que pode se conectar de modo muito mais fácil e ágil a um número maior de estabelecimentos”, afirma a associação.
Do outro lado da parceria, estão os softwares de gestão ERP, PDV (ponto de venda) e maquininhas. Com base nos padrões estabelecidos, estes entes permitirão que o restaurante administre suas publicações e personalize o cardápio em todos os marketplaces do mercado que adotaram o open delivery.
Para explicar essa situação, Célio Salles, que além de conselheiro da Abrasel é franqueado da Bob’s em Santa Catarina, cita a rede de fast-food como exemplo do open delivery em prática. “O pedido do iFood aparece em uma tela. O do Rappi, em outra e do próprio delivery Bob’s, em uma 3ª aba. Com o open delivery, além da publicação de cardápio padronizada, existe o recebimento de pedido padronizado”, diz o executivo. A proposta é criar uma conexão com diversos marketplaces em uma única tela e com uma única integração.
Fechando o quarteto fantástico estão os operadores logísticos. A integração dos serviços de entrega e logística ao open delivery visa facilitar a conexão com um número maior de restaurantes. “[Trata-se de] um padrão de acionamento, chamado de rastreabilidade de entrega”, diz Célio. De acordo com a Abrasel, o novo padrão garantirá chamadas imediatas, visíveis para todos na cadeia de delivery envolvidos naquela entrega. “Restaurantes, marketplaces, consumidores e entregadores terão rastreabilidade do pedido em tempo real e acompanhamento do status do pedido”, escreve a associação.
Livre concorrência
Segundo Miguel Neto, a Quero Delivery já tem planos de aderir à padronização, com a expectativa de aumentar o número de parceiros cadastrados na plataforma. “Ainda temos que desenvolver alguns códigos e sistemas para entrar nesse padrão, e já estamos trabalhando nisso”, afirma. Quem também enxerga o projeto com bons olhos é Rogério Nogueira, cofundador do AppJusto, criado para oferecer taxas e regras mais justas para entregadores e restaurantes.
“O AppJusto nasceu como uma alternativa ao monopólio”, afirma Rogério. “Apoiamos o open delivery, porque um protocolo padronizado derruba a barreira da tecnologia e da rede, facilita a entrada de outros players e traz mais concorrência e equilíbrio para o setor”, completa.
De acordo com Vitor Magnani, presidente da ABO2O (Associação Brasileira Online to Offline), esse é um projeto interessante para a maioria dos atores envolvidos. “Para quem quer entrar no segmento de entrega de refeições, fazer isso já tendo um banco de dados, cardápio e informações padronizadas é muito mais interessante. É bom para o setor privado como um todo, porque amplia a possibilidade de outros players entrarem na jogada”, explica, acrescentando que o projeto também é interessante para o consumidor final, já que, com mais negócios ofertando um mesmo produto, a tendência é o preço e as taxas abaixarem.
Com mais concorrência, as plataformas terão que criar estratégias para se destacar. A Quero Delivery aposta na humanização. “Nascemos no interior [em Sergipe], uma região que valoriza muito o atendimento próximo. Sempre que pensamos em uma expansão, trabalhamos com representantes que conhecem os estabelecimentos e a cidade onde vamos entrar”, afirma, acrescentando que os restaurantes e supermercados parceiros da Quero recebem uma comissão maior do que as concorrentes para operar.
Para Rogério, do AppJusto, o diferencial são os valores. “Os restaurantes e entregadores são muito desvalorizados no mercado de entrega de refeição”, afirma o diretor. “No AppJusto, além de taxas mais amigáveis para os estabelecimentos, um entregador que trabalha conosco recebe em méida R$ 11,26 por corrida, que é o dobro do que em outras plataformas.”
Assim como a Quero, o AppJusto está trabalhando para adequar suas APIs ao protocolo e, para isso, pretende investir no time de tecnologia. Essa expansão será impulsionada por uma rodada de financiamento coletivo, aberta neste momento pela plataforma de equity crowdfunding Kria. “Quando tivermos esses recursos, nos adequar ao open delivery é, com certeza, uma das coisas que faremos em 2022”, diz o executivo.
Quem pode sair perdendo
Com maior incentivo à livre concorrência, quem pode sair perdendo nessa história é o iFood, líder do setor com mais de 80% do mercado de delivery de restaurantes. Mesmo assim, a foodtech aceitou o convite da Abrasel para participar do conselho de governança do Open Delivery.
“Fizemos reuniões e grupos de trabalho, e os representantes do iFood deram dicas sobre como fazer o cardápio, a operação dos restaurantes e o que teria que ser aperfeiçoa”, diz Carlos Netto, da Matera. “O iFood podia ser contra, atrapalhar, mas nos ajudou a desenvolver o projeto. Uma postura moderna de não ficar negando a mudança e a inovação”, considera o executivo.
Alguns especialistas questionam o real motivo por trás da contribuição do iFood no projeto. “Se você não está lá para observar o que está acontecendo, acaba perdendo informações importantes para a tomada de decisão. O apoio do iFood não significa necessariamente que ele quer que o projeto seja um sucesso. É mais no sentido de ‘será que isso vai dar certo? E se der, o que eu vou fazer?’”, diz um especialista do setor ouvido pelo Startups, mas que preferiu não se identificar.
A concentração da foodtech deve ficar ainda maior com a saída do Uber Eats, já que os restaurantes do Uber provavelmente vão migrar para o iFood, onde há mais consumidores, e os usuários também, pela maior oferta de estabelecimentos. “O fim do serviço de entrega de comida do Uber escancarou o monopólio [do iFood] e mostrou o quão nociva é essa prática”, afirma Rogério Nogueira, do AppJusto.
A principal crítica ao iFood é em relação aos contratos de exclusividade firmados entre a empresa e os restaurantes. No ano passsado, o Uber Eats entrou com uma representação no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) para entrar no processo contra o iFood, ao lado do Rappi e da Abrasel. As empresas apontam práticas anticompetitivas nos contratos de exclusividade, já que eles impedem os restaurantes de se unirem a outras plataformas.
Em março de 2021, o Cade impôs uma medida preventiva contra o iFood, proibindo a companhia de firmar novos acordos de exclusividade. “Se o restaurante tem um contrato de exclusividade, não vai entrar no open delivery, porque estaria competindo com essa parceria. Mas o open delivery por si só não tem o poder de acabar com essa prática”, disse uma das fontes ouvidas pela reportagem. A medida preventiva do Cade definiu que o iFood poderá manter os contratos que já haviam sido firmados com parte dos restaurantes da sua carteira.
Segundo Célio Salles, da Abrasel, apesar das discussões entre a associação e o iFood em torno dos contratos de exclusividade, existe “um grande respeito” entre as duas organizações. “Convidamos a startup para participar do open delivery e ela nos ajudou mesmo que não fosse benéfico [para seus negócios]. Ainda assim, o iFood não tem nenhum compromisso [em aderir ao projeto] e não há expectativas de que a empresa adote esses padrões.”
O Startups procurou o iFood para falar sobre a perspectiva da companhia sobre o open delivery. Em comunicado, a foodtech afirmou que “acompanhou desde o início o projeto da Abrasel como forma de fortalecer sua parceria com o setor organizado de bares e restaurantes”, mas que, até o momento, “não há nenhuma decisão sobre aderir ao protocolo”.
Na mira das varejistas
O open delivery vai facilitar a vida das grandes varejistas que querem iniciar ou expandir sua atuação em entrega de refeições. “Essas empresas terão que criar suas próprias plataformas ao invés de usar a de terceiros, mas vão economizar o trabalho de visitar cada restaurante para integrar em seu sistema”, afirma Carlos Netto, da Matera. “Não conheço nada mais rápido do que o open delivery para que um novato no setor consiga oferecer um monte de restaurantes já no dia do lançamento do app”, completa.
A Magalu já começou a se mexer. Em setembro de 2020, ela comprou a startup de delivery de comida AiQFome, que na época atendia 350 cidades com uma plataforma de 2 milhões de clientes e 17 mil restaurantes, movimentando cerca de R$ 700 milhões por ano. No ano passado, integrou o app de delivery de refeições ToNoLucro, a plataforma de digitalização de restaurantes GrandChef e o aplicativo Plus Delivery.
O Mercado Livre tem uma categoria de supermercados com ofertas de grandes redes como Pão de Açúcar, Extra e Mambo. Assim como a Via, a companhia está em processo para lançar a própria plataforma de delivery. No ano passado, a Americanas lançou o Americanas Delivery, um mini app dentro da plataforma principal que promete entregas de itens de supermercados e restaurantes em até meia hora.
Por que vale a pena entrar nesse segmento? “Pedir comida gera tráfego e recorrência de visitas na plataforma”, diz Carlos. “Ninguém compra geladeira, fogão ou celular todos os dias, mas muita gente compra comida toda semana. O usuário vai usar o app mais vezes e na hora de pedir um hambúrguer também verá uma nova geladeira em oferta”, completa.
Segundo Célio Salles, da Abrasel, dos 5 maiores e-commerces do Brasil – Mercado Livre, Americanas, Magalu, Via e Amazon – apenas a norte-americana não declarou se vai aderir ao open delivery. “Queremos fazer com que esses grandes players tenham muito mais velocidade de conexão e facilidade de entrada no mercado de restaurantes”, diz o executivo. Como gigantes do varejo, essas empresas entram no setor com a vantagem de, além de recursos financeiros, já terem uma base de clientes consolidada.
Além das varejistas, Carlos destaca vantagens para outros atores da economia, com um foco especial para as instituições financeiras (muitas delas são clientes da Matera). “Oferecer conta digital grátis não é mais novidade. Agora, o banco poderá entrar no segmento de delivery e, quem sabe, oferecer um hambúrguer com desconto para quem fizer a compra direto do seu aplicativo”, afirma. “O interesse da Matera [no open delivery] é ajudar a sociedade, mas também os nossos clientes, que poderão originar pedidos de comida para gerar fluxo, utilização e valor na companhia”, completa Carlos.
Regulamentação
Diferente do Open Banking, que funciona sob a regulação do BC (Banco Central), com possibilidade de multas e punições para quem descumpra as regras do projeto, o open delivery não tem um respaldo regulatório. “O open banking é uma iniciativa do poder público e o open delivery, do privado. Por isso, a iniciativa da Abrasel pode ser considerada uma autoregulação entre as empresas participantes, como se fosse um colegiado”, explica Vitor Magnani, da ABO2O.
Os diferentes participantes do open delivery não enxergam isso como um problema. “O open banking e o Pix foram uma inspiração, mas são soluções compulsórias [o BC determinou que bancos com mais de 500 mil contas são obrigados a oferecer o Pix aos seus clientes]. Já o open delivery é uma solução voluntária, adere quem quiser”, afirma Célio, da Abrasel. “Além disso, o open delivery é uma iniciativa coletiva. Como associação, não nos cabe e não temos nenhum poder [de impôr uma regulamentação]”, completa.
Questionado se a falta de regulação pode ser algo negativo, o executivo considera que não. “Somos absolutamente a favor do mercado aberto e livre. A Abrasel não busca intervenção, com exceção do combate a práticas competitivas, que não está na esfera do open delivery.”
Carlos, da Matera, afirma que “é bom não ter uma entidade [reguladora] agora. Tendo concorrência, os restaurantes vão trabalhar bem. A Abrasel já se posiciona contra práticas anti-copetitivas e se limita a definir os padrões do projeto. Tirando esse protocolo, não tem [mais nada]: cada um pode estabelecer os seus preços e taxas. É tudo bem livre”, afirma.
“O que vem primeiro, a lei ou a necessidade das pessoas?”, questiona Rogério, do AppJusto. “São as demandas da sociedade que pressionam os órgãos a criarem regras melhores, e não o contrário. Seria um erro começar o projeto com uma regulamentação antes de ver como isso funciona no mercado”. Ainda assim, ele reconhece que “se houver falhas e seja necessário, talvez seja o caso de regular.”
O que falta ser feito
Os testes do open delivery começaram em setembro do ano passado com algumas empresas de softwares para detectar possíveis instabilidades. A Abrasel prevê que 79 delas concluam os testes do padrão até o fim de fevereiro. A meta para o ano é ter 150 mil restaurantes usando softwares aderentes ao open delivery – algo que, segundo Célio Salles, não será muito difícil de se alcançar. “Já temos 40 mil”, diz o executivo.
O primeiro teste prático do open delivery foi feito pela Confeitaria Colombo em dezembro do ano passado. “A ideia era começar com uma empresa tradicional”, explica Carlos Netto, da Matera. O estabelecimento foi fundado em 1894, no centro do Rio de Janeiro, e tombado como patrimônio cultural da cidade pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultura (INEPAC). A operação incluiu a padronização de cardápio e gestão de pedidos da confeitaria carioca.
Segundo o diretor da Matera, os próximos passos são continuar trazendo aplicativos e marketplaces para o projeto. Célio acrescenta que a Abrasel vai trabalhar para seguir divulgando o open delivery para as empresas de software, os originadores de pedido e players de logística. “Queremos fazer uma operação completa, envolvendo a entrega da refeição e, em poucos meses, ter 3 grandes apps trabalhando com os nossos padrões”, pontua. A associação prevê fechar o ano com 25% das transações do setor acontecendo no padrão aberto.