Desde o surgimento da pandemia, empresas de todos os tamanhos e segmentos se depararam com novos e grandes desafios. Para além da rotina usual do trabalho, profissionais precisaram encarar o adoecimento físico, perdas financeiras e luto, além de outros impactos decorrentes da crise. Em meio a tudo isso, foi preciso “equilibrar os pratinhos” para continuar entregando resultados no trabalho, e isso também se aplica a startups.
Mas, como diz a música, não está sendo fácil. Segundo uma pesquisa sobre saúde mental no trabalho da HRtech Think Work conduzida entre janeiro e fevereiro deste ano com 223 profissionais, 66% disseram se sentir mais cansados em comparação a antes da pandemia, 65% estão mais ansiosos, 61% estão mais estressados e 61% tiveram uma percepção de envelhecimento acelerado nos últimos dois anos.
Ainda segundo o estudo, 54% dos participantes consideram que seu trabalho gera um nível de estresse alto, mas que conseguem administrar isso, enquanto 20% relataram estar excessivamente estressados por conta de sua ocupação, a ponto de ter a saúde prejudicada. O estudo reitera o risco de esgotamento mental no trabalho, o burnout, que se tornou uma doença ocupacional este ano.
Por outro lado, os efeitos destes problemas para os empregadores também são devastadores: a perda cumulativa global de produção econômica associada a transtornos mentais entre 2011 e 2030 é projetada em US$ 16,3 trilhões, segundo a Organização Mundial da Saúde. A pesquisa da Think Work confirma o impacto nos negócios causada pela deterioração na saúde mental das pessoas: participantes relataram uma queda de produtividade no trabalho de pelo menos 50% nos últimos três meses.
Como esta nova realidade se reflete em empregadores do ecossistema de inovação? O Startups fez uma pesquisa com sua audiência para saber se as novas empresas baseadas em tecnologia estão fazendo um melhor trabalho que empresas tradicionais em manter seus ambientes menos nocivos para as pessoas.
De acordo com o levantamento com 267 respondentes, 40% acham que startups são melhores em cuidar da saúde mental de colaboradores, enquanto 36% acreditam que elas são um pouco melhores neste quesito, e 24% acham que startups são tão ruins quanto ambientes de trabalho tradicionais.
Os riscos da cultura de startups
No entanto, a percepção de que o ambiente das startups é superior no quesito saúde mental dos colaboradores pode ser equivocada, diz Ana Carolina Peuker, PhD em psicologia e cofundadora da Beetouch, startup que desenvolve tecnologia de avaliação psicológica para empresas.
“A atmosfera [das startups] é permeada por uma percepção de que tudo é fora do padrão convencional e ‘cool’, mas, por outro lado, pode essa cultura pode ser altamente tóxica do ponto de vista psicológico”, diz a especialista. “Na verdade, ninguém é super-herói.”
O adoecimento entre profissionais que atuam em startups é inevitável quando pessoas tentam “não ser humanas” por muito tempo, assumindo demandas abusivas, esquecendo de dedicar tempo à família e ao relaxamento, além do afastamento de valores fundamentais. “Tem coisas que são inegociáveis e a saúde mental é uma delas. O adoecimento pode se originar desta perda de limites”, ressalta Ana Carolina.
Os números evidenciam que a questão é latente no ecossistema. Outra pesquisa, feita a pedido do Startups pelo Festa da Firma, perfil de memes corporativos no Instagram, investigou opiniões sobre o tema de saúde mental.
Dos cerca de 4mil respondentes que disseram trabalhar em startups, 55% disseram que não tem acesso a iniciativas voltadas à saúde mental no trabalho, e 85% gostariam que seus empregadores dessem mais atenção a esta área, enquanto 67% afirmaram que sua saúde mental está sendo afetada por conta do trabalho.
Na caixinha de respostas da pesquisa, profissionais falaram sobre o efeito do trabalho no bem estar psicológico. “É tudo para ontem e a saúde mental fica para depois”, disse um dos respondentes. “Foi trabalhar em uma startup que destruiu minha saúde mental”, desabafou outro.
Respostas também mostraram que, se por um lado a agilidade e liberdade para atuar são valorizadas, a falta de diretrizes claras, além de muitas cobranças e constantes mudanças, podem gerar efeitos negativos.
Segundo Ana Carolina, cuja empresa também atende startups, existem aspectos do próprio ambiente de trabalho que podem contribuir para o adoecimento, como os fatores psicossociais. Estes fatores definem como ocorre a interação entre o profissional, o trabalho e o contexto de vida no qual está inserido, e incluem o espaço de trabalho, colegas, líderes e clientes.
“Esses fatores produzem impacto direto na saúde emocional e se relacionam com a saúde mental e física”, ressalta a psicóloga, se referindo a cobranças em relação à resultados e exigências de performance, horas extra em excesso, falta de equilíbrio entre vida pessoal e trabalho, entre outros.
Para ilustrar sua fala, a psicóloga comenta sobre uma aproximação recente entre a Beetouch e uma fintech. A especialista pontua que este é um exemplo de segmento bastante vulnerável ao estresse, pois envolve pressão por resultados, lucros, responsabilidade, produtividade e uma gestão infalível de tempo.
“Em geral, pessoas que atuam nessa área correm contra o relógio e, inclusive, desafiam os padrões humanos de sono-vigília ao trabalhar em torno de 20h por dia”, pontua, acrescentando que o setor tende a atrair pessoas “altamente exigentes, autocríticas, metódicas e proativas.”
“Somado a isso, há todo um contexto econômico e social defasado, pressão, privação de sono e sobrecarga de trabalho: temos aí uma receita infalível para problemas de ansiedade, depressão e outros transtornos psicológicos, como o uso de álcool e outras drogas e medicamentos,” ressalta.
Equacionando demandas
Por outro lado, algumas empresas se movimentam para mitigar os efeitos negativos para a saúde mental dos colaboradores e o tema vem ganhando importância no meio. “Vejo o ecossistema muito mais preocupado com isso. Saúde mental é uma questão de negócios: não é mais algo nice to have [algo que seria bom ter], mas sim um tema obrigatório”, diz Priscila Siqueira, CEO Brasil na Gympass.
Respondendo ao aumento na demanda de empresas por formas de apoiar o cuidado a colaboradores, a startup testou um produto de terapia online no ano passado com clientes e seus próprios funcionários, que não precisam pagar valores adicionais pelas sessões. A oferta agora está sendo lançada no Brasil e deve ser expandida para outros países em que o unicórnio está presente.
Políticas internas da empresa nesse sentido também incluem o incentivo à prática de atividade física, que a empresa entende ser um grande impulsionador do bem-estar emocional, além de frequentes palestras sobre o tema e práticas de mindfulness antes de reuniões. “Obrigatoriamente, precisamos transformar o bem-estar dentro de casa para poder fazer isso fora: é um valor muito forte na organização”, diz Priscila.
No entanto, a executiva aponta que certos aspectos do trabalho em startups são inevitáveis. Isso significa que é preciso encontrar formas de equacionar a natureza do negócio com a necessidade de proteger a saúde mental das pessoas.
“Temos um ritmo intenso de trabalho e todos os problemas de qualquer outra startup, mas no final do dia acho que o segredo é [a empresa oferecer] possibilidades para que colaboradores consigam organizar sua vida pessoal e profissional”, ressalta Priscila.
A executiva acrescenta que a Gympass também incentiva um ambiente em que as pessoas podem falar quando estão sobrecarregadas, o que ajuda da priorização das tarefas, com dias de folga depois de ciclos intensos como fechamentos de trimestre.
“Não temos uma cultura de que a gente só trabalha quatro dias por semana, mas a gente vai se organizando e se equilibrando: a flexibilidade é muito importante nesse sentido. Somos muito cuidadosos em garantir que ninguém está estourando”, diz Priscila.
A CEO da Gympass no Brasil ressalta que, além do auto-gerenciamento de equipes, o exemplo do líder é crucial em criar um clima de segurança psicológica em empresas, especialmente entre públicos como mães, que tem sofrido durante a pandemia com jornadas duplas de trabalho.
“Às segundas e quartas-feiras vou buscar minha filha na escola às 18h e se eu precisar trabalhar depois, fico disponível até as 20h, no máximo, e deixo claro que coisas assim fazem parte do nosso dia a dia”, diz Priscila. “Quando as pessoas entendem que isso não é um problema e que podem fazer suas coisas de forma tranquila, se libertam da culpa de que podem estar atrapalhando algo ou alguém.”
Na Beetouch, a flexibilidade também é palavra de ordem, para evitar a desmotivação, queda de produtividade e afastamentos desnecessários. Além disso, a empresa não pede que colaboradores trabalhem em feriados e finais de semana.
“Nosso time tem autonomia e trabalha com base em responsabilidades e entregas, não horários rígidos. Buscamos estabelecer relações muito humanas, onde há feedbacks construtivos e confiança para expor sentimentos e percepções”, diz Ana Carolina.
Criando uma cultura de saúde mental
Olhando para a evolução da discussão sobre saúde mental no ecossistema, Priscila, da Gympass, diz que há uma mudança de mentalidade em curso também por conta de uma mudança geracional. Apesar de ser workaholic assumida, a CEO diz que esse não é um estilo de vida que a Geração Z (pessoas nascidas a partir de 1995) assina embaixo.
“Minha geração é a que falava que [trabalhar até a exaustão] era super bonito, mas para a nova geração isso não é verdade. São eles que estão no ambiente de trabalho hoje e [gestores] precisam entender isso de uma vez por todas. Eu mesma adoro esta mudança, pois leva a um aprendizado e a olhar as coisas por um ângulo diferente”, diz a executiva.
Segundo Ana Carolina, da Beetouch, a pandemia colocou uma lente de aumento em problemas que sempre existiram e não eram manejados de forma apropriada. “Todos nós tivemos que encarar a crueza da vida, não tivemos como fugir de nossa própria humanidade”, ressalta. Ela acrescenta que que muitos gestores buscaram soluções paliativas para estas questões, mas é impossível tampar o sol com a peneira no que se refere à saúde mental em startups.
Rumo a uma abordagem mais sustentável em relação ao tema, Ana Carolina concorda com Priscila, e reforça que é preciso promover uma cultura de saúde mental, de forma sistêmica e duradoura. “[A construção desta cultura] passa por ações estratégicas e de políticas organizacionais voltadas a esse fim.”
“A saúde mental é um fator relacionado ao desenvolvimento global importantíssimo e tem sido cada vez mais atrelada às diretrizes de ESG e ao conceito de sustentabilidade humana”, pontua a especialista. “Sem pessoas saudáveis – física e mentalmente – não haverá progresso, e ficaremos estagnados diante de tantos desafios globais.”