“Quem vai lavar a louça se você quer montar um banco?” Essa pergunta foi direcionada a Ingrid Barth, co-fundadora da PilotIn e ex-presidente da Abstartups, após uma reunião com uma instituição financeira na época da fundação da sua primeira startup, a Linker – vendida para a Omie em 2021. A situação ilustra algumas das dificuldades que as empreendedoras enfrentam na hora de captar recursos. Apesar de casos de machismo escancarado como esse não serem mais tão comuns, números mostram que a desigualdade no acesso a capital ainda é uma barreira significativa para as mulheres.
De acordo com o relatório “US All In: Female Founders in the VC Ecosystem”, do PitchBook, menos de 20% do total investido nos Estados Unidos em 2024 foi direcionado a startups fundadas por mulheres. O número de rodadas com empreendedoras à frente caiu pelo terceiro ano consecutivo, atingindo o nível mais baixo desde 2018, embora ainda represente mais de 25% do total.
No Brasil, startups fundadas exclusivamente por mulheres receberam apenas 0,04% do total aportado em 2020, de acordo com o “Female Founders Report 2021”, estudo elaborado pelo Distrito em parceria com a Endeavor e a B2Mamy. Levantamento realizado pelo Startups no ano passado mostrou que as startups com mulheres entre os fundadores recebiam menos de 12% dos investimentos das maiores gestoras de VC do país.
A presença feminina no ecossistema também é limitada: apenas 19,2% dos fundadores são mulheres, segundo o Mapeamento do Ecossistema Brasileiro de Startups 2024, divulgado pela Abstartups.
Referências femininas
Há 26 anos nesse mercado, Priscila Rodrigues, atual presidente da Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCAP) prefere ver o copo meio cheio e comemora uma conquista importante: o aumento da representatividade. “Quando eu cheguei nessa indústria, eu olhava para cima e tinha poucas referências femininas. Não existiam donas de gestoras e eu me perguntava se esse lugar era para mim. Hoje, eu olho para o lado e vejo outras mulheres. A evolução é lenta porque é cultural e geracional, mas acho que temos avançado muito”, diz.
São essas histórias que o Startups vai contar neste 8 de março, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. O ponto em comum entre as fundadoras que conseguiram superar as barreiras, levantar investimentos e chegar até o exit? Resiliência e confiança.
“Eu tenho um foco, que é ganhar dinheiro, ter sucesso. Eu amo o que eu faço e quero que as minhas empresas se deem bem. Todo o resto não importa”, conta Ingrid Barth, que ao relembrar o episódio da reunião na qual ouviu um comentário sexista, explica que tem uma característica a seu favor: “Eu sou neurodivergente, sou meio distraída. Às vezes não percebo se um homem está sendo machista de uma forma sutil, a ficha cai depois. É bom porque na hora aquilo não me abala”, diz.
Assim como Priscila, da ABVCAP, Ingrid diz ter sentido falta de referências femininas no início da sua carreira. Egressa do mercado financeiro, ela precisou aprender desde cedo a se posicionar como uma profissional respeitada e confiante, o que ajudou na sua trajetória como empreendedora.
“Tive que me tornar essa pessoa que fala e as pessoas confiam. Eu não sou uma mulher delicada, o que me ajuda a criar esse personagem, além de ser muito nerd e falar mais do que os homens”, ri.
Como second time founder, Ingrid decidiu criar sua nova startup, a PilotIn, que conta com outras duas mulheres entre os fundadores: Ana Gabriela Seincman (COO) e Ellen Gouveia (CTO). O CPO Rogerio Melfi completa o time, como “cota de diversidade”, brinca Ingrid. A fintech quer facilitar a oferta de crédito e produtos financeiros, por meio do Open Finance.
“As escolhas foram técnicas, não por uma questão de gênero. Mas essa é a prova de que quando se tem mulheres em cargos de liderança, naturalmente elas vão enxergar qualidades em outras mulheres”, aponta.
Para Priscila, é importante que as mulheres que alcançam cargos de liderança, seja como C-Levels ou fundadoras, tenham consciência do papel que exercem no incentivo para que outras mulheres sigam seus passos.
“Muitas vezes, em eventos, é comum que se veja mais homens porque as mulheres estão equilibrando pratos, se dividindo entre o trabalho e a família. E muitas vezes elas não gostam de aparecer mesmo. Mas é preciso fazer um esforço para ser essa referência. É a exposição que ajuda a quebrar os eventuais vieses que ainda existem”, diz.
Desafios e aprendizados
Além das dificuldades comuns a todos os fundadores, como a falta de experiência prévia ou a competitividade do mercado, as mulheres empreendedoras lidam com barreiras adicionais relacionadas à desigualdade de gênero, que impactam diretamente o acesso ao capital. Esses desafios se refletem tanto no processo de captação quanto nas atitudes dos investidores, o que exige das mulheres uma abordagem estratégica e persistente para garantir os recursos necessários para o crescimento de seus negócios.
“Conseguir financiamento foi desafiador, especialmente por dois fatores: o estigma em torno da saúde mental e a barreira de gênero no ecossistema de venture capital”, afirma Tatiana Pimenta, CEO e fundadora da Vittude. A startup, fundada em 2016, enfrentou um grande desconhecimento sobre saúde mental no ambiente corporativo, com investidores que não reconheciam a relevância e o potencial desse mercado, além de não compreenderem que saúde mental é um pilar essencial para produtividade e engajamento no trabalho.
Outro grande desafio foi acessar o mercado de venture capital sendo uma mulher fundadora, devido aos vieses inconscientes na forma como investidores fazem perguntas para empreendedores e empreendedoras. “Enquanto os homens frequentemente são questionados sobre oportunidades de crescimento, muitas mulheres recebem perguntas focadas em mitigação de riscos – o que já coloca suas empresas em uma posição desvantajosa na disputa por capital”, destaca Tatiana.
Uma publicação da Harvard Business Review revela que os investidores preferem pitchs feitos por homens em vez de mulheres, mesmo quando o conteúdo das apresentações é o mesmo. Durante a negociação, as perguntas feitas aos empresários em busca de capital geralmente abordam as vantagens e ganhos potenciais do negócio. Já as empreendedoras enfrentam uma abordagem mais preventiva, com foco nas perdas potenciais e na mitigação de riscos.
No Brasil, 72,4% das fundadoras que passaram pelo processo de captação de recursos afirmam ter sofrido assédio moral, principalmente relacionado a questões de gênero e maternidade, de acordo com o estudo “Female Founders 2021”. Mais de 60% das entrevistadas disseram já ter sido questionadas se “teriam condições” de conduzir o negócio, e 45,7% se conheciam termos técnicos básicos. Outras 14,2% revelaram ter sido perguntadas se havia um homem no board ou no quadro societário da empresa.
Mesmo com todos esses desafios, a Vittude se consolidou como referência no desenvolvimento e gestão de programas de saúde mental corporativa no Brasil, impactando mais de 3,5 milhões de vidas com suas soluções. Em 2022, a startup levantou uma rodada série A de R$ 35 milhões, liderada pela Crescera Capital, com a participação de Redpoint eVentures e Scale Up Ventures, da Endeavor. Desde então, cresceu de forma acelerada, mas com consistência e solidez. No início de 2025, a startup alcançou o breakeven e, atualmente, opera com um caixa saudável o suficiente para considerar movimentos estratégicos, incluindo possíveis aquisições.
Segundo Tatiana, o que deu muito certo no processo de captação foi a solidez dos fundamentos do negócio e a clareza na gestão financeira e estratégica. Por isso, ela considera fundamental que as empreendedoras dominem seus números e conheçam seu negócio melhor do que qualquer pessoa na mesa. “Venture capital é um jogo de gestão, estratégia e visão de longo prazo. Não basta ter uma boa ideia – é preciso ter fundamentos sólidos, tração comprovada e clareza sobre o caminho de crescimento da sua empresa”, explica.
Tatiana afirma que gostaria de ter aprendido mais cedo a confiar em sua experiência, intuição e capacidade como CEO. “O ecossistema ainda carrega muitos vieses, e mulheres empreendedoras frequentemente precisam provar sua competência de maneira desproporcional”, avalia. “Autoconfiança e autoestima são chaves para sustentar a liderança e tomar decisões estratégicas com segurança. No início, perdi tempo demais ouvindo a plateia, absorvendo questionamentos que, muitas vezes, não vinham de um lugar construtivo. Com o tempo, aprendi a filtrar melhor as opiniões, a confiar no que construí e a seguir em frente com convicção, independentemente das dúvidas externas”, avalia.
Marina Proença, fundadora da Mentora, conta que também enfrentou muitos julgamentos no início, ouvindo frequentemente questionamentos que desacreditavam seu projeto de inteligência artificial. “As pessoas me falavam: por que você? Por que você vai conseguir fazer isso e não uma estudante de alguma universidade americana, que já está envolvida com o setor e tem um histórico no Google?”, relembra.
A empreendedora relata ter enfrentado inseguranças ao longo do processo, chegando a sofrer com a síndrome do impostor, o que a levou a questionar sua própria capacidade e se sentir uma fraude. “Entrei na Mentora com a minha autoconcepção de competência muito diminuída. Isso atrapalhava as minhas negociações, e eu tive que me treinar a estar muito confiante, porque sabia que meu nível de confiança seria essencial para trazer pessoas para o negócio em um momento de tanta fragilidade do mercado de investimento”, completa.
A Mentora anunciou sua entrada no mercado em outubro de 2024, com a proposta de promover o desenvolvimento contínuo das lideranças, combinando tecnologia e suporte humano especializado. O lançamento veio acompanhado de um aporte pré-seed de R$ 1,5 milhão, liderado pela gestora DOMO.VC, com a participação de investidores-anjo, incluindo Guilherme Bonifácio e Eduardo Baer, cofundadores do iFood.
“Foi muito importante poder me abrir de forma vulnerável aos mentores e receber feedbacks específicos para o meu caso, em vez de conselhos genéricos. Entre uma mentoria genérica e uma específica, há um salto de qualidade disruptivo. E funcionou muito bem: consegui transmitir as mensagens que precisava de forma mais objetiva, tanto no processo de captação quanto na comunicação com os VCs”, finaliza.
Mônica Hauck, CEO e cofundadora da HRTech Sólides, compartilha que, ao enfrentar a resistência do mercado, ela foi desafiada a acreditar na sua visão e persistir em sua estratégia de focar em pequenas e médias empresas. Embora muitos duvidassem que esse nicho fosse uma aposta viável, Mônica sabia que estava resolvendo um problema real e persistiu. “Nenhum pitch matador sobrevive ao teste da verdade”, afirma, destacando que o mais importante é ter uma operação sólida, e não apenas uma apresentação atraente.
Ao longo de sua trajetória, o maior desafio foi ouvir inúmeros “nãos” e, ainda assim, não deixar que isso abalasse sua convicção. “O segredo é ter clareza sobre a sua tese e confiar nela”, conta. A Sólides levantou R$ 530 milhões em fevereiro de 2022 em uma rodada série B, com investimentos da gestora de private equity Warburg Pincus. Para Mônica, o segredo para superar os obstáculos é ter a certeza de que se está resolvendo um problema relevante e ter os números para comprovar isso. “Resiliência é essencial nesse processo”, afirma, destacando que o investimento é a consequência de uma execução bem feita.
Além da autoconfiança, da resiliência, da gestão disciplinada e de uma boa execução estratégica, Tatiana Pimenta, da Vittude, destaca a importância de escolher os investidores certos, utilizar o capital de maneira eficiente e ter métricas e fundamentos financeiros bem estruturados. “Se capacite, estude, refine seu pitch e siga ajustando sua estratégia. Negociação com investidores é um jogo de longo prazo – quem constrói com consistência e inteligência sempre chega lá. No fim das contas, fundadoras que dominam seu negócio, conhecem seus números e confiam em sua visão têm muito mais chances de captar investimento com os parceiros certos. Meu conselho é: prepare-se bem, escolha suas batalhas e vá com tudo”, conclui.
O outro lado da moeda
Embora o Brasil tenha suas particularidades em relação à captação de recursos, as empreendedoras nos Estados Unidos também enfrentam desafios semelhantes. Apesar de um mercado mais maduro e uma maior disponibilidade de capital, a desigualdade de gênero permanece uma barreira significativa.
Rebecca Fischer, cofundadora e Chief Strategy Officer da fintech Divibank, destaca que captar recursos fora do Brasil é um desafio, principalmente para um negócio voltado para PMEs, um mercado que possui características próprias e, muitas vezes, é menos compreendido por investidores estrangeiros. Segundo Rebecca, fintechs voltadas para PMEs enfrentam o desafio adicional de demonstrar escalabilidade e solidez em um segmento historicamente mais arriscado, o que torna o processo de captação ainda mais complexo.
Fundada em 2020, a Divibank captou R$ 20 milhões em seu primeiro ano de operação, em uma rodada liderada pelo fundo Better Tomorrow Ventures, com sede em São Francisco, na Califórnia. O investimento contou com a participação do Village Global, que tem como investidores nomes como Bill Gates, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg. A startup também recebeu apoio de MAYA Capital, Clocktower Ventures, Magma Partners, Gilgamesh Ventures, Rally Cap Ventures, Alumni Ventures Group e investidores-anjos como Sebastian Mejia, cofundador e presidente da Rappi.
Ao contrário de outras fundadoras, Rebecca afirma que não sentiu que ser mulher tenha prejudicado sua captação de recursos, já que os investidores com quem conversou estavam focados no retorno sobre os seus investimentos. No entanto, ela reconhece que, de fato, mulheres costumam ter mais dificuldade em se vender e acabam sendo mais conservadoras nas projeções, enquanto os homens tendem a ser mais agressivos. “Investidores querem ouvir uma grande visão e sentir sua ambição, e nós, mulheres, precisamos aumentar nossa capacidade de comunicar isso”, pontua.
Já Marina, da Mentora, se considera “calejada” pelas experiências que viveu. Ao perceber que determinado fundo é mais tradicional ou conservador, ela busca se adaptar ao perfil do investidor. “Faz parte do processo de venda saber com quem você está falando. Não sofri com isso [dificuldade de captar investimentos por ser mulher no ecossistema] porque já sabia que aquele fundo nunca havia feito uma iniciativa ou dificilmente investia em mulheres. Por isso, me adaptava. Afinal, estou no processo de venda e não vou deixar de conversar com aquele fundo por causa disso”, pontua.
Ainda assim, ela conta ter passado por uma situação de assédio ao longo de sua jornada. Marina conta que, apesar de estar com roupas discretas, durante uma reunião, um homem olhava diretamente para os seus seios. “Fiquei tão incomodada que olhei para baixo, pois cheguei a pensar que minha camisa estava aberta. Talvez, se fosse há alguns anos, teria sido ainda mais difícil. Você começa a se questionar: eu estou aqui para falar sobre trabalho e empreendedorismo, e tudo o que o cara consegue olhar são os meus seios?”, questiona.
Unindo forças
A opinião unânime entre as empreendedoras é que construir e fortalecer redes de apoio é essencial para que elas enfrentem os desafios da captação de investimento e da jornada como um todo. Conectar-se com outras fundadoras permite a troca de experiências, o compartilhamento de aprendizados e o acesso a oportunidades que muitas vezes não chegam a elas pelos canais tradicionais.
“A rede de apoio faz toda a diferença”, afirma Tatiana Pimenta, da Vittude. “Quando comecei a empreender, há nove anos, havia poucas mulheres com experiência no caminho que eu desejava seguir. Por isso, contei com a ajuda de fundadores homens, que compartilharam suas vivências, me deram feedbacks valiosos e me ensinaram a construir pitches mais eficazes”, conta.
Hoje, o número de mulheres é mais significativo. “Contar com investidoras como Carol Strobel, da Antler e Redpoint eventures, que sempre esteve disposta a ouvir e oferecer conselhos nos momentos críticos, foi fundamental. Além disso, conhecer Ana Fontes, da Rede Mulher Empreendedora (RME), logo no início da minha jornada, abriu muitas portas e foi essencial para eu chegar até aqui hoje”, diz Tatiana.
Para muitas empreendedoras, encontrar pessoas dispostas a compartilhar seus aprendizados e abrir portas ao longo da jornada tem sido determinante para o sucesso de seus negócios. Afinal, em um ecossistema ainda marcado por desigualdades de gênero, essas conexões são fundamentais para criar um ambiente mais inclusivo e favorável ao sucesso das mulheres no empreendedorismo.
Iniciativas focadas em mentorias e networking entre mulheres não só aumentam a visibilidade de startups lideradas por elas, como também facilitam o acesso a novos investimentos. Além disso, essas trocas permitem que elas compartilhem desafios comuns e descubram estratégias eficazes para superá-los.
“Captar não é fácil para ninguém. É uma jornada muito complexa. Mas as mulheres acabam tendo mais dificuldades para entrar no networking. A primeira dica é superar o medo e fazer networking mesmo assim, buscando aliados”, afirma Jaana Goeggel, General Partner do Sororitê Ventures.
A gestora de venture capital, inclusive, surgiu no ano passado para ajudar as mulheres a acessarem esse mercado. À frente de uma comunidade de investidoras-anjo, Jaana e a sócia Erica Fridman decidiram criar em 2024 um veículo de investimento com tese em diversidade de gênero. Foi lançado, assim, o Sororitê Fund 1, um fundo de R$ 25 milhões que irá investir em cerca de 22 startups fundadas e co-fundadas por mulheres.
“2024 foi um ano com notícias um pouco tristes para a Diversidade. Vimos empresas importantes despriorizando essa pauta. Mas também acho que, apesar disso tudo, a pauta foi marcada de alguma forma e o caminho foi aberto. Nós somos um fundo de VC gerenciado por duas mulheres, o que já é super raro, e surgimos desse movimento”, destaca Erica.