Parece difícil acreditar que um dia Jhenyffer Coutinho tenha duvidado da própria capacidade. Mas foi da insegurança em relação ao próprio nível de inglês que a impedia de concorrer a vagas, combinada a uma indignação com a quantidade de mulheres desempregadas – 6,5 milhões de brasileiras não tem um trabalho, e a taxa de desemprego entre elas é 35% superior a registrada entre homens, segundo dados do IBGE – que a empreendedora criou a Se Candidate, Mulher!, HRtech que capacita mulheres para se candidatarem a vagas de trabalho.
Desde que criou uma empresa do zero com base no discurso de empoderamento feminino no mercado de trabalho ao mesmo tempo que trabalhava em uma casa de família e estudava nos Estados Unidos, a fundadora de 29 anos de idade fez um progresso notável. No primeiro ano de funcionamento, a startup atingiu quase 3 mil usuárias, que pagam para usar a plataforma. Em sua operação B2B, a empresa atende nomes como Accenture, Volvo, Coca Cola, Ambev, além de startups como Nuvemshop e Creditas. A SCM diz ter preenchido 99% das vagas com as quais trabalhou junto a empresas, atingindo uma receita de quase meio milhão de reais.
Em um papo sincero com o Startups, Jhenyffer falou sobre sua trajetória empreendedora desde a infância em Viçosa (MG), machismo no ecossistema, a experiência na captação de investimentos e propósito. Confira, à seguir, os melhores momentos da conversa.
Startups: Como a sua infância e os valores que você cultivou desde cedo informaram a forma que você empreende?
Jhennyfer Coutinho: Minha infância diz muito sobre as características que eu tenho hoje. Apesar de ser uma criança na época, minha mãe sempre soube muito bem o que ela não queria para mim, e para meus irmãos [a mãe de Jhenyffer a teve aos 14 anos de idade, a irmã aos 16 e o irmão aos 18]. Acabei tendo uma interpretação um tanto quanto rígida das coisas: desde novinha, eu tinha que tirar notas altas na escola. Se eu não fosse bem na escola, não podia tomar sorvetinho, nem ir no aniversário do colega; mas se eu tirasse aquela nota, minha mãe movia mundos e fundos para que eu fizesse o que eu queria, por acreditar muito que a educação transformaria a minha vida e a dos meus irmãos.
Além de estudar muito, também sempre me envolvi muito com esportes: como meus pais não tinham muito tempo para cuidar de nós, davam um jeito de colocar a gente para fazer todo tipo de atividade da prefeitura no meio período depois da escola. Por conta disso tudo, sempre fui muito orientada a metas. E as características que eu tenho hoje, de liderança, de disciplina, de resiliência, foram desenvolvidas nesse período.
Minha vida era super simples, morávamos no segundo andar da casa dos meus avós paternos, pois meus pais não tinham recursos próprios para nos manter. Minha mãe parou de estudar na quarta série do ensino fundamental e só retomou os estudos mais tarde, quando fez supletivo, e depois faculdade. Muitas vezes, fui à aula com ela, ainda pequena, e vi as coisas mudando na vida da minha mãe. Ir para a universidade então se tornou mais que uma meta para mim: era um sonho de vida.
Costumo dizer que sou um monte de histórias erradas que deram certo. Sofri abuso sexual quando era muito nova, minha mãe me teve muito jovem e vim de uma escola de periferia, onde todo mundo falava que eu também seria mãe aos 14, que eu não iria conseguir passar na Federal, ou que não conseguiria ser forte por ter passado por episódios traumáticos na infância. Ouvi o tempo todo: você não pode, você não consegue, aqui não é lugar para você, você não vai. Só que eu sempre busquei ir na contramão: se alguém falava que eu não ia, eu respondia: eu vou, e ainda vou voltar para contar que fui. Isso também vinha de uma vontade de falar para as pessoas que eu consegui.
S: Você de fato entrou na Universidade Federal de Viçosa, onde estudou Administração. Como você desenvolveu sua trajetória profissional a partir da faculdade, e como entrou em contato com o ecossistema de startups?
JC: Quando entrei na faculdade, abracei o que via como a oportunidade da minha vida e fiz de tudo: empresa júnior, atlética, programa de iniciação científica e tudo o que passasse na minha frente. De manhã fazia estágio, à tarde fazia a iniciação e à noite frequentava as aulas. Quando me formei, já tinha uma bagagem boa para uma formanda, considerando tudo que eu que eu consegui absorver e os prêmios que eu consegui ganhar durante a faculdade.
Nesse ponto, teve uma questão de começar uma ruptura: durante todo o tempo de faculdade, ouvi que eu tinha um sangue empreendedor, essa coisa de não aceitar o que estava posto, de querer mudar as coisas. Mas lutei muito contra isso, porque empreender me remetia à instabilidade financeira, a vida que eu tive e que não queria ter nunca mais, tampouco proporcionar aos meus filhos. Já que não queria empreender, resolvi me envolver com instituições de empreendedorismo, e fui trabalhar no Sebrae, depois de passar num processo seletivo super concorrido.
O Sebrae foi uma escola: o que eu não aprendi na faculdade de administração aprendi por lá, pois tinha que atender oito empreendedores por dia e não sabia o que o empreendedor iria trazer.Foi lá me que capacitei em marketing, financeiro e me preparei para ser uma profissional generalista, mas que conseguisse atender as dores desses clientes que nos procuravam. Fiquei por lá dois anos, e no fim desta jornada, fazíamos missões para o CASE, trazendo pessoas de Minas Gerais para São Paulo. Numa destas idas e vindas, conheci a Associação Brasileira de Startups e recebi um convite para participar de um processo seletivo para gerir a área de pessoas e financeiro.
Este foi um segundo momento de decisão muito difícil para mim. Pedi demissão do Sebrae, uma instituição CLT, com os melhores benefícios possíveis. Minha família também tinha muito orgulho de falar que eu trabalhava lá. Explicar para minha mãe que eu estava pedindo demissão do Sebrae para receber menos, ser PJ e morar em São Paulo foi uma foi uma tarefa muito difícil. Mas eu senti que era o pulo que eu queria dar na minha vida: já sabia trabalhar com micro e pequenas empresas, já tinha atendido mais de 1,5 mil pessoas nesse período e queria atender startups, então fui trabalhar na ABStartups em 2018.
S: Como foi a mudança para São Paulo e essa virada de chave profissional, para focar em startups?
JC: Sempre fui uma pessoa de meter as caras sem medo de errar. Cheguei com muita energia e com o tempo, fui me deparando com a realidade do ecossistema, que é muito mais povoado por homens. Entrei para exercer uma liderança com 25 anos de idade, porque o meu histórico me trouxe até ali. Mas era difícil entenderem que eu estava ali liderar pessoas mais velhas e já chegar “botando banca”.
O começo também foi um pouco difícil em termos de adaptação. Afinal, eu era uma menina do interior, que nunca tinha saído de Viçosa para morar numa grande capital. Eu não tinha suporte financeiro, tinha um salário e era com ele que eu tinha que fazer as coisas acontecerem, não tinha a opção de voltar para trás. Precisei morar numa república mista, engolir muito sapo e aceitar coisas que hoje não aceitaria de maneira nenhuma.
Esse começo foi assim, me virando com o salário que eu tinha, comprando no mercado que fosse mais barato, me privando de sair e de outras coisas, muito com o foco de entregar o que eu vim para entregar, e também ter um aumento em breve. Eu tinha na minha mente que aquilo ia passar, que era uma fase. Também estava muito certa que estava fazendo alguma coisa direito e apesar de ter episódios que foram muito difíceis no ecossistema como um todo, tive lideranças, como o Rafael Ribeiro [ex-diretor executivo da ABStartups], que acreditavam muito no meu potencial. Eles me diziam: vai ser difícil pra caramba, tem o ônus, mas se tem alguém que vai dar conta, esse alguém é você.
Entrei na ABS sabendo que queria fazer uma transformação, no mínimo plantar uma semente em termos de gestão de pessoas e deixar um legado, que incluiu os maiores CASEs que já aconteceram até hoje. Só que foi uma jornada muito desafiadora – não em relação a instituição, mas ao ecossistema de forma geral. É difícil ter respeito enquanto liderança feminina. Vemos mulheres entregando 150% dos resultados, enquanto homens que entregam 60% do resultado tem muito mais visibilidade.
Estes anos foram uma jornada de muita realização e eu acho que a ABS me catapultou para um patamar que eu nem esperava tem termos de visibilidade nacional. Por outro lado, eu era uma das poucas lideranças femininas dentro do ecossistema de startups. Promover um CASE, sendo o evento do tamanho que é, com um time super enxuto, foi significativo. Especialmente considerando que a ABS até aquele momento ainda não estava prosperando tanto no sentido de conseguir tantos patrocinadores e mantenedores como tem hoje. Foi um período de desafio e realizações, ao mesmo tempo.
S: Como foi o processo de sair da ABStartups e a transição para o empreendedorismo?
JC: Cheguei muito perto de ter um colapso por conta de trabalhar quase 24 horas por dia, liderar e ter que dar a cara a bater num ecossistema que é predominantemente masculino. Então, hoje, olhando pra trás, meu pedido de demissão, que veio com um discurso na época de querer estudar inglês e morar fora para assumir o RH de uma startup de médio ou grande porte, também era um movimento inconsciente de fuga. Eu estava estafada, foram dois anos de um sprint muito forte. Foi uma decisão de carreira, mas eu também precisava refletir um pouco sobre a minha vida, estudar e depois voltar.
A semente da Se Candidate, Mulher! Nasceu desse momento: eu era essa mulher que não se candidatava. Fiz um checklist de todos os pré-requisitos para trabalhar nestas startups que eu almejavam, e sempre esbarrava na questão do inglês, que eu achava que tinha que ser super fluente por conta dos níveis de exigência que estabeleci para mim mesma.
Fui fazer um intercâmbio, mas a parte da história que pouca gente sabe é que eu não tinha condições financeiras para bancar algo assim durante muito tempo. E para mim, era vergonhoso falar que eu ia fazer um intercâmbio nas condições que eu fui fazer. Quem estava no Brasil via a parte que eu estava sendo representante de uma ONG lá, dando consultoria de RH e gestão de pessoas e tudo mais. Para eu me bancar nos Estados Unidos, vivi na casa de uma família americana, onde eu cuidava das três crianças durante o dia pra pagar minha hospedagem e a minha alimentação. Hoje, não tenho problema algum em abrir isso e percebo que me veriam com muito mais louvor se eu tivesse falado sobre.
Lá nos Estados Unidos, no início do meu intercâmbio, em março de 2020, recebi uma notícia do IBGE em uma newsletter, falando que 8,5 milhões de mulheres estavam desempregadas no Brasil e que esse número era 2 milhões superior à taxa de desemprego entre os homens. Isso me deu um estalo muito grande na minha cabeça, porque eu era essa mulher. Decidi então fazer o que eu queria que alguém tivesse feito pra mim, e dizer a essas mulheres que elas podem se candidatar sem ter todos os pré requisitos.
Comecei então a validar a SCM em Nova Iorque, trabalhando em casa de família, estudando, trabalhando na ONG, dormindo cerca de 4 horas por dia. Usufruí muito do conhecimento do meu host dad, que era vice presidente de um banco e da minha host mom, que era gerente de produto de uma grande instituição. Em dezembro de 2020, mesmo tendo um ano inteiro de intercâmbio, concluí que não dava mais para tocar a SCM em paralelo a todas as outras coisas, e decidi voltar com a intenção de me dedicar 100% à empresa.
S: Atualmente, como você evita que a questão do machismo no ecossistema cobre um pedágio muito alto na sua vida?
JC: Aprendi com meu marido, que luta boxe, e com toda minha vivência de esporte que se você tomar um soco, tem que dar um passo pra trás, pensar no que você vai fazer e dar um soco de volta. Se você reage imediatamente a um soco, vai perder a luta.
Como pessoa impulsiva e energética que sou, se eu ouvia alguma coisa, rebatia no mesmo tom e eu perdia totalmente a luta, saía como escandalosa. Num determinado momento, percebi que não dava para ficar revidando dessa forma e passei a me comunicar melhor dentro do ecossistema, inclusive a dar um passo pra trás, pensar muito bem no que ia acontecer, no que eu ia responder e responder num nível que não fosse agressivo, mas no nível que [homens] entendessem meu ponto e inclusive passassem a me chamar para as conversas.
A partir do momento que eu aprendi a ouvir o que estava acontecendo e observar as situações, pensando em formas mais estratégicas de me posicionar sobre as situações, passei a ser ouvida. Mas isso gera uma carga mental muito grande, porque, no final das contas, é lógico que se eu recebo algo super machista, quero revidar. E tem outras outras questões. Estou fechando uma rodada de investimento, e ficou evidente que reuniões são completamente diferentes quando eu levo um conselheiro ou investidor comigo, do que quando eu vou sozinha. Então, sim, dói pensar nisso.
Mas tenho meu objetivo para a Se Candidate muito claro, assim como os meus limites. Então, se para fechar uma rodada neste momento, eu precisar trazer um conselheiro para a reunião, vou fazer isso quantas vezes forem necessárias. Lógico que depois da reunião fico triste, quero deitar em posição fetal e chorar. Penso: e se ele não estivesse lá hoje, será que eu seria recebida daquela forma? Será que o deal seria fechado se um homem não tivesse falado sobre como ele acredita em mim e no que a Se Candidate está fazendo? Tem uma carga mental muito grande envolvida em tudo isso, e não é toda mulher que está disposta a jogar esse jogo.
S:Você está fechando uma rodada de investimento. Como tem sido passar por isso considerando a atual austeridade no mercado de venture capital e também o fato de que a SCM é uma empresa early-stage?
JC: Desde o início da Se Candidate, as pessoas da minha rede diziam que queriam investir, por acreditar muito no meu potencial e poder de execução. Só que justamente por ter um nome, me preocupava muito [o risco de] fechar um investimento na hora errada, e por isso optei por tocar a empresa no modelo de bootstrapping nos primeiros dois anos, por saber que eu podia aprender muita coisa e ser muito mais valorizada em uma mesa com o investidor se mostrasse resultado em termos de usuários, de indicadores financeiros. Mas isso só quem está dentro do ecossistema sabe. Muita gente entra em deals horrorosos no início porque não tem esse conhecimento, que quase sempre fica restrito ao investidor.
Por outro lado, considerando o que eu quero fazer em áreas como desenvolver a senioridade do time, vou precisar de um input adicional de capital para aumentar essa velocidade. Não foi uma decisão fácil para mim, mas mesmo sabendo das dificuldades enfrentadas por mulheres quando vão buscar investimento, do fato que as fintechs é que são favoritas dos investidores e tudo o mais, em dezembro tomamos essa decisão de abrir para capital externo.
Estando na reta final da captação, não acho que necessariamente passamos pelo inverno das startups. Claro, o risco fica mais calculado por parte do investidor, lógico que ele fica mais criterioso. Mas quem está entregando resultados e bons indicadores está indo contra a maré atual. O que o inverno das startups diz é: se sustente, tenha um caixa, traga receita e não dependa só de investimento.
Quem tinha bons indicadores, bons resultados, acabou conseguindo avançar em boas conversas de investimento. Meu conhecimento do mundo de startups ajudou muito na hora que a gente abriu as conversas com esses indicadores, ainda que eu ainda tenha tido muita dificuldade por causa de outras questões, como o viés de gênero.
Também patinei muito nos primeiros três meses de captação, por focar muito na questão do impacto, na quantidade de mulheres desempregadas e na necessidade de recolocá-las. Passei então a trazer resultados relacionados a faturamento, e resultados tanto em termos de vagas preenchidas quanto para as mulheres que usam a plataforma, além do fato que fiz tudo isso com um time enxuto de quatro pessoas. Eu dizia: se eu fiz tudo isso sem estrutura, sem capital, imagina na hora que tiver vocês junto? Foi aí que o jogo virou.
S: O que te faz sair da cama de manhã?
JC: A verdade é que é muito difícil ser mulher e empreender. Todo dia é um 7 a 1. Mas o que me motiva hoje é mudar a história não só de mulheres, mas de famílias inteiras ao recolocá-las no mercado de trabalho. Cada uma das mulheres que conta sua história ao ser recolocada me dá um gás enorme e me faz ter certeza que é por isso que a gente está nesse caminho.
Recolocamos no mercado pelo menos duas mulheres todos os dias, às vezes quatro ou mais. Todo dia eu sou alimentada por esse tipo de história. Já pensei em desistir, fico triste por vários motivos, mas acordo animada no dia seguinte. Acredito em negócios que possam gerar mudanças na vida de outras pessoas, e sou movida por isso.
Raio X – Jhenyffer Coutinho, CEO, Se Candidate, Mulher!
Um fim de semana ideal…É um fim de semana que eu não preciso trabalhar, porque provavelmente já trabalhei pra caraca a semana toda. No sábado, tomar um café da manhã ou brunch gostoso, com meu marido e meus amigos. Ir para a casa de um deles e continuar tomando café e pão de queijo, como uma boa mineira que sou. Beber à noite, rir demais, fofocar com todo mundo sobre as coisas estão acontecendo no ecossistema. No domingo, fazer minhas compras, organizar a minha rotina para a próxima semana, que com certeza será muito agitada.
Uma coisa simples, que está na sua bolsa, e você não vive sem: Carregador de celular – que aliás só uso quando a bateria do celular realmente acaba.
Um prato favorito: Comida japonesa: se eu pudesse, comeria todos os dias.
Um livro: Oportunidades disfarçadas: Histórias reais de empresas que transformaram problemas em grandes oportunidades, de Carlos Domingos.
Uma música: Unstoppable, de Sia.
Um lugar: Praia. Qualquer uma.
Uma mania, que você acha que não precisa largar: Querer resolver tudo. Tenho um excesso de proatividade. Desde organizar um churrasco até resolver um problema daqueles, eu sou a pessoa que apaga os incêndios.