O avanço dos sistemas de inteligência artificial inaugurou uma nova era no venture capital, que tem voltado sua atenção para startups com tecnologia proprietária e deep tech. Em meio a esse movimento, uma nova geração de fundadores mais técnicos tem começado a ganhar espaço, especialmente no Brasil. E, para eles, a matemática está no centro do negócio.
Um estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) divulgado no ano passado calcula que, na próxima década, os investimentos nas startups de base tecnológica profunda devem crescer 20 vezes na América Latina.
Nesta semana, Lars Frølund, membro do Conselho Europeu de Inovação, disse que o mercado de deep techs está florecendo, e que os aportes nessas empresas deixaram de ser “filantropia”, para se tornar “bons investimentos de equity”.
Para Pedro Sirotsky Melzer, fundador da Igah Ventures e vice-presidente da Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCAP), o ecossistema brasileiro está passando por uma transição e o país precisará investir em educação de base se quiser se tornar competitivo globalmente.
“O Brasil não tem um track record similar a países mais maduros, como Estados Unidos e Israel, em empreendedores voltados para produto, técnicos, com formação de desenvolvimento de tecnologia proprietária. O Brasil é um lugar que, pela sua escala e seus problemas em diferentes aspectos, existe um modelo em que se pega uma tecnologia aprovada e se aplica em diferentes setores. E isso por si só gera um empreendedorismo muito intenso, de grande dimensão. Por outro lado, agora que estamos com esse ecossistema estabelecido, a gente deveria buscar ser protagonista de tecnologias proprietárias e ser referência para o mundo”, avalia.
Segundo ele, a grande maioria das empresas brasileiras inovam pelo modelo de negócio, mas não necessariamente pela tecnologia. Isso pode estar relacionado ao baixo interesse dos alunos das escolas brasileiras em disciplinas ligadas ao STEM, sigla em inglês para Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática.
Dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) divulgados no final do ano passado mostram que menos de 50% dos alunos conseguiram nível mínimo de aprendizado em matemática e ciências.
De acordo com o levantamento, 27% dos alunos brasileiros alcançaram o nível 2 de proficiência em matemática, considerado o patamar mínimo de aprendizado, enquanto que a média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) na disciplina é 69%. Apenas 1% dos estudantes no Brasil conseguiram os níveis 5 ou 6, considerados os mais altos. A média da OCDE é de 9%.
Vilã ou aliada?
Para a maioria das crianças, a matemática era a grande vilã na escola. Mas para Bruno Costa, o que muitos consideravam complexo demais ou simplesmente chato, gerava fascínio. Uma forma de não apenas exercitar o raciocínio lógico e solucionar problemas entre números e equações, mas também de colocar em prática alguns de seus passatempos favoritos e gerar um impacto positivo na sociedade como um todo.
“Sou apaixonado por matemática – amor esse que começou por questões práticas. Comecei a fazer games ainda na infância e, com isso, surgiram problemas diversos que requeriam conhecimentos que eu não tinha. A matemática surgiu, então, como forma de resolver problemas reais”.
Natural de Marabá (PA), o jovem foi cativado pela possibilidade de criar alguma coisa apenas com o uso do computador e, desde então, já sabia que trabalharia no ramo. “Lembro da minha primeira aula de trigonometria, quando o professor explicou seno/cosseno e, em meio aos meus colegas entediados com o tema, fiquei arrepiado de tanta catarse ao entender finalmente como poderia relacionar a posição do mouse com a arma do personagem de um jogo que eu estava construindo”, conta.
No Ensino Médio, aprofundou esses conhecimentos ao participar de uma série de olimpíadas científicas de matemática, física e química, já flertando com a educação em exatas como possível carreira. Teve um canal de programação no YouTube, um site de exercícios e escolheu uma faculdade conhecida por sua dificuldade no vestibular focado em exatas e sua formação teórica profunda.
Quando jovem, entrou para o curso de Computação na Universidade Federal do Pará e, depois, mudou-se para o Rio de Janeiro para estudar no Instituto Militar de Engenharia. De lá, co-fundou a PaperX, plataforma de exercícios e avaliações online adquirida pela Descomplica em 2018.
Hoje, aos 30 anos, ele comanda a Abstra, startup que fundou em 2020 como uma plataforma de automação de processos de negócio com inteligência artficial e Python sem precisar contratar desenvolvedores. Com apenas dois anos de operação, o negócio recebeu um investimento seed de US$ 2,3 milhões, em uma rodada liderada pelo SoftBank com a participação dos fundos Alexia e Iporanga.
Fórmula para crescer
Quem também se apaixonou por matemática na infância foi Raony Rossetti, CEO da Melver, uma edtech voltada para a formação de profissionais para o mercado financeiro. Nascido no interior de São Paulo, ele cresceu ajudando o avô no ferro velho, ajudando a desmanchar peças. Aos poucos, percebeu que a lógica envolvida no processo tinha base matemática. Ao terminar a escola, decidiu estudar Engenharia Mecânica com especialização em Aeronáutica na USP.
“De lá fui para a Alemanha estudar Engenharia Aeroespacial em Bremen e de forma despretensiosa acabei conhecendo o mercado financeiro. Por gostar de números, aquilo fez muito sentido para mim. Comecei a pensar então em quantos anos eu teria que trabalhar como engenheiro para ganhar o que o pessoal ganhava no mercado financeiro e decidi fazer a transição. Fui para a XP quando o time ainda tinha cinco pessoas e a habilidade com exatas me fez crescer muito rápido na renda variável”, conta.
Na XP, Raony liderou também equipes da Rico e da Clear, e chegou a ser promovido a Chief Information Officer (CIO) em Nova York. Depois do IPO, ele entendeu que era hora de deixar a empresa e empreender. Com a experiência no mercado financeiro, Raony percebeu que o grande desafio era encontrar profissionais qualificados, e nasceu daí a ideia de fundar a Melver.
Por meio do desenvolvimento de tecnologia proprietária, ele criou uma solução white label que pode ser usada por outras companhias. Hoje, a plataforma é usada por clientes como a própria XP e a B3. “A matemática na escola é chata, ninguém entende a aplicabilidade daquilo. Quando o aluno vê a matemática na prática ela fica muito mais leve. Os números mudaram a minha vida. Hoje, mais de 60% do marketshare dos novos entrantes em assessorias de investimentos vêm da Melver“, comemora.
Matemática no centro
Para esses empreendedores, os fundadores nerds são a grande inspiração. “Sempre rejeitei o estereótipo de empreendedor brasileiro como um perfil puramente comercial ou de mercado financeiro. Meus heróis eram inventores, eu queria ser o próximo John Carmack”, afirma Bruno, citando o famoso programador de videogames estadunidense, pioneiro no desenvolvimento de gráficos 3D e um dos responsáveis por jogos como Wolfenstein e Doom, à frente da id Software.
“O conhecimento técnico profundo me permitiu ver o mundo de uma forma muito diferente e ter sempre ideias fora da caixa. Continuo sendo um entusiasta pelo ensino e aprendizado de matemática e incentivo esse aprofundamento para todos os empreendedores técnicos para usarem todo o seu potencial”, destaca Bruno.
Raphael Coelho, fundador e CEO da edtech TutorMundi, considera a bagagem técnica fundamental para o sucesso e diferencial competitivo para startups que desejam criar produtos de impacto e alta qualidade. “Há uma grande diferença entre as startups que recebem investimentos no Brasil e nos Estados Unidos”, afirma.
O executivo observa que os os primeiros unicórnios brasileiros, ou seja, as primeiras startups a alcançarem uma avaliação de mercado de US$ 1 bilhão no país, não são a criação de uma nova tecnologia por si só; pelo contrário, incorporam tecnologias já desenvolvidas em um novo produto ou serviço.
É o caso, por exemplo, de 99, Nubank, Arco Educação, Stone, Movile, iFood, Loggi, Gympass, QuintoAndar e Ebanx. “Historicamente, os brasileiros fazem o processo de montagem, e não de criação. Com isso, acabamos concluindo que não seria necessário ter um engenheiro ou um cientista por trás de uma startup, e sim pessoas boas em negócios. Mas isso não é verdade”, avalia Raphael.
Ao contrário do Brasil, o perfil dos fundadores de startups bilionárias nos Estados Unidos é, muitas vezes, formado por pessoas de bagagem técnica que apostam na criação e no desenvolvimento de novas tecnologias.
“Entre os vários unicórnios norte-americanos, é possível identificar diversas empresas cuja raiz é tecnológica e científica, o que inclui conhecimentos em física, química e matemática”, pontua Raphael. Como exemplos, ele cita a Microsoft, que cria um novo conceito de computador, com o desenvolvimento de novos software e novas tecnologias, e o Google, com sua tecnologia revolucionária de buscas na web.
Casos mais recentes são Sam Altman e Mira Murati, respectivamente CEO e CTO da OpenAI, criadora do software de IA generativa ChatGPT. “A engenharia e, mais especificamente, a matemática, é fundamental para uma startup. A matemática ensina o profissional a aplicar a lógica e o raciocínio para descobrir soluções em problemas complexos. No ecossistema de inovação, a vida do fundador é resolver problemas – e quanto mais apurada a lógica e o raciocínio do empreendedor, maior a chance dele encontrar ou até criar soluções inovadoras”, explica o CEO da TutorMundi.
Mulheres na tecnologia
De modo geral, a presença de mulheres no mercado de trabalho aumentou progressivamente nos últimos anos. No entanto, no ecossistema de tecnologia e inovação os avanços ainda são tímidos e caminham a passos lentos. Estima-se que apenas uma mulher para cada quatro homens consiga um emprego nos campos STEM, de acordo com o relatório “Uma equação desequilibrada: participação crescente de Mulheres em STEM na ALC (América Latina e Caribe)“, realizado em 2021 pela UNESCO em parceria com o British Council.
A pesquisa revela que, apesar dos esforços para reduzir as disparidades de gênero nos campos STEM, as disparidades permanecem em diferentes níveis, da educação à progressão na carreira, em quase todos os países do mundo. Entre os vários fatores complexos que levam a resultados desiguais para homens e mulheres, o estudo destaca os preconceitos de gênero, muitas vezes generalizados nas famílias, comunidades educativas e locais de trabalho.
Além disso, os contextos econômicos, culturais, sociais e religiosos também impactam este processo, criando lacunas que reforçam diferenças econômicas e sociais.
“Os desafios começaram no momento em que entrei na trilha de preparação para o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), e me deparei com uma imensa falta de modelos de referência”, afirma Ludmila Pontremolez, CTO e cofundadora da fintech Zippi.
Formada em Engenharia da Computação, a empreendedora passou pela área de software de grandes empresas como Microsoft, Square e até mesmo a Nasa, agência espacial dos Estados Unidos. Antes de embarcar na jornada da Zippi, Ludmila passou uma temporada no Vale do Silício, com estudos na Universidade de Stanford.
“Vejo a matemática e as ciências como pilares essenciais para a inovação, à medida que nos permitem desenvolver tecnologias que melhoram a competitividade e a sustentabilidade do mercado. O ITA foi criado para formar pessoas engenheiras que pudessem contribuir com a indústria aeronáutica, e exerceu papel fundamental na fundação e crescimento da Embraer, um grande orgulho nacional. Para além da Embraer, temos diversos exemplos de tecnologias desenvolvidas no Brasil que são referência no mundo: satélites lançados pelo INPE, técnicas de perfuração em águas profundas desenvolvidas pela Petrobras e o Pix, que é referência global em pagamentos instantâneos – e uma inovação-chave para o produto da Zippi“, pontua.
A empreendedora reconhece que a falta de modelos femininos no setor é um desafio que a acompanha até os dias atuais. Por isso, faz esforços ativos para se aproximar das poucas mulheres que trilharam caminhos semelhantes ao seu e construir uma rede de apoio.
“O incentivo para atrair mais meninas aos campos STEM começa em casa e na escola. Tive uma mãe que estava constantemente celebrando minha curiosidade intelectual, incentivando leitura e ativamente quebrando estereótipos de gênero. Na escola, sentia o mesmo apoio, cuidado com falas limitantes, e empoderamento”, avalia.
Hoje, na Zippi, ela considera que seu papel tem um componente técnico grande para informar a tomada de decisão. “Somos uma empresa de tecnologia muito baseada em pautas e que está escalando com time muito enxuto. Isso só é possível com um grande investimento em engenharia e uso constante de matemática e estatística. A base técnica foi muito importante, mas mais ainda é estar constantemente estudando: meu conhecimento se multiplicou muitas vezes desde que iniciamos a Zippi, à medida que novos desafios surgiram tive que conhecer novos temas e aprofundar nos que já conhecia”, finaliza.