As govtechs, startups dedicadas a melhorar serviços e processos públicos, podem ser as grandes protagonistas da inovação na administração governamental. Isso porque 90,2% dessas empresas buscam ampliar a eficiência da gestão pública, de acordo com a pesquisa “RegTech 2021: posicionamento estratégico”, conduzida pela KPMG com apoio do Distrito.
O estudo, adiantado com exclusividade ao Startups, reuniu dados de 51 govtechs brasileiras entre 2020 e 2021. Do total, as subcategorias cidades inteligentes (23,9%), soluções para o meio ambiente (13%), alvarás e licitações (13%) e monitoramento por meio de dados (13%) são as mais atuantes no ecossistema. As demais (9,8%) pertencem à categoria de comunicação com o cidadão.
“As govtechs são importantes, pois conseguem levar inovação, tecnologia e agilidade para o poder público de forma muito mais simples, rápida e barata do que as empresas tradicionais”, diz Guilherme Dominguez, cofundador e diretor-executivo do BrazilLab, primeiro hub de inovação para govtechs do Brasil.
O executivo observa que o setor público já está se conscientizando sobre os benefícios de fazer parcerias com essas companhia. “Essa colaboração já gerou cases de sucesso no ecossistema”, afirma Guilherme. Ele destaca a startup Portal de Compras Públicas, plataforma online para licitações eletrônicas. Criada em 2016 para facilitar as negociações entre municípios e a iniciativa privada, a plataforma afirma gerar processos até 76% mais rápidos, com uma economia de 28% aos cofres públicos. O objetivo é, com a tecnologia, tornar o processo de compras públicas mais acessível para negócios de todos os portes e segmentos. Hoje, a govtech atende quase 2.170 municípios, entre eles 5 capitais estaduais, e venceu a categoria de Melhor Startup na avaliação global do StartOut Brasil 2021, que aconteceu em Lisboa.
Outro player é a Gesuas, líder do Ranking 100 Open Startups 2020 e vice no pódio de 2021. A companhia desenvolveu um software para assistência social para atender mais de 100 cidades nacionais. “O Brasil tem mais de 80 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade. Esse é um nicho da gestão pública que ainda não é muito explorado, então criamos uma tecnologia para otimizar as políticas públicas, atuando lado a lado com as secretarias municipais de assistência social”, diz Igor Guadalupe, diretor-executivo da startup.
A ferramenta oferece a gestão das informações referentes aos serviços socioassistenciais prestados aos usuários pela rede municipal e gera informações para monitoramento nas três esferas governamentais. Com ela, é possível cadastrar famílias e criar planos de acompanhamento familiar, fazer todo o acompanhamento psicossocial, compartilhar as informações entre unidades de atendimento e acessar a versão digital do Prontuário do Sistema Único de Assistência Social.
Venture capital
O investimento em govtechs no mundo todo ainda é pequeno em comparação com outros segmentos de startups, como educação, saúde e, é claro, o financeiro. No entanto, as expectativas para o setor são positivas. De acordo com o levantamento do RegTech Analyst, o total aportado nessas empresas saltou de US$ 900 milhões em 2014 para US$ 1,9 bilhão em 2017. Outro grande salto aconteceu no ano seguinte, quando as govtechs terminaram 2019 movimentando US$ 4,5 bilhões em investimentos. Em 2019, mais um marco: US$ 8,5 bilhões.
“Essas empresas estão começando a participar de rodadas maiores. Acredito que as govtechs sejam a próxima grande fronteira de investimento de venture capital”, diz Guilherme Dominguez, do BrazilLab. A Gove, plataforma inteligente criada para aumentar a eficiência dos processos municipais, já começou a acompanhar essa tendência.
Em novembro de 2020, a startup levantou um seed R$ 8 milhões da gestora Astella Investimentos para aumentar a equipe de vendas e multiplicar por 10 a base das 31 prefeituras atendidas até então. Um pouco antes do aporte, ela passou pelo programa de residência Google for Startups, tornando-se a primeira govtech acelerada pela iniciativa.
A tecnologia permite consolidar, organizar e disponibilizar dados financeiros, inscrições imobiliárias e outras informações necessárias para que os governos tomem as melhores decisões, impactando positivamente a vida de milhões de pessoas. “Queremos triplicar de tamanho até julho de 2022. Depois de atingir esse crescimento, vamos pensar em um novo aporte, provavelmente para investir em expansão comercial e produto”, afirma Rodolfo Fiori, cofundador da Gove.
Apesar de ver oportunidades para a captação de recursos, o executivo reconhece que o ecossistema ainda é incipiente. “Ainda temos poucos fundos fazendo investimentos em govtechs”, diz. Para Marcelo Ribeiro, sócio de regulatório da KPMG no Brasil, ainda há muita oportunidade para investimentos e para que o mercado de venture capital ajude a fomentar o segmento de govtechs.
“A América Latina ainda não tem nenhum unicórnio do setor, o que faz com que a região tenha excelentes oportunidades de negócios”, afirma Marcelo. “O Brasil pode estar à frente do ecossistema de govtechs na América Latina, porque tem problemas para resolver e muitos empreendedores com ideias criativas para encontrar soluções. Mas, para isso, precisamos superar algumas barreiras.”
Obstáculos do setor
“Existe um rito a ser seguido no processo de compra das soluções pelo governo. É algo que demanda tempo e, consequentemente, fluxo de caixa para as startups continuarem operando. No caso das empresas nascentes, isso se torna um grande desafio”, afirma Igor Guadalupe, da Gesuas.
O problema é que a maioria das govtechs são empresas nascentes. Segundo a pesquisa da KPMG e do Distrito, embora 45,1% das empresas tenham surgido entre 2011 e 2015, 85% do total mapeado ainda está em fase inicial de desenvolvimento, gerando entre R$ 360 mil e R$ 5 milhões no caixa. Isso mostra que as companhias já faturam, mas ainda não têm escala para atingir faixas superiores. Apenas 7 das 51 govtechs analisadas possuem faturamento entre R$ 5 milhões e R$ 25 milhões. Ainda sobre o ano de fundação, pouco mais de um terço (35,3%) iniciaram operações entre 2016 e 2019, 13,7% entre 2000 e 2010, e apenas 5,9% antes de 2000.
“Trabalhar com serviços para o governo é algo mais demorado para implementar”, explica Marcelo Ribeiro, da KPMG. “Há uma rigidez muito grande no setor público por conta das várias regulamentações que precisam ser cumpridas. Isso não está errado, mas faz com que os processos sejam mais lentos do que no setor privado.” Ele cita como exemplo a Lei Nº 8666, que estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, compras, alienações e locações no âmbito dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Outra questão está no descompasso regional. As govtechs estão concentradas na região Sudeste (47%) e Sul, (27,5%), aponta a pesquisa da KPMG, enquanto Centro-Oeste tem uma participação de 11,8% e Nordeste e Norte de apenas 9,8% e 3,9%, respectivamente. Segundo Marcelo, isso tem a ver com o PIB brasileiro, bastante concentrado no Sul e Sudeste. “As grandes empresas estão ali e as startups chegam para solucionar seus problemas”, argumenta.
O executivo deixa claro que essa é uma barreira que precisa ser superada. “Sabemos que existem empreendedores e ideias de negócios no Norte e Nordeste que poderiam ser desenvolvidas, mas têm dificuldade para sair do papel. Há poucas aceleradoras, associações e incentivos nessas regiões, o que prejudica o avanço do ecossistema por lá.”
Para o criador da Gesuas, outro desafio a ser ultrapassado é a preparação das startups no processo de venda para o governo. Elas precisam estar com o pagamento dos impostos em dia, seguir encargos trabalhistas e todas as exigências do poder público. “Quando se trabalha com um serviço privado, normalmente eles não olham para isso. Mas com o governo é diferente”, diz Igor. “O gestor público que vai investir nessas tecnologias vai fazer tudo com muita cautela, e as startups precisam diminuir a insegurança desses agentes, estando preparadas para atender a essas exigências.”
Guilherme Dominguez, do BrazilLab, fala ainda de outros desafios. O primeiro deles é ampliar o letramento digital dos servidores públicos para que as pessoas realmente vejam as tecnologias como aliadas e não como ferramentas que vão potencialmente roubar seus empregos ou atrapalhar a atuação do setor. “É mostrar que faz sentido usar a tecnologia, que isso vai otimizar os trabalhos e tornar tudo mais transparente”, afirma. O especialista também fala da importância de o mercado de venture capital aumentar o financiamento nessas empresas, para fomentar soluções que já estão no mercado.
Oportunidades
Apesar dos desafios, o mercado começou a se movimentar. A gestora KPTL já anunciou que está se preparando para lançar um fundo 100% govtech, para apoiar e acelerar empresas promissoras que desenvolvem soluções inovadoras para o setor público.
“Ter um fundo específico para as govtechs é fundamental para mobilizar o ecossistema, trazendo mais capital financeiro e intelectual. A iniciativa da KPTL é um dos grandes passos que estão sendo realizados, muito importante para que daqui alguns anos vejamos alguns unicórnios surgirem no Brasil”, argumenta Marcelo, da KPMG. Segundo Renato Ramalho, sócio e diretor-executivo da KPTL, a meta é captar cerca R$ 200 milhões para investir de 20 a 25 startups que já tenham negócios em andamento em uma das três esferas de governo (federal, estadual e municipal).
“O mercado de venture capital está percebendo que dá para vender para o governo de maneira ótica e que gere escala para as startups”, afirma Rodolfo Fiori, da Gove. Ele ressalta que também houve avanços nas legislações. Em outubro, a Lei do Governo Digital (Lei nº 14.129), que visa levar mais eficiência e modernização na prestação digital de serviços à população, começou a valer para municípios de todo o país.
O empreendedor também destaca o Marco Legal das Startups, que vem para modernizar, desburocratizar e estimular o setor, facilitando negócios e investimentos para pequenas empresas e startups. “Tem um capítulo de compras públicas que facilita a venda de startups e de tecnologia para os governos, o que é positivo”, diz Rodolfo. A previsão é que os contratos de soluções inovadoras tenho valor máximo de R$ 1,6 milhão, com prazo de duração de 1 ano prorrogável por mais 1. O uso desse mecanismo, no entanto, ainda deve levar um tempo para acontecer já que os gestores públicos vão precisar entender como fazer esse tipo de contratação.
“O setor público tem demandado soluções e parcerias com as govtechs, pois percebeu que precisa de inovação e digitalização. As startups entram justamente com fluidez e rapidez para acelerar esse processo. Por isso, a expectativa é que haja um crescimento acelerado nos próximos anos”, diz Marcelo, da KPMG.
Igor, da Gesuas, chama atenção para os incubadoras e programas de aceleração como peça-chave para apoiar o desenvolvimento das govtechs. Como parte da rede BrazilLab, a Gesuas ampliou suas conexões com mentores e especialistas no setor público, além de ganhar mais visibilidade e encontrar novas estratégias para tocar os negócios.
O BrazilLab ficou em 11º lugar no Top 20 Ecossistemas do país, uma iniciativa da plataforma 100 Open Startups que reconhece as organizações que mais geraram impactos positivos na trajetória das startups ao longo de 2021. Em sua 6a turma de aceleração, o hub deve fechar 2021 com 130 govtechs aceleradas desde sua criação, em 2016. Elas recebem mentorias sobre a legislação de compras públicas do Brasil, compliance, lei anticurropção e propriedade intelectual, além de aprenderem sobre as diferentes modalidades de licitação e como abordar um órgão ou servidor público para oferecer um serviço.
“A gente entende que toda govtech é também um negócio de impacto social. Então elas precisam avaliar o negócio por outras métricas além das financeiras. Ajudamos a entender os indicadores de impacto e a como se conectar com as agendas de sustentabilidade e impacto social”, explica Guilherme Dominguez, do BrazilLab. As aceleradas também têm a oportunidade de conversar com servidores públicos para compreender suas experiências, dores e necessidades.
O hub também promove uma série de eventos no YouTube, para abordar letramento digital e ajudar as startups a criar um relacionamento com o poder público, e orientar o governo a como fazer a compra das inovações. Para o próximo ano, o BrazilLab espera lançar um curso de capacitação para o setor público. “Ele precisa entender quais problemas quer resolver e como a tecnologia pode ser uma aliada”, explica Guilherme. “Vamos ajudar os gestores e servidores públicos a se familiarizar com essas novas tecnologias, a montar uma estratégia de transformação digital e abraçar as inovações”, finaliza.