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Que os dias de investimentos exorbitantes em startups estão contados, isso já deu para notar. Nos últimos dias, avisos sobre tempos duros adiante começaram a pipocar, começando pelas recomendações da Y Combinator para que fundadores esperem o pior. A Sequoia Capital, que tem o hábito de advertir a comunidade toda vez que o pior está por vir, previu que o turbulento mercado de ações (sobretudo em tech), alta de juros, inflação e as consequências da guerra na Ucrânia devem resultar em uma experiência dolorida, que mudará o ecossistema para sempre.

Ao mesmo tempo em que os arautos do apocalipse tocam suas trombetas, também se fala muito em um “back to basics”, em que o mercado passará por uma evolução esperada já há algum tempo, depois de anos de rodadas e valuations nababescos – e fora da realidade. Neste novo cenário, o que se apresenta é a possibilidade de um retorno a um ambiente de investimento em venture capital mais sustentável. Mas o que isso significa para quem já tinha dificuldades em atrair a atenção de investidores, os fundadores sub-representados?

Enquanto os nomes por trás dos aportes mais quentes dos últimos tempos – em sua grande maioria homens brancos, ricos e bem-conectados – conseguiram atrair a atenção de fundos sem muitos problemas, as coisas são desafiadoras para quem não está nessa bolha. Um estudo da aceleradora BlackRocks Startups e da consultoria Bain & Company mostra que 32% dos fundadores negros brasileiros tiveram acesso a capital para desenvolver seus negócios, comparado a 41% de startups de não negros. Estes fundadores sub-representados também recebem menos apoio de aceleradoras e outros agentes de fomento (49% versus 57% entre não negros). Do total investido em startups em 2021, somente 0,04% foi investido em mulheres, segundo um estudo da Distrito, Endeavor e B2Mamy.

Ao passo em que a liquidez de capital diminui e investidores começam a olhar mais friamente para métricas como receita, produto e execução, as dificuldades para fundadores sub-representados no ecossistema continuam. “Se você faz o back to basics e está privilegiando o fundamento, teoricamente as empresas com fundamentos melhores deveriam receber mais funding. Mas quando o dinheiro seca, os vieses de mercado não vão embora”, diz Itali Pedroni Collini, principal na Potencia Ventures.

Segundo Itali, em tempos de vacas magras, fundadores de grupos como negros, indígenas, da comunidade LGBTQIA+ e pessoas com deficiência vão continuar tendo que se provar e “mostrar recibos” assim como precisavam fazer antes da atual correção. “A raiz do problema não é a falta de capital, e sim a estrutura da sociedade, que faz com que certos grupos tenham mais acesso a poder, dinheiro, educação e networking do que outros”, ressalta.

Ao mesmo tempo em que os problemas estruturais permanecem, se a avaliação de investidores volta a priorizar métricas como receita e outros fatores como a resiliência dos fundadores, isso quer dizer que empreendedores sub-representados terão uma visibilidade maior nesta nova era? Segundo Itali, esta não é uma hipótese que necessariamente vai se cumprir.

“Os vieses inconscientes de raça, de gênero, de formação atuam numa esfera não-racional da análise do investidor. Portanto, se os investidores não perceberem que eles têm essa parte mais irracional dentro da análise, não tem como eles olharem para isso e resolver este problema, independente da disponibilidade de capital”, ressalta.

Por outro lado, Anderson Thees, sócio da Redpoint eventures e agora investidor no Itaú, acredita que a mudança de foco de crescimento a qualquer custo para lucratividade deve impulsionar uma alteração no estereótipo de fundadores. “Não acho que o fundador homem, branco, educado na Ivy League que é o oposto do fundador sub-representado vai desaparecer, mas vai deixar de ser o tipo predominante como é hoje. Essa tendência já vinha acontecendo e deve acelerar com a maré baixa que se apresenta para todo mundo”, pontua.

A oportunidade do investimento de impacto

O que diferencia o cenário atual dos diversos momentos em que houve falta de liquidez em venture capital é o fato de que a pauta de diversidade e princípios de meio ambiente, social e governança (ESG) como driver de retorno está muito mais evidente, diz Itali, da Potencia Ventures. E este novo foco tende a contribuir para uma maior visibilidade de fundadores sub-representados.

“[O foco em ESG] Pode ser um caminho para diminuir o peso dos ciclos econômicos negativos. Se os investidores perceberem que aumentar a diversidade de fundadores no portfólio e o número de soluções que endereçam grandes oportunidades de mercado assim como problemas socioambientais, podemos ter a chave para sair mais rápido do buraco”, ressalta a investidora.

Caso isso aconteça entre os fundos ditos tradicionais, é possível que o acesso a capital melhore para fundadores de perfis que antes não eram amplamente beneficiados. Segundo Itali, o tema tem permeado associações de classe e há uma proatividade maior em endereçar a questão entre gestores. Ao mesmo tempo, há um movimento de forças contrárias de mercado: de um lado, há a discussão de como alocar capital em soluções de impacto socioambiental e fundadores diversos e de outro, a diminuição na alocação de recursos.

O resultado desta pressão incipiente por portfólios mais diversos é um processo lento e gradual. Por outro lado, gestores serão pressionados a abordar estes critérios à medida em que captam novos fundos. “Os ciclos de investimentos dos fundos são longos, é difícil transformar a tese de um fundo tradicional de uma hora para outra. O movimento está acontecendo, mas a pressão não está dando resultado tão rápido quanto a gente precisaria”, pontua Itali.

Ainda sobre a mudança de mentalidade dos fundos, da Potencia Ventures assume um papel de evangelização neste sentido, se posicionando na indústria e construindo relacionamentos com fundos ditos tradicionais. Afinal, quem investe em impacto tipicamente quer retorno financeiro com possibilidade de mudança social para melhor. “Mas a maior parte das pessoas que investe no mainstream não entende essa possibilidade de retorno somado a impacto, eles acham que é um ou outro. Parte do meu esforço é demonstrar que eu uso os mesmos critérios que eles: é um trabalho de formiguinha”, pontua.

Segundo Itali, a mudança positiva no mercado a partir de um olhar mais atento para fundadores sub-representados também requer humildade dos investidores para ouvir mais sobre a pauta. “Ao conversar com esses gestores é como se eles soubessem tudo de tudo, porque eles já estão sentados numa montanha de grana e já fizeram muito retorno. Tanto eu, quanto todas as pessoas que não tem o perfil do VC tradicional e que tem experiências de vida relevantes para trocar e muitas vezes não se veem ouvidas, tem muito a ensinar”, frisa.

Comentando sobre o tamanho da população brasileira e como ela é mal-servida em diversos aspectos, desde acesso à saúde e educação até serviços financeiros, Daniel Izzo, CEO da Vox Capital, diz que o valor do investimento de impacto está cada vez mais evidente. “As pessoas deveriam perceber, pelo estado do mundo e tudo o que está acontecendo que investir pensando no impacto não é uma questão simplesmente de bondade, e sim da nossa sobrevivência na Terra. É um auto-interesse iluminado, como diriam os americanos”, aponta o gestor.

“Mas é um trabalho de longo prazo, e eu acho que você não convence ninguém de que impacto é importante. A própria pessoa tem que abrir os olhos, olhar para o lado e se convencer”, acrescenta.

De quem é a responsabilidade?

Para alem da responsabilidade dos fundos em resolver a questão de acesso a capital por grupos diversos, Itali destaca o papel dos investidores institucionais (os limited partners, ou LPs) se movimentarem mais para influenciar esta pauta. Segundo ela, isso envolveria o investimento em grupos sub-representados e marginalizados como uma das possibilidades de melhorar a performance do portfólio, entrando com valuations menores com o potencial de conseguir retornos maiores.

Anderson, do Itaú, reconhece que o ecossistema “nunca conseguiu resolver esse problema [de acesso a capital por fundadores sub-representados] do jeito certo”, e propõe uma abordagem diferente para resolver os entraves enfrentados por estes empreendedores. “Sou a favor de hackear o sistema e a forma mais eficiente de fazer isso seria quem fornece o capital exigir que [gestores] eliminem estes vieses”, diz o investidor.

Por outro lado, o gestor ressalta que a responsabilidade de “arrumar a bagunça que todo mundo criou” é do ecossistema como um todo, e não só dos investidores institucionais. “Os LPs têm uma alavanca maior e conseguem fazer mais força para isso acontecer, mas isso não faz deles os únicos responsáveis. Todo mundo tem que trabalhar [para mudar o cenário atual]”, pontua.

Para expressar sua insatisfação com a configuração dos portfólios dos fundos que apoia, uma gestora em um dos maiores fundos institucionais do mundo cita a frase “Ou se é racista, ou ganha-se dinheiro”, da empreendedora Monique Evelle, para avaliar o atual estado das coisas no venture capital brasileiro.

“Acho que o mercado está acomodado, sim. As pessoas preferem ficar na sua zona de conforto. Os LPs têm um papel importante, sim, mas não é uma tarefa só nossa, e sim do ecossistema como um todo. [Investidores institucionais] precisam botar condições na mesa, que fundos só [terão capital] se tiverem portfólios mais diversos”, ressalta a LP.

“Mas gestores também tem um papel importante, a começar pela composição de suas equipes: não dá para esperar mais mulheres ou afrodescendentes entre as investidas, se ninguém do time é deste perfil”, acrescenta.

Segundo Anderson, a formação de novos gestores destes perfis é uma das mudanças que precisam acontecer para o ponteiro se mover de fato. “O ponto é que leva muito tempo para se formar um bom gestor de venture, não dá para sair aparecendo com novos gestores do dia para a noite. Em contrapartida, a recorrência deles no mercado é muito longa”, aponta.

“Quando a gente conseguir formar uma turma [de investidores diversos], vamos criar um movimento que se repete, mas isso não é algo trivial”, acrescenta. O investidor não abriu detalhes de como será a composição do time que está formando no Itaú, que o contratou junto com outro sócio da Redpoint, Manoel Lemos, para reforçar a atuação do banco junto a empreendedores e investidores.

Esforços deliberados

Apesar de a necessidade de aumentar o número de empreendedores de grupos sub-representados que se interessem por fundar startups ser um ponto frequentemente mencionado quando se olha para futuros possíveis, alguns agentes consideram o novo momento de mercado como uma discussão separada da necessidade desta construção.

“É um desafio independente da liquidez do mercado, um trabalho que precisa ser feito com uma visão de médio a longo prazo. Isso envolve todo um trabalho de apoio ao surgimento ou fortalecimento de aceleradoras, incubadoras e pessoas que estão trabalhando com públicos minorizados, para então conseguir ter mais empresas fundadas por pessoas destes grupos”, diz Daniel, da Vox Capital.

Segundo Anderson, do Itaú, é preciso fazer “um esforço deliberado e concentrado” para aumentar o acesso a capital por parte de empreendedores fora do padrão cisheteronormativo branco para que o ecossistema possa emergir com um perfil diferente deste momento de correção. “Precisamos agir para aumentar o número de pessoas que poderiam empreender e são de minorias, abrir a boca do funil com este tipo de perfil”, pontua.

“Existem muitos fundadores que montaram empresas, enfrentaram mil barreiras e dão um lucro legal: investir neles não é mais do que uma obrigação. Onde conseguimos fazer mais que a obrigação é aumentando o pipeline, fazendo esforços direcionados para isso. Se olharmos primeiro para estes públicos, é possível mudar o ritmo”, acrescenta.

Além de dar condições para que mais pessoas de grupos diversos fundem startups, Daniel, da Vox, diz que para o capital começar a fluir no curto prazo para estes fundadores, é preciso pensar em formas alternativas de financiamento. “Tem que ser com fundos com outras estruturas financeiras que complementem o VC e que sejam capazes de trabalhar com uma quantidade maior de empresas, e não aqueles que vão escolher o futuro possível unicórnio”, pontua o gestor.

Para a investidora institucional, outro meio de virar o jogo é fazer com que empreendedores negros que já tem certa robustez financeira comecem a investir em venture capital ou como anjos. “Precisamos que esses high-net-worth individuals de grupos diversos no Brasil comecem a investir no ecossistema e que tenhamos mais pessoas destes perfis em espaços de poder. Precisamos fazer com que esse pessoal fique rico e invista em outros que se parecem com eles. Desta forma, cria-se um círculo virtuoso”, conclui.

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