É comum ouvir que a jornada empreendedora é uma montanha-russa de emoções. Mas até então era difícil mensurar os efeitos da rotina intensa e de todos os altos e baixos deste processo, principalmente no Brasil. Agora, temos um pouco mais de informações. Uma pesquisa inédita no mercado revela que criar e liderar empresas de tecnologia com alto potencial de crescimento e sustentabilidade tem gerado um impacto profundo na saúde mental e no bem-estar dos empreendedores, e alerta para a necessidade de que eles cuidem de sua saúde com a mesma dedicação que fazem com os seus negócios.
Cerca de 94,1% dos empreendedores brasileiros já viveram pelo menos uma condição adversa com sua saúde mental ao longo de suas jornadas. E mais: 91,5% dos empreendedores conhecem outro que também enfrentou desafios neste processo. Os dados são do estudo “Saúde e Performance de Pessoas Empreendedoras”, realizado pela Endeavor em parceria com BID Lab, ANDE e Flourish Ventures com o intuito de entender o cenário dos empreendedores à frente das empresas de tecnologia de alto crescimento no Brasil.
“Ouvimos muito, inclusive dos próprios empreendedores, que o tema saúde mental ainda é um tabu”, revela Camilla Junqueira, diretora geral da Endeavor Brasil, em conversa com o Startups. “Já sentíamos que esse era um grande problema e a pesquisa mostra que realmente precisamos falar sobre saúde mental e o quão séria é essa questão”, explica.
O estudo levou em conta dados e informações de 118 empreendedores de alto impacto, líderes de startups e scale-ups no Brasil, além de entrevistas com 12 especialistas em empreendedorismo e saúde, nacionais e internacionais. Para entender os temas com maior profundidade, o relatório contempla estudos de caso de sete empreendedores como Brian Requarth (Latitud), César Carvalho (Gympass/Wellhub), Mariana Dias (Gupy) e Robson Privado (MadeiraMadeira), abordando suas experiências e seus aprendizados com a intenção de incentivar boas práticas de bem-estar.
Panorama geral
Os resultados mostram que 56,8% dos executivos consideram suas rotinas de trabalho estressantes ou muito estressantes. Como principais razões, eles citam fatores externos como a situação financeira da empresa (60,2%), captação de recursos (35,6%) e a situação econômica do mercado (20,3%). Em relação aos desafios internos, destacam o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal (43,2%) e o medo do fracasso (29,7%). Questões de rotina como a contratação e gestão de pessoas (29,7%), relacionamento com co-founders (27,1%) e com atuais investidores (7,6%) também aparecem como agravantes para esse cenário.
Além disso, 75% dos empreendedores de startups e scale-ups no Brasil dizem sentir pressão pelas expectativas que os outros têm de si e de seu negócio. A maioria considera que empreender é uma jornada solitária (69%), diz estar sacrificando seu presente pelo sucesso futuro (61%) e acredita que saúde mental é um tabu no ecossistema empreendedor (53%).
O panorama coloca o Brasil em uma situação mais alarmante do que a média na América do Norte, Europa e em Israel. Na pesquisa da Endeavor, 85% dos respondentes citam já ter lidado com ansiedade, 37% com burnout, 21% com depressão e 22% com ataque de pânico. Já na mais recente edição da pesquisa Startup Snapshot, com dados internacionais, esses dados caem para 37% (ansiedade), 36% (burnout), 13% (depressão) e 10% (ataque de pânico).
Apesar de estressante, a rotina se torna mais tranquila conforme o ganho de experiência. Os executivos com um a cinco anos de jornada costumam trabalhar cerca de 55.5 horas semanais. Enquanto isso, os empreendedores com mais de cinco anos de jornada trabalham menos, aproximadamente 45 horas semanais. Inclusive, os mais experientes parecem conseguir lidar melhor com os desafios da jornada empreendedora. A sensação de tranquilidade cresce de 31,3% entre empreendedores com menos experiência para 51,9% entre quem está há mais de 10 anos na jornada.
Os mais impactados
Os desafios de saúde mental são ainda mais agressivos para grupos sub-representados. De acordo com o estudo, as mulheres empreendedoras são as que relatam condições de mal-estar mental com maior frequência: 76,5% delas consideram a jornada empreendedora estressante, contra 54,5% dos homens. A dificuldade de balancear a vida social e profissional também é maior, assim como o receio de compartilhar seus desafios com sócios, time e investidores. Além disso, 47,1% delas apontam os vieses de gênero do ecossistema como um desafio.
Em paralelo, a saúde financeira da empresa é um desafio para 66% dos empreendedores negros, contra 58% dos fundadores brancos. As mulheres e pessoas negras do ecossistema têm um maior medo de fracassar ao longo da jornada – 30,3% das empreendedoras temem o fracasso, versus 10,4% dos homens, e 29,4% dos empreendedores negros têm medo do fracasso, contra 22,2% dos empreendedores brancos.
“O panorama de saúde mental fica ainda mais sério no caso de grupos sub-representados. Isso não é uma surpresa, mas nem por isso deixa de ser menos crítico. No geral, os empreendedores destacaram que o bem-estar é agravado pela preocupação com a saúde financeira da empresa e as condições do mercado. Atualmente, tem sido mais difícil captar por conta da baixa e dos reajustes macroeconômicos. Isso impacta ainda mais as pessoas negras e mulheres empreendedoras, porque elas normalmente já têm menos acesso aos recursos. Se já é difícil, agora fica ainda mais”, analisa Camilla.
E agora?
Dado os resultados, como reverter ou – pelo menos – amenizar o cenário atual relacionado à saúde e ao bem-estar dos empreendedores no Brasil? Segundo a diretora geral da Endeavor Brasil, o primeiro passo é reconhecer que esse problema de fato existe. “Muitas organizações nem olham para isso, o que é ainda mais preocupante. Precisamos reconhecer que essa é uma questão que precisa ser trabalhada”, explica Camilla Junqueira.
“Embora o Brasil tenha cada vez mais cases de sucesso, ainda podemos ir muito mais longe em competitividade global. Para darmos esse salto, a qualidade das pessoas e o suporte que elas recebem precisam estar à altura deste desafio. O empreendedor tem que estar bem para acompanhar o crescimento de sua empresa. Por isso, o primeiro passo é dar visibilidade para a questão da saúde mental no ecossistema e, a partir disso, cada organização – com base em seu perfil e sua especialidade – deve avaliar o que pode ser feito.
A pesquisa destaca algumas práticas de bem-estar adotadas pelos empreendedores. Entre elas, as mais citadas foram o estilo de vida – incluindo exercícios, sono de qualidade e alimentação saudável (79,7%) – e a conexão social, passando tempo com a família e amigos, além de em atividades em grupo e envolvimento em hobbies (74,6%). Também aparecem a prática de terapia (50,8%) e de espiritualidade ou religiosidade, como yoga, meditação, oração ou participação em cerimônias religiosas (35,6%).
“Os empreendedores mais experientes têm uma rede de apoio e costumam compartilham mais os seus desafios com amigos e a família. É importante ter esse suporte para ter zonas de escape e de descompressão”, afirma Camilla. Ela observa que a busca por ajuda profissional permanece um tabu – cerca de 26,3% diz ainda não ter buscado um suporte especializado. No entanto, aos poucos os executivos têm passado a considerar essa opção. Em momentos difíceis no último ano, eles buscaram por psicólogos (54,2%), psiquiatras (17,8%), coach (19,5%), entre outros profissionais.
“Não tem resposta mágica, é uma combinação de elementos para ter uma vida um pouco mais saudável. Isso inclui se preocupar com o sono, a alimentação, a saúde física e também a saúde mental. O empreendedor tem que dar exemplo para o restante do time – não adianta dar benefícios de saúde física e mental se a própria liderança não adota as boas práticas. Além disso, conversar com amigos e com a família é importante, mas também ajuda buscar pessoas que realmente sabem pelo que você está passando, ou seja, outros empreendedores que vivem desafios parecidos. Isso cria um campo de troca e de conexão, o que é muito valioso”, finaliza Camilla.