*Rodrigo Helcer é co-fundador da STILINGUE By Blip, e Laura Constantinni é co-fundadora da Astella Ventures Ventures
Em nosso artigo anterior, falamos sobre dicas para analisar teses de investimentos em empresas de software com o diferencial em IA. Agora, vamos falar especificamente sobre a estratégia de Go-to-Market (GTM), fundamental nesse ecossistema e que diz respeito a um processo para o lançamento de um novo produto ou serviço no mercado.
A inteligência artificial parece alterar as dinâmicas competitivas de todas as cadeias de valores. A sensação de que é praticamente impossível manter diferenciação de produto e barreira de entrada por tempo elevado nos leva a pensar na dificuldade de construir negócios sustentáveis.
Hoje, evidenciamos que algumas empresas listadas na bolsa, principalmente as big techs, chegaram a um patamar elevado de receita, gozam de margem bruta elevadíssima e de custo marginal próximo a zero, mas não têm margem EBITDA. Ou seja, a expectativa de que a escalabilidade traria resultados, não se concretizou. Várias dessas empresas gastam demais para convencer um cliente a comprar sua solução ou não conseguem reter sua base por tempo suficiente para garantir retorno, mesmo com escala elevada e modelo de negócios recorrentes.
Ao olhar para estratégia de Go-to-Market e distribuição é importante entender quais barreiras de entrada estão sendo construídas e quais os grandes diferenciais que determinado produto traz para seus consumidores. Dada a maior facilidade de reproduzir produtos digitais, o que faz com que algumas empresas tenham resultados superiores?
A capacidade das empresas e plataformas em criar um ecossistema ao redor de suas soluções é o que eleva as barreiras de entrada e garante sustentabilidade aos negócios. O ponto é que para criar um ecossistema onde a interação de diversos players é o que torna a experiência única para cada integrante, é necessário conhecer profundamente não só o problema a ser endereçado, mas também toda a cadeia de valor onde a solução se insere para ir criando condições de agregar valor a diversos players e fazer com que por sua vez esses players criem valor para a plataforma e outros integrantes.
Qual o segredo?
Ao olhar para os casos mais bem sucedidos de empresas de tecnologia que conseguiram criar negócios escaláveis, sustentáveis e rentáveis, ou seja, souberam implementar o Go-To-Market, observamos que o segredo vem de barreiras de entrada que se sustentam por várias gerações. Ao analisarmos o histórico e estratégia de construção e evolução de grandes empresas de tecnologia, percebemos que parte dos diferenciais e barreiras construídas por essas plataformas contaram com a colaboração e esforço de terceiros. Ou seja, grandes empresas de tecnologia se tornaram plataformas ao agregar diversos parceiros e possibilitar a construção de efeitos de rede.
Para conquistar mercados maiores mantendo velocidade de crescimento é mais difícil depender de adaptações da plataforma e novas funcionalidades para atender um número cada vez maior de tipos de usuários. Uma boa estratégia é agregar parceiros que possam suprir pelo menos parte dessas necessidades. Esses parceiros são canais de vendas, desenvolvedores, empresas de consultoria e até mesmo concorrentes – que interagem e agregam valor à tecnologia central. Essa rede cria uma rica tapeçaria de interdependências que é difícil de replicar.
Além de ser difícil de replicar ecossistemas, as inúmeras interações entre os diversos players que compõem esses ambientes alavancam e alimentam um conjunto enorme de inovação e novas soluções que acabam trazendo ainda mais valor para todos os seus componentes. Mais uma vez, o efeito de rede.
Todas as vezes que um novo player integra um ecossistema, ele investe em integrações e conta com a infraestrutura provida por esse ambiente para construir suas soluções.
Ou seja, desenvolvedores e parceiros terceirizados criam extensões, integrações e produtos em cima de uma infraestrutura e de outros parceiros existentes. Mudar para um ecossistema diferente significaria abandonar estes investimentos e começar de novo, o que funcionaria como uma barreira significativa para fornecedores de soluções. Barreiras estas conhecidas como switching cost no mercado internacional.
O switching cost de clientes também passa a ser enorme por que ele conta com vários produtos e serviços complementares aos da big tech central. Ou seja, boa parte do whole product de uma plataforma de tecnologia está na oferta complementar de serviços e produtos trazidos por provedores e parceiros terceirizados. Esta utilização cruzada de produtos cria desafios enormes para os concorrentes, que contam, na sua grande maioria, com uma oferta única de produto.
Com as novas plataformas de AI, esses ecossistemas podem alavancar ainda mais o valor de seus produtos e soluções por causa da enorme quantidade de dados de engajamento e uso das soluções dentro desses ambientes. Esses dados podem ser aproveitados para melhorar produtos existentes, desenvolver novos recursos e personalizar as experiências do usuário.
A estratégia de atuação através da construção de um ecossistema garante:
1.ganho de escala crescente – a adição de novos players aumenta o valor para todos os integrantes e com AI esse aspecto é ainda mais relevante e alavancado pela tecnologia. Os algoritmos aprendem com as interações entre os diversos players e incrementam ainda mais a oferta de valor (inteligência, insights e user experience) para o ecossistema como um todo;
2.barreiras de entrada cada vez maiores – replicar um ecossistema é muito difícil. Se cada vez que novos players entram e o valor do todo aumenta para todos os integrantes desse ambiente, fica cada vez mais difícil replicar a oferta de valor e competir.
Um ecossistema é cada vez mais poderoso se a oferta de valor da plataforma central enriquecer ele próprio e se for enriquecida por parceiros. É muito difícil customizar e atender de forma direta uma base de usuários com demandas e necessidades muito diversas. Os parceiros ou atuantes desse ecossistema colaboram com adaptações da solução de tecnologia ou adição de novas propostas e funcionalidades para grupos de pessoas ou verticais diferentes. Com AI, a sofisticação das propostas de valor tem potencial crescente, dada a característica da tecnologia de aprender com essas interações.
Ao pensarmos em estratégias eficientes de GTM, a construção de canais de distribuição baseados no esforço de parceiros pode ser um começo para a criação de ecossistemas fortes. Esses parceiros e usuários acabam interligados de tal forma que cada um contribui para e obtém valor da rede. Essa interdependência é crucial, pois cria um modelo autossustentável em que o sucesso de um player frequentemente contribui para o sucesso dos outros dentro do ecossistema.
Antes mesmo de podermos digitalizar cadeias de valor, os ecossistemas já eram criados. Um exemplo bastante interessante é o de uma montadora de automóveis. Ela se coloca no centro de um ecossistema composto por fabricantes de peças, redes de concessionárias e oficinas, que agregam muito valor aos clientes finais e permitem que o produto da montadora esteja disponível para um conjunto cada vez maior de clientes e que os mesmos possam se beneficiar de uma experiência melhor.
Se para competir com uma montadora é necessário replicar todo esse ecossistema para possibilitar a mesma experiência e valor ao usuário, isso explica por que não temos muitas no mundo e por que o surgimento da Tesla como um player que foi capaz de digitalizar a cadeia de valor e o uso do produto é tão poderoso. Imagina o valor que tem a base de dados composta por informações de uso e de comportamento de toda a base de usuários da Tesla e como isso pode gerar insights não só para a empresa mas também para seus clientes, parceiros e fornecedores?
O que essas empresas que criaram barreiras de entrada sólidas mostram é que a construção de barreiras de entrada duradouras passa pela criação de um ambiente favorável ao desenvolvimento de produtos e serviços de terceiros, seja para a distribuição da tecnologia, seja para complementação de seu produto e funcionalidades. Esse foi o caso de várias histórias de sucesso, como HubSpot, Adobe, Microsoft, Google, AWS, Slack e Shopify. Ao agregar AI em todas essas camadas de engajamento desses ecossistemas, o mercado tende a criar barreiras de entrada maiores por oferecer inteligência e insights para todos os players.
Dado os benefícios que a AI traz para uma construção de produto, longevidade e sustentabilidade de uma empresa virão cada vez mais da construção de barreiras de entrada advindas da interação de um conjunto cada vez maior de players e usuários ao redor de uma plataforma capaz de permitir e facilitar essas interações e agregar valor a todos. Por isso estamos presenciando essa movimentação das big techs ao redor de AI-native players.
As big techs querem garantir que continuarão atraindo e mantendo ecossistemas inteiros. E quando falamos sobre nossa aposta em relação à explosão de aplicações verticais, estamos nos referindo a outros ecossistemas com barreiras de entrada altíssimas, criados por big techs, desenvolvedores, SaaS verticais, usuários, canais de vendas, etc. Replicar o que esses grandes players estão construindo não é fácil. Menos pela tecnologia e bem mais por tudo que tem ao seu redor.