Nos últimos anos, as pautas de diversidade e inclusão (D&I) ganharam destaque no ambiente corporativo impulsionadas por movimentos sociais globais, pelo aumento da pressão pública e por uma série de pesquisas apontando o vínculo entre diversidade e a performance financeira das empresas. A partir de 2020, após os protestos do movimento Black Lives Matter, empresas em todo o mundo assumiram compromissos para construir times mais diversos e ampliar a representatividade no ambiente de trabalho.
Nos meses que sucederam o assassinato de George Floyd, houve um aumento de 123% nas ofertas de emprego nas áreas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) nos Estados Unidos, segundo dados da plataforma Indeed. No Brasil, também em 2020, acontecimentos como o assassinato do cidadão negro João Alberto Freitas em uma loja do Carrefour e a declaração de Cristina Junqueira, cofundadora do Nubank, em durante o “Roda Viva” trouxeram à tona a necessidade urgente de ações concretas por parte das empresas, com discussões sobre a responsabilidade das marcas no combate ao racismo e na promoção da inclusão.
Foi quando muitas organizações passaram a contratar os seus primeiros executivos dedicados exclusivamente à D&I e sinalizaram mudanças em suas políticas internas. O Carrefour, por exemplo, criou um Comitê Externo de Livre Expressão sobre Diversidade e Inclusão, responsável por assessorar a empresa em ações de conscientização e combate ao racismo. Já o Nubank se comprometeu com uma agenda de ações “concretas e ambiciosas”. Ao mesmo tempo, uma série de empresas e startups acompanhou o movimento, criando seus próprios grupos de afinidade, programas de formação e vagas afirmativas.
No entanto, o entusiasmo do mercado parece estar perdendo força. De acordo com uma análise do The Wall Street Journal (WSJ), as metas de diversidade têm desaparecido dos relatórios anuais de empresas. No geral, as organizações dizem não estar cortando seus programas ou metas de longo prazo. Ainda assim, o estudo revela uma mudança na forma como descrevem e relatam suas iniciativas de inclusão, eliminando termos como “diverso” e cortando seções inteiras dos relatórios. Segundo o WSJ, as mudanças refletem a incerteza sobre os parâmetros legais desses programas, além da cautela com a reação política após a Suprema Corte dos Estados Unidos proibir ações afirmativas de admissão nas universidades norte-americanas.
O que mudou?
“O enfraquecimento das pautas de diversidade é um movimento gradual, que vem se mostrando desde 2022 e tem vários fatores contribuidores – não dá para colocar a culpa só em uma só coisa ou em um único acontecimento”, afirma Gabriela Augusto, fundadora e diretora da Transcendemos, que oferece soluções integradas para promover a Diversidade e a Inclusão nas organizações.
A especialista aponta que, entre 2020 e 2021, fatores globais coexistiram e contribuíram para o fortalecimento das pautas de diversidade. “D&I ganhou força após o assassinato de George Floyd e a comoção global gerada em torno disso, levando ao aumento da pressão sob marcas e empresas. Simultaneamente, foram anos de baixas taxas de juros, dinheiro ‘barato’ e muito capital circulando no mercado, principalmente nas empresas de tecnologia. Houve uma sincronia dos acontecimentos”, pontua. De um lado, o aumento da demanda por D&I nas empresas. Do outro, mais dinheiro disponível para crescer os negócios e intensificar as contratações. “Isso fez com que as ações de inclusão dessem certo, com programas focados em grupos sub-representados”, destaca Gabriela.
No entanto, a partir de 2022, houve uma mudança na economia global, com elevação das taxas de juros e transformações no mercado. Foi o período de reajustes, redução de custos e queda no volume e no tamanho dos investimentos. “De forma geral, as empresas deixaram de contratar e passaram a demitir em massa. Embora tivéssemos feito ações de conscientização e de educação corporativa, o cenário mudou”, observa a especialista.
Em paralelo à mudança de ventos na economia, decisões político-sociais chamaram a atenção para questões cruciais relacionadas a direitos civis e igualdade. Em junho de 2023, a Suprema Corte dos EUA declarou como inconstitucionais as políticas afirmativas de admissão nas universidades, iniciativas estas que foram criadas para promover o acesso e a inclusão de alunos negros, hispânicos e de outros grupos sub-representados.
“As ações afirmativas passaram a ser vistas por muitos como algo não tão lícito. Como resultado, essa mentalidade saiu da esfera educacional das universidades e ecoou para os programas de contratação e inclusão”, observa Gabriela. “Isso reverbera no Brasil. Se as empresas lá fora não se posicionam – ou o fazem de forma mais conservadora – suas filiais brasileiras tendem a seguir a mesma posição.”
Recentemente, a Microsoft demitiu o seu time de DEI alegando “mudanças nas necessidades de negócios”. “O verdadeiro trabalho de mudança de sistemas associado a programas DEI em todos os lugares não é mais crítico para os negócios como era em 2020”, escreveu um líder da big tech em um email enviado para funcionários, ao qual o site Business Insider teve acesso. Já a John Deere anunciou na rede X, que “não participará mais de eventos externos de conscientização social ou cultural, como paradas e festivais”, e pontuou que “a existência de cotas de diversidade e identificação de pronomes nunca foi e não é política da companhia”.
Em paralelo, a justiça norte-americana bloqueou as operações do Fearless Fund, fundo de venture capital criado para investir exclusivamente em empresas lideradas por mulheres negras. O 11º Tribunal de Apelações dos Estados Unidos alegou que o fundo poderia violar a Lei dos Direitos Civis de 1866, que garante direitos iguais e proíbe o uso da raça na realização e execução de contratos. O Fearless Fund foi processado pela American Alliance for Equal Rights (AAER) com o argumento de que, ao focar especificamente em mulheres negras, o projeto estaria discriminando e excluindo outros grupos sociais.
Como anda o ESG
“Tudo indica e parece ser uma forma de se posicionar politicamente”, afirma Hóttmar Loch, empreendedor social com especialidade em Diversidade & Inclusão e CEO da startup Nohs Somos, criada para garantir o bem-estar de pessoas LGBTQIA+. Ele destaca que, como a política se refere ao conjunto de ideias e ações que influenciam decisões e processos sociais, é importante que as empresas fiquem atentas ao cenário em que estão inseridas e participem dos debates sobre os impactos socioambientais de suas atividades.
Uma pesquisa de 2023 da Hoover Institution, da Universidade de Stanford, aponta para um ceticismo crescente entre os investidores em relação ao retorno dos investimentos em ESG, especialmente em momentos de tensão macroeconômica e busca por ganhos financeiros mais imediatos. “Pode ser que o elevado número de eventos polarizantes no último ano tenha alienado parte da população. Ou talvez a pressão econômica – como o aumento do custo de bens e serviços básicos devido à inflação e às taxas de juros mais altas – tenha diminuído o interesse das pessoas por defesa ambiental e social”, diz o estudo.
Hóttmar nota uma diferença entre o B2C, que lida com o consumidor final, e o B2B, entre empresas. “O movimento de diversidade está enfraquecendo no geral, mas é preciso olhar para segmentos de mercado. A pauta está mais quente no B2C do que no B2B, porque a estratégia de diversidade no meio corporativo começa por uma pressão da sociedade”, avalia. Um estudo da Deloitte mostra que os consumidores questionam se uma marca apoia a diversidade e inclusão tanto publicamente quanto atrás das câmeras. “É fundamental que as marcas reflitam autenticamente uma variedade de origens e experiências em suas mensagens se esperam se conectar efetivamente com futuros clientes”, diz o artigo.
Letícia Novak, gerente de D&I do Grupo QuintoAndar, ressalta que o trabalho de diversidade e inclusão nas empresas precisa ser feito de forma intencional. “A tecnologia e a inovação andam de mãos dadas com a diversidade. Hoje, principalmente no Brasil, as empresas atuam em ambientes completamente plurais, multiculturais e diversos. Você tem que entender quem é o seu cliente e a parte interessada (ou stakeholder, em inglês). E isso só se faz por meio de mentes plurais. Todo mundo precisa sim trabalhar cada vez mais em direção à inovação, aliada à diversidade e à inclusão.
No caso do QuintoAndar, o movimento começou de forma orgânica, com os colaboradores se organizando em grupos de afinidade para acolher e promover letramento. Com o tempo, a companhia viu a necessidade de estruturar uma área específica de D&I, responsável por acompanhar o que já estava sendo feito e fortalecer essa cultura internamente. “Adotamos um olhar estratégico e intencional, criando uma governança que anda lado a lado com o negócio para atender às necessidades da empresa e das pessoas”, explica.
O time de D&I no QuintoAndar surgiu no início de 2021. Depois, a companhia criou um board de D&I, formado por executivos da alta liderança, como diretores e VPs, para assumir e impulsionar pautas de D&I no Grupo em toda a América Latina. “O QuintoAndar cresceu muito e rapidamente, inclusive com presença internacional. Nesse contexto, a diversidade não só é uma realidade, como também uma necessidade. É essencial aprender a trabalhar com diferentes culturas para que cada um se sinta bem e desenvolva todo o seu potencial”, explica.
O papel das lideranças
“A liderança é peça-chave ao falar de D&I nas empresas”, afirma Hóttmar. “Quando se trata do mercado corporativo, é fundamental que diversidade, equidade e inclusão façam parte da estratégia da companhia, com estruturas e planos de ação que apoiem essa estratégia. E é justamente o discurso da alta liderança que determina o que vai para frente em uma organização, então ela precisa estar envolvida e engajada com a causa”, explica.
A falta de engajamento da liderança é o maior desafio enfrentado pelas empresas em relação à D&I, de acordo com o relatório “Tendências de Gestão de Pessoas 2022”, elaborado pela consultoria global Great Place to Work no Brasil. A pesquisa revela que a atenção das companhias para a diversidade e inclusão diminuiu nos últimos anos. Em 2019, 24% dos entrevistados consideravam D&I como uma prioridade nas empresas onde trabalhavam. Esse percentual subiu para 32% em 2020 e 37% em 2021, mas caiu para 17,9% em 2022.
“A abertura da liderança faz uma grande diferença. Não necessariamente o nível e a profundidade do conhecimento, mas reconhecer que não se sabe tudo sobre um tema e se comprometer a aprender”, afirma a gerente de D&I do Grupo QuintoAndar. “Diversidade e inclusão são jornadas longas. Ainda temos um longo caminho a percorrer, mas uma liderança disposta a aprender, fazer um movimento intencional, se desafiar e rever vieses inconscientes está no caminho certo”, observa Letícia.
Em 2024, o QuintoAndar lançou o seu primeiro relatório de Diversidade & Inclusão, destacando a jornada de D&I da empresa nos últimos dez anos e apresentando metas para 2025. Entre elas, aumentar a presença de mulheres em cargos de alta liderança para 45%; elevar para 30% a representatividade de pessoas negras, indígenas e mestiças em cargos de liderança; ter ao menos 5% de colaboradores com deficiência; e ampliar a representação da comunidade LGTBQIANPN+ na empresa.
E agora?
“Se a gente não fizer nada, o mercado tende a ficar como está, com a diversidade e inclusão perdendo o seu calor. Não acho que vai acabar, mas não dá para ficar de braços cruzados e deixar o tema de lado por conta do contexto X ou Y”, analisa Gabriela.
Apesar dos desafios, a fundadora da Transcendemos se diz otimista com as possibilidades de ação. “É o momento das empresas, especialmente no Brasil, oferecerem uma resposta. Precisamos de grandes lideranças corporativas batendo o pé para mostrar que se importam com o assunto e que não será uma moda passageira. Não é porque o tema esfriou que devem parar de fazer algo sobre. Agora é a hora de mostrar que D&I não é um favor. Pelo contrário; é um diferencial estratégico para os negócios, pois cria vínculos profundos com o consumidor e traz mais inovação e produtividade. É o caminho mais justo e inteligente”, pontua.
Segundo Letícia Novak, do Grupo QuintoAndar, esse trabalho vai muito além do aumento da contratação de colaboradores de grupos sub-representados. “A evolução qualitativa – de comportamento, abertura da liderança e programas intencionais – é tão importante quanto (se não ainda mais) do que a questão numérica. São ações e oportunidades que precisam vir ao encontro do desenvolvimento de pessoas, para que ocupem cada vez mais espaços”, conclui.