Venture capital

EUA bloqueiam fundo para mulheres negras e impactam cenário no Brasil

Fundado em 2018, Fearless Fund investe em empresas lideradas por mulheres negras em estágio pré-seed, seed e série A

Mulher negra trabalhando
Mulher negra trabalhando (Foto: Canva)

No último mês, a justiça norte-americana bloqueou as operações do Fearless Fund, fundo de venture capital criado para investir exclusivamente em empresas lideradas por mulheres negras. O 11º Tribunal de Apelações dos Estados Unidos, em Atlanta, alegou que o fundo é “substancialmente provável” de violar a Lei dos Direitos Civis de 1866, que garante direitos iguais sob a lei e proíbe o uso da raça na realização e execução de contratos. O Fearless Fund foi processado pela American Alliance for Equal Rights (AAER) com o argumento de que, ao focar especificamente em mulheres negras, o projeto estaria discriminando e excluindo outros grupos sociais.

“A Lei dos Direitos Civis de 1866 foi implementada após a escravidão nos EUA para que pessoas negras tivessem oportunidades e liberdade econômica, dando-lhes o direito legal de celebrar contratos. Agora, viraram essa lei de cabeça para baixo. Ela foi criada para proteger e prover, mas está sendo usada como uma forma de desmantelar a diversidade”, disse Arian Simone, CEO e cofundadora do Fearless Fund, à CNN em junho. “Leis criadas para enaltecer os norte-americanos negros agora estão sendo manipuladas para minar iniciativas voltadas à diversidade e à equidade.”

A decisão levantou uma série de debates sobre discriminação racial e equidade no mercado de inovação, tecnologia e investimentos, principalmente nos Estados Unidos, onde empresas lideradas por mulheres negras recebe menos de 1% de todo o dinheiro de capital de risco investido no país, de acordo com dados divulgados pelo Fearless Fund. Em outras regiões, empreendedores, investidores e lideranças do setor têm chamado atenção para os efeitos que a decisão pode ter no mercado de forma geral, com repercussões significativas não apenas nos EUA, mas em todo o mundo – inclusive no Brasil.

“A decisão do tribunal passa uma mensagem de que a diversidade na educação, na tecnologia, na inovação, nos investimentos ou em qualquer outro lugar é irrelevante. Ela parte da premissa de que fundos de apoio a empresas não podem usar a raça como determinante de seleção. Entretanto, na prática, isso já acontece na indústria de investimentos, onde 97% da alocação de capital acontece em empresas de pessoas brancas”, afirma Luana Ozemela, vice-presidente de impacto e sustentabilidade no iFood e cofundadora da BlackWin, a primeira plataforma de investidoras-anjo negras do Brasil, ao Startups.

Um pouco de contexto

Fundado em 2018, em Atlanta, o Fearless Fund investe em empresas lideradas por mulheres negras em estágio pré-seed, seed e série A, com a missão de preencher a lacuna no venture capital para mulheres negras fundadoras que constroem empresas escaláveis ​​e de alto crescimento. Em seu site oficial, o veículo de investimentos indica ter mais de 40 startups em seu portfólio, incluindo nomes como CareCoPilot, Femly e Range Beauty.

A movimentação contra o Fearless Fund não é um caso isolado. “Estamos em um momento crítico no qual muitas pessoas influentes a nível global estão questionando as políticas de ações afirmativas em todos os âmbitos”, observa Luana.

A oposição contínua ao Fearless Fund é liderada pelo ativista conservador Edward Blum, que também esteve à frente de processos movidos contra ações afirmativas nas universidades. Em junho de 2023, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou como inconstitucionais as políticas afirmativas de admissão nas universidades norte-americanas, que visam promover o acesso e a inclusão de alunos negros, hispânicos ou de outros grupos sub-representados. A decisão proibiu as Universidades de Harvard e da Carolina do Norte de usarem critérios raciais no processo de seleção dos estudantes.

Blum também liderou ações contra o diretor do Museu Nacional do Latino Americano do Instituto Smithsonian, por causa de um programa de estágio que visa atrair latinos para aumentar a representatividade nos empregos em museus. Blum e seus aliados defendem que essas iniciativas são inconstitucionais ao beneficiarem pessoas negras e latinas em detrimento de outros grupos étnicos.

“O que políticas afirmativas e programas como o Fearless Fund estão tentando corrigir são as desigualdades sistêmicas enraizadas nos nossos sistemas para que todos verdadeiramente se beneficiem e possam contribuir plenamente com seus talentos”, destaca Luana Ozemela. “O Fearless Fund investe em mulheres negras empreendedoras. Mulheres como eu e como as da BlackWin. O questionamento [das ações afirmativas em todos os âmbitos] já chegou no Brasil e representa uma ameaça aos avanços de desenvolvimento de capital humano viabilizados pelas políticas e ações afirmativas conquistadas”, pontua.

Luana Ozemela, vice-presidente de impacto e sustentabilidade no iFood e cofundadora da BlackWin, a primeira plataforma de investidoras-anjo negras do Brasil
Luana Ozemela, vice-presidente de impacto e sustentabilidade no iFood e cofundadora da BlackWin, a primeira plataforma de investidoras-anjo negras do Brasil (Foto: Divulgação)

Como fica o Brasil nessa história?

“O Brasil adora copiar os Estados Unidos de alguma forma, e espero que o que está acontecendo lá não chegue tão fortemente aqui, porque isso será um retrocesso sem tamanho”, avalia Monique Evelle, investidora-anjo e cofundadora da plataforma Inventivos, plataforma de formação, conexão e investimento na nova geração de empreendedores da América Latina. 

Monique alerta que movimentações recentes nos EUA contra políticas afirmativas já vêm influenciando o mercado brasileiro nos últimos tempos. “Estamos vendo empresas tirarem o setor de Diversidade e Inclusão considerando a decisão da Suprema Corte dos EUA com as universidades. Isso pode impactar empresas que estão no Brasil e atendem os EUA, ao pensarem que criar vagas afirmativas é inconstitucional. É um movimento perigoso e acredito que, infelizmente, isso vai chegar no Brasil. Minha preocupação é que aconteça muito mais rápido do que imagino”, analisa Monique.

No Brasil, apenas 4,7% das startups brasileiras foram fundadas exclusivamente por mulheres, e elas receberam apenas 0,04% dos mais de US$ 3,5 bilhões aportados no mercado brasileiro em 2020, de acordo com o estudo Female Founders Report 2021, elaborado pelo Distrito, pela Endeavor e a B2Mamy. A pesquisa revela que 19,1% das mulheres brasileiras fundadoras de startups são negras (sendo 5,8% pretas e 13,3% pardas). Apesar de uma luta por direitos cada vez mais evidente, dados específicos sobre a participação de mulheres negras no venture capital brasileiro ainda são desconhecidos.

“Poucos fundos no Brasil são direcionados exclusivamente para pessoas negras”, afirma Monique. Alguns exemplos são o Black Founders Fund, do Google for Startups, e o Semente Preta, do Nubank, além de iniciativas como o BlackRocks Startups, de Maitê Lourenço, e a própria BlackWin, de Luana Ozemela. “Agora que estamos conseguindo levantar dinheiro e começando a ter fundos de investimento direcionados para grupos sub-representados, cortam essa oportunidade. Faz menos de uma década que começamos a avançar e já estamos retrocedendo novamente. Se não falarmos publicamente sobre isso, pode ser que as pessoas achem normal suspender fundos que tenham teses voltadas para grupos sub-representados”, acrescenta.

Monique Evelle, investidora-anjo e cofundadora da plataforma Inventivos
Monique Evelle, investidora-anjo e cofundadora da plataforma Inventivos (Foto: Divulgação)

Implicações globais

Arthur Lima, CEO e cofundador da AfroSaúde, plataforma que conecta pacientes a profissionais negros de saúde e bem-estar de todo o Brasil, compartilha receios semelhantes. “O primeiro pensamento que tive ao saber do caso Fearless Fund foi: isso será reproduzido no Brasil e será um desastre. O medo de encontrarem uma brecha jurídica para de fato vetarem investimentos afirmativos – não que isso já não seja feito de forma consciente pelo mercado brasileiro – mas essa ação sob a chancela da justiça é como fincar uma faca na justiça social de um país”, pontua.

O empreendedor acredita que, como possíveis efeitos do que ocorreu nos Estados Unidos, outros fundos internacionais começarão a adotar o mesmo comportamento, de forma direta ou indireta. “O tema da diversidade e inclusão racial já está perdendo força no mercado, e o impacto dessa decisão será sentido em breve”, observa. Segundo Arthur, essa tendência pode resultar na diminuição significativa nos esforços para promover a equidade racial em diferentes setores.

Por isso, aponta Arthur, a estratégia de criar fundos afirmativos liderados por grupos sub-representados e de defender essa pauta dentro dos fundos tradicionais é tão importante. “A redução no investimento em iniciativas de diversidade e inclusão pode levar a um retrocesso nos avanços conquistados até agora, prejudicando tanto o desenvolvimento econômico quanto o social. Temos que tentar garantir que as questões de diversidade e inclusão continuem sendo priorizadas, mesmo em um cenário global de menor apoio e recursos limitados”, finaliza.

Arthur Lima, CEO da AfroSaúde (Foto: Robson de Paiva Leandro)
Arthur Lima, CEO da AfroSaúde (Foto: Robson de Paiva Leandro)

E agora?

Embora a decisão da justiça norte-americana impeça o Fearless Fund de conceder subsídios para mulheres negras, essa não é necessariamente a palavra final sobre o caso. De acordo com o TechCrunch, o Fearless Fund está avaliando suas opções sobre o que fazer a seguir, incluindo a possibilidade de um julgamento.

“Os Estados Unidos deveriam ser uma nação onde se tem a liberdade de realizar, de ganhar e de prosperar. No entanto, quando tentamos nivelar o campo de jogo para grupos sub-representados, as nossas liberdades foram sufocadas. Devemos continuar esta luta pela próxima geração de meninas que merecem crescer numa América que lhes permita realizar os seus sonhos em vez de proibi-los”, disse Arian Simone, CEO e cofundadora do Fearless Fund, em comunicado.